sexta-feira, 17 de outubro de 2014

02h48

Estou de volta onde tudo começou. De volta à UTI. Meu corpo está, melhor dizendo. Fiquei
aqui sentada esse tempo todo, cansada demais para me mexer. Gostaria de poder dormir.
Gostaria que houvesse algum tipo de anestesia para mim, ou pelo menos algo que fizesse o
meu mundo se calar. Quero ser como o meu corpo, calado e sem vida, posto nas mãos de outra
pessoa. Não tenho energia para essa decisão. Não quero mais isso. Digo em voz alta: Não
quero isso. Olho ao redor da UTI e me sinto ridícula. Duvido que os outros pacientes sintamse
felizes por estarem aqui também.
Meu corpo não ficou fora da UTI por muito tempo. Apenas algumas horas, tempo da
duração da cirurgia; e mais algum na sala de recuperação. Não sei ao certo o que aconteceu
comigo, e pela primeira vez no dia, não me importo nem um pouco. Não deveria me importar.
Não deveria ter tentado tanto. Percebo agora que morrer é fácil. Viver é que é difícil.
Volto a respirar com a ajuda de aparelhos e mais uma vez grudam uma espécie de
esparadrapo nas minhas pálpebras. Ainda não entendi o porquê da fita adesiva. Será que os
médicos ficam com medo de que eu acorde no meio da cirurgia e fique horrorizada com os
bisturis e o sangue? Como se nesse momento essas coisas pudessem me assustar. Duas
enfermeiras, a que está responsável por cuidar de mim e a enfermeira Ramirez, se aproximam
da minha cama e verificam os meus monitores. Elas dizem uma sequência de números que
agora é tão familiar para mim quanto o meu próprio nome: pressão arterial, pulsação e nível
respiratório. A enfermeira Ramirez parece uma pessoa completamente diferente da que chegou
aqui ontem à tarde. A maquiagem está toda borrada e o seu cabelo, achatado. Parece que
poderia dormir em pé. Acho que o turno dela está perto de acabar. Vou sentir a sua falta, mas
fico feliz em ver que ela poderá se livrar de mim, deste lugar. Gostaria de poder ir, também.
Acho que irei. É só uma questão de tempo — uma questão de descobrir como faço para
desistir.
Faz menos de quinze minutos que voltei para a minha cama e Willow aparece. Ela atravessa
as portas automáticas e vai direto falar com uma das enfermeiras que está no balcão. Não ouço
o que ela fala, mas percebo o seu tom: educado, polido, mas sem deixar o menor espaço para
discussão. Quando ela sai da UTI, alguns minutos depois, o clima muda. É Willow quem
manda agora. A princípio, a enfermeira rabugenta parece enfurecida, como se quisesse dizer:
“Quem essa mulher pensa que é para mandar em mim?”, mas depois ela parece aceitar com
resignação e joga as mãos para cima, se rendendo. Esta noite está sendo turbulenta. O turno
está próximo do fim. Para que se preocupar? Logo, eu e todos esses visitantes incômodos e
barulhentos seremos problema de outra pessoa.
Cinco minutos depois, Willow está de volta, e traz consigo vovô e vovó. Willow trabalhou
o dia inteiro, e agora está aqui para passar a noite. Sei que ela não tem conseguido dormir. Eu
costumava ouvir mamãe dando-lhe dicas de como fazer o bebê dormir a noite inteira.
Não sei quem parece pior, se eu ou o vovô. Suas bochechas estão pálidas, sua pele parece
cinzenta e fina como papel, e seus olhos estão vermelhos. Vovó, por outro lado, parece a
mesma de sempre. Não há sinais de desgaste nela. É como se a exaustão não ousasse em
mexer com ela. A vovó se apressa, vindo em direção à minha cama.
— Hoje você fez a gente dar um passeio numa montanha-russa — brincou vovó com a voz
calma. — Sua mãe sempre disse que não conseguia acreditar na criança tranquila que você
era, e me lembro de ter dito: “Espera só ela chegar na puberdade”, mas você me provou o
contrário. Mesmo nessa fase, você foi uma garota fácil. Nunca deu trabalho pra gente. Nunca
foi o tipo de garota que fazia o meu coração estremecer de medo. Mas o tanto que o meu
coração bateu hoje, valeu por uma vida inteira.
— Ah, deixa disso — advertiu vovô, colocando a mão sobre o ombro dela.
— Ah, só estou brincando. Mia vai gostar disso. Ela tem senso de humor, por mais séria
que pareça. Esta aqui tem um senso de humor negro.
Vovó puxa uma cadeira, senta-se perto da minha cama e começa a escovar o meu cabelo
com seus dedos. Alguém jogou água nele, então, embora não esteja exatamente limpo, também
não está mais coberto de sangue. Ela começa a desembaraçar minha franja, que está na altura
do meu queixo agora. Sempre corto a franja, depois deixo-a crescer. É o máximo de
transformação radical que posso oferecer a mim mesma. Ela vai escorregando a mão para
baixo, afastando o cabelo debaixo do travesseiro e colocando-os sobre o meu peito, o que
esconde parte dos fios e dos tubos que estão ligados a mim.
— Assim está bem melhor — diz ela. — Sabe, hoje fui caminhar um pouco lá fora e você
nunca vai adivinhar o que eu vi. Um cruza-bico. Em Portland, em pleno mês de fevereiro. Isso
é incomum. Acho que deve ser Glo. Ela sempre gostou de você. Dizia que lembrava o seu pai,
e ela o adorava. Quando ele fez seu primeiro corte moicano, ela praticamente mandou fazer
uma festa. Glo amava o jeito rebelde e diferente dele. Mal sabia que o seu pai a detestava.
Uma vez, ela veio nos visitar, vestindo um casaco de vison surrado, seu pai devia ter uns
cinco ou seis anos. Isso foi antes de ela entrar na fase dos direitos dos animais, dos cristais e
outras coisas. O casaco dela estava com um cheiro horrível de naftalina, como aquelas que a
gente usava no baú onde guardávamos as coisas velhas. Seu pai começou a chamá-la de “tia
cheiro de baú”. Ela nunca soube disso. Mas Glo amava o fato de ele ter se rebelado contra a
gente, ou pelo menos era isso que ela pensava, e ela achava que você tinha arrumado um outro
jeito de se rebelar quando se tornou musicista clássica. Por mais que eu tenha tentado dizer
que não era bem assim, Glo nem ligava. Tinha suas próprias concepções das coisas. Acho que
todos nós temos.
Vovó continua tagarelando por mais cinco minutos, me atualizando sobre as notícias do
mundo lá fora: Heather decidiu que quer ser bibliotecária. Meu primo Matthew comprou uma
moto e a tia Patrícia não gostou nem um pouco disso. Já a ouvi fazendo uns comentários sobre
isso durante horas, enquanto preparava o jantar ou cuidava das orquídeas. E ao ouvir vovó me
contar isso agora, posso a minha tia na sua estufa onde, mesmo no inverno, o ar era sempre
quente e úmido e cheirava a mofo e a terra com um leve toque de adubo. A vovó pegava cocô
de vaca, “bolinho de vaca” como ela costumava chamá-lo, e o misturava com palha para fazer
o próprio fertilizante. Ela acreditava que poderia patentear a receita e vendê-la, já que a
utilizava em suas próprias orquídeas, que sempre recebiam prêmios.
Tento meditar ao som da voz da vovó, me deixar levar pela tagarelice feliz dela. Às vezes,
quase chego a pegar no sono, sentada na banqueta da cozinha dela enquanto a ouço, e me
pergunto se conseguiria fazer isso hoje. Dormir seria muito bem-vindo. Um cobertor preto e
quente que apagaria tudo. Dormir, mas sem sonhar. Já ouvi falar sobre o sono dos mortos.
Será que a morte é assim? A melhor, mais quente, mais pesada e infinita soneca? Se for assim,
acho que não me importaria. Se morrer for assim, não ligaria nem um pouco.
Tenho um espasmo e sinto um pânico que destrói toda e qualquer calma que vovó tenha me
oferecido. Ainda não sei muito bem como as coisas funcionam aqui, mas uma vez que eu
decida partir, irei. Mas não me sinto pronta. Não ainda. Não sei por que, mas não estou. E
sinto um pouco de medo pela possibilidade de pensar acidentalmente em: Eu não me
importaria de tirar uma soneca para sempre, e que isso possa acontecer e seja irreversível,
da mesma forma como os meus avós costumavam me pôr medo dizendo que se eu fizesse uma
careta quando o relógio apontasse meio-dia, meu rosto ficaria daquele jeito para sempre.
Fico me perguntando se toda pessoa que está prestes a morrer tem de decidir entre ficar ou
partir. Parece algo improvável. Afinal, este hospital está cheio de gente que não para de
receber remédios em suas veias ou que são submetidas a operações terríveis só para poderem
ficar, mas algumas delas vão morrer de qualquer jeito.
Será que papai e mamãe também tiveram de decidir? Pelo que parece, dificilmente eles
tiveram tempo para tomar uma decisão tão instantânea e não consigo imaginá-los escolhendo
me deixar para trás. E Teddy? Será que ele quis partir com os meus pais? Será que ele sabia
que eu ainda estava aqui? Mesmo que soubesse, eu não poderia culpá-lo por partir sem mim.
Ele é apenas uma criança. E que, provavelmente, estava assustada. De repente, imagino-o
sozinho e assustado, e, pela primeira vez na minha vida, espero que vovó esteja certa sobre
esse lance de anjos. Rezo para que todos eles estejam muito ocupados consolando Teddy para
se preocuparem comigo.
Por que outra pessoa não pode tomar esta decisão por mim? Por que não posso ter um
procurador para isso? Ou por que não posso fazer como os times de beisebol fazem quando o
jogo está para acabar e eles precisam de um batedor para fazer os caras chegarem à primeira
base? Será que não posso conseguir um batedor para me substituir e me mandar para casa?
A vovó foi embora. Willow também. A UTI está tranquila. Fecho os olhos e, ao abri-los, vovô
está aqui. Chorando. Ele não faz qualquer tipo de barulho, mas as lágrimas escorrem,
molhando o rosto inteiro. Nunca vi ninguém chorando assim. É um choro silencioso, mas
intenso, como se houvesse uma torneira aberta por detrás de suas pálpebras. As lágrimas caem
sobre o meu cobertor e sobre o meu cabelo recém-penteado. Plink. Plink. Plink.
Vovô não enxuga as lágrimas tampouco assoa o nariz. Apenas deixa as lágrimas rolarem
como bem querem. E quando o poço de tristeza seca, ele dá um passo à frente e beija a minha
testa. Parece que está prestes a ir embora, mas então ele se inclina até que o seu rosto esteja
próximo ao meu ouvido e sussurra para mim:
— Tudo bem. Se você quiser partir — diz ele. — Todos nós queremos que você fique. Eu
quero que você fique mais do que já desejei qualquer outra coisa na minha vida. — De tão
emocionado, vovô diz isso com a voz embargada. Ele faz uma pausa, pigarreia, respira fundo
e continua: — Mas esta é a minha vontade e vejo que talvez possa não ser a sua. Então, eu só
queria dizer que entendo se você decidir partir. Tudo bem se tiver de nos deixar. Tudo bem se
você decidir parar de lutar.
Pela primeira vez desde que percebi que o Teddy se foi, sinto como se algo dentro de mim
se abrisse. Sinto a minha respiração. Sei que vovô não pode ser aquele rebatedor substituto o
qual desejei. Ele não vai desligar os meus aparelhos nem me matar com uma overdose de
remédios, nem nada desse tipo. Mas é a primeira vez hoje que alguém reconhece o que eu
perdi. Sei que a assistente social alertou meus avós para que evitassem me deixar nervosa,
mas o reconhecimento do vovô e a permissão que ele acaba de me oferecer soam como se
fosse um presente.
Vovô não vai embora. Ele despenca na cadeira. Agora tudo fica em silêncio. Tanto que
quase dá para escutar o sonho dos pacientes. Tão calmo que quase dá para me ouvir, dizendo:
— Obrigada, vovô.

***

Quando mamãe teve Teddy, papai ainda tocava bateria na mesma banda que tinha desde a
época da faculdade. Eles lançaram alguns CDs e até faziam uma turnê de shows todo verão.
Não eram lá uma banda de muito sucesso, mas tinham os seus seguidores no Noroeste e em
várias cidades universitárias que ficavam entre o Oregon e Chicago. E, o que era estranho,
eles tinham um punhado de fãs no Japão. Constantemente, a banda recebia cartas de
adolescentes japoneses que imploravam para que eles fossem tocar lá, e chegavam até a
oferecer suas casas como hospedagem. O papai sempre dizia que se fossem, ele teria de levar
eu e minha mãe. A mamãe e eu chegamos até a aprender algumas palavrinhas em japonês,
apenas para o caso de ele decidir ir. Konnichiwa. Arigatou. Mas eles nunca foram.
Depois que mamãe anunciou que estava grávida de Teddy, o primeiro sinal de mudança
aconteceu quando meu pai, por decisão própria, resolveu tirar a carteira de motorista, aos
trinta e três anos de idade. Ele tentou deixar que mamãe o ensinasse a dirigir, mas ela não
tinha muita paciência, segundo ele. Papai era muito sensível a críticas, de acordo com mamãe.
Então vovô colocou papai em sua picape e os dois saíram por ruas vazias numa região mais
afastada, do mesmo jeito que vovô tinha feito com o resto dos meus tios — só que quando eles
tinham dezesseis anos.
A próxima mudança foi o guarda-roupa do papai, mas isso foi algo que nenhum de nós
percebeu de imediato. Não foi como se um belo dia ele tivesse decidido se livrar da calça
jeans colada e das camisetas de bandas e trocá-las por ternos. Foi uma mudança sutil.
Primeiro, as camisetas de bandas começaram a ficar de lado e foram trocadas por camisas de
botão dos anos de 1950 que ele achava em bazares de caridade, até que elas voltaram à moda
e ele teve de começar a comprá-las em lojas sofisticadas. Depois, as calças jeans foram parar
no lixo, exceto uma que estava impecável, uma peça de lavagem azul-escura, da Levis e a qual
papai passava e usava nos fins de semana. Na maior parte dos dias, ele usava jeans com a
barra curta. Mas, depois de algumas semanas do nascimento de Teddy, quando o papai doou
sua jaqueta de couro — uma peça de motociclista muito preciosa para ele e que tinha um
cordão de leopardo —, finalmente percebemos que uma grande transformação estava
acontecendo.
— Cara, você não pode estar falando sério — disse Henry quando o papai entregou-lhe a
jaqueta. — Você usa essa jaqueta desde criança. Ela até tem o seu cheiro.
Papai deu de ombros, encerrando a conversa. Depois, ele saiu para pegar Teddy que estava
se esgoelando no carrinho.


Alguns meses depois, o papai anunciou que sairia da banda. A mamãe implorou para que ele
não fizesse isso. Ela disse que ele poderia continuar tocando desde que não se ausentasse em
turnês mensais, deixando-a sozinha com duas crianças. O papai disse que ela não precisava se
preocupar, e que ele não estava saindo por causa dela.
Os companheiros de banda do meu pai aceitaram a sua decisão numa boa, mas Henry ficou
transtornado. Ele tentou fazer o papai mudar de ideia. Prometeu que ele só tocaria quando a
banda se apresentasse na cidade, que não precisaria viajar com eles nas turnês, nem passar a
noite toda fora.
— A gente pode até começar a tocar de terno nos shows. Vamos parecer o Rat Pack.
Podemos até fazer um cover do Frank Sinatra. Fala sério, cara! — insistiu Henry.
Quando o papai se recusou a voltar atrás, ele e Henry tiveram uma briga feia. Henry ficou
furioso com o papai por deixar a banda de forma tão radical, principalmente porque a mamãe
havia dito que ele poderia continuar se apresentando nos shows. Papai disse a Henry que
lamentava, mas que já tinha tomado a sua decisão. Àquela altura, ele já tinha até se
matriculado na faculdade. Queria ser professor agora. Acabara a época das brincadeiras.
— Um dia você vai me entender — afirmou o papai.
— Não vou entender merda nenhuma! — esbravejou Henry.
Henry ficou sem falar com o papai por alguns meses depois disso. Willow aparecia em
casa de vez em quando, tentando amenizar a situação. Ela explicava para o papai que Henry
estava apenas tentando digerir as coisas. — Dê tempo a ele — disse ela, e o papai fingia não
estar magoado. Depois, ela e mamãe tomavam café na cozinha e trocavam sorrisos que
pareciam dizer: Os homens são tão infantis...
Henry finalmente reapareceu, mas não se desculpou com o papai, pelo menos não de
imediato. Anos depois, assim que a filha nasceu, Henry ligou uma noite para a nossa casa, aos
prantos: — Agora eu entendo — disse ele para o papai


Curiosamente, o vovô parecia mais chateado com a metamorfose do meu pai do que o próprio
Henry. Era de se imaginar que vovô amaria esse novo jeito do meu pai. Por fora, eles
pareciam tão tradicionais que era como se tivessem vivido numa outra era. Eles não usam
computador, nem assistem à TV a cabo, nunca falam palavrão e têm aquele jeito todo certinho
que faz com que você queira tratá-los com gentileza. Mamãe, que falava tanto palavrão quanto
um carcereiro, nunca usava essas palavras quando estava perto dos meus avós. Era como se
ninguém quisesse desapontá-los.
Vovó se divertiu com a mudança de estilo do meu pai.
— Se eu soubesse que todas essas coisas voltariam à moda, teria guardado as calças velhas
do seu avô — disse-me vovó numa tarde de domingo quando paramos lá para almoçar e papai
tirou sua capa de chuva, revelando sua calça social e um cardigã à la anos 1950.
— Não voltou à moda. É que hoje a moda é usar punk, então acho que essa é a maneira que
o seu filho aqui encontrou pra se rebelar de novo — disse mamãe com um sorriso forçado. —
Quem é que tem um pai rebelde? Seu pai é rebelde? — conversou mamãe com o Teddy,
naquela vozinha aguda que a gente usa para falar com os bebês. Teddy sorriu, todo contente.
— Bem, ele ficou bem elegante — opinou vovó. — Você não acha? — perguntou, virandose
para o vovô, que deu de ombros.
— Pra mim, ele sempre foi elegante. Todos meus filhos e netos são. — Mas ele pareceu
meio chateado ao dizer isso.


Naquela mesma tarde, algum tempo depois, saí com o vovô para ajudá-lo a pegar lenha. Foi
preciso cortar mais madeira, então eu fiquei observando-o enquanto ele golpeava os galhos
secos de carvalho com o machado.
— Vovô, o senhor não gostou das roupas novas do papai? — perguntei.
Vovô parou o machado no ar, no meio de um golpe. Depois o abaixou devagar, deixando-o
próximo ao banco em que eu estava sentada.
— Gosto das roupas do seu pai, Mia — respondeu ele.
— Mas você pareceu muito chateado quando a vovó comentou sobre elas.
Vovô balançou a cabeça.
— Você não perde um lance, não é? Mesmo tendo só dez anos.
— Não é difícil perceber. Quando o senhor está triste, demonstra.
— Não estou triste. O seu pai parece feliz e acho que ele vai dar um bom professor. Sorte
dos alunos que vão ouvir o seu pai lendo O grande Gatsby para eles. Só vou sentir falta da
música.
— Música? Mas o senhor nunca foi a nenhum show do papai.
— Meus ouvidos não são muito bons... depois da guerra. O barulho me incomoda.
— O senhor podia usar fone de ouvido. A mamãe faz eu usar também. O protetor de ouvido
não dá certo. Vive caindo.
— Talvez eu possa tentar. Mas sempre ouvi as músicas do seu pai e com o volume alto.
Admito que não gosto muito da guitarra. Não faz muito o meu gênero. Mas ainda assim, admiro
a música. As letras, especialmente. Quando tinha a sua idade, seu pai costumava aparecer com
histórias exageradas. Ele sentava numa mesinha que tinha e as escrevia, depois dava pra sua
avó datilografá-las, e depois desenhava figuras. Eram histórias engraçadas sobre animais, mas
eram reais e inteligentes. Elas sempre me faziam lembrar daquele livro que tem a história da
aranha e do porco... Qual é o nome, mesmo?
— Charlotte’s web?
— Esse mesmo. Sempre achei que o seu pai seria um escritor quando crescesse. E, de certo
modo, acho que ele de fato se tornou. As letras das músicas que ele compõe são como poesia.
Você já prestou atenção nas letras dele?
Balancei a cabeça, negando e me sentindo subitamente envergonhada. Eu não tinha
percebido que o papai compunha. Ele não cantava, então eu deduzia que eram as pessoas que
cantavam, que também escreviam as letras. Mas eu já tinha visto ele uma porção de vezes à
mesa da cozinha com o seu violão e um bloquinho de papel. Só não tinha associado uma coisa
à outra.


Naquela noite, quando chegamos em casa, fui para o meu quarto com o meu discman e os CDs
do papai. Verifiquei o encarte dos CDs para ver quais letras o papai havia escrito e, a seguir,
copiei meticulosamente todas elas. Só depois que as vi escritas no meu caderno de Ciências é
que me dei conta do que vovô quis dizer. As letras do meu pai não eram simplesmente rimas.
Tinham algo a mais. Havia uma música em particular chamada “À espera da vingança” que
ouvi repetidamente, até decorá-la. Fazia parte do segundo álbum da banda, foi a única música
lenta que eles gravaram e parecia até meio country, provavelmente fruto da breve paixonite
que Henry teve por cowpunk. Ouvi essa música tantas vezes que comecei a cantar sozinha sem
nem mesmo perceber.

Ora, mas o que é isso?
Aonde é que quero chegar?
E o que vou fazer?
Agora há um vazio
Onde antes os seus olhos brilharam
Mas isso já faz muito tempo
Desde ontem à noite
Mas o que foi aquilo?
E que som é esse que estou ouvindo?
É apenas a minha vida
Assoviando no meu ouvido
E quando olho para trás
Tudo parece menor do que a vida
Do jeito que tem sido há tanto tempo
Desde ontem à noite

Agora estou indo embora
A qualquer hora posso partir
Acho que você vai perceber
Acho que você vai se perguntar o que deu errado
Não estou escolhendo
Só estou fugindo da luta
E isso foi decidido há muito tempo
Desde ontem à noite

— O que é que você está cantando, Mia? — perguntou papai, que me pegou empurrando o
carrinho de Teddy pela cozinha numa tentativa inútil de fazê-lo dormir um pouco.
— A sua música — respondi com certa timidez, como se, de repente, estivesse me sentindo
uma bisbilhoteira por ter ultrapassado o território particular do meu pai. Mas será que havia
algo de errado em sair por aí cantando a música de outra pessoa sem a permissão dela?
O papai pareceu encantado.
— Minha Mia cantando “À espera da vingança” para o meu Teddy. O que você acha disso?
— Ele se inclinou para bagunçar o meu cabelo e fazer cócegas na bochecha rechonchuda do
Teddy. — Bem, não permita que eu a interrompa. Continue. Deixa que eu cuido dessa parte —
disse ele, pegando o carrinho.
Fiquei envergonhada de continuar cantando na frente dele agora. Continuei cantando, mas
numa espécie de murmúrio, foi então que papai se juntou a mim e continuamos a cantoria num
tom suave, até que Teddy caiu no sono. Depois, papai colocou um dedo sobre os lábios e fez
um gesto para que eu o acompanhasse até a sala.
— Quer jogar xadrez? — perguntou. Papai sempre tentava me ensinar a jogar, mas eu
sempre achei que era trabalho demais para um jogo simples.
— Que tal damas? — sugeri.
— Vamos!
Jogamos em silêncio. Quando era vez de o papai jogar, eu ficava observando-o
discretamente, tentando me recordar do cara com cabelo oxigenado e jaqueta de couro.
— Pai?
— O quê?
— Posso te perguntar uma coisa?
— Sempre.
— Você está triste porque saiu da banda?
— Não — respondeu.
— Nem um pouquinho?
Os olhos acinzentados do papai se cruzaram com os meus.
— Por que está me perguntando isso do nada?
— Conversei com o vovô sobre isso.
— Ah, sei.
— Sabe?
O papai balançou a cabeça, fazendo que sim.
— O seu avô acha que, de alguma forma, acabou me pressionando para mudar de vida.
— Ah, é?
— Acho que de uma forma indireta, ele fez isso mesmo. Por ser quem ele é, por me mostrar
o significado de ser pai.
— Mas você era um excelente pai mesmo quando ainda tocava na banda. O melhor pai do
mundo. Eu não gostaria que você largasse a banda por minha causa — confessei, me sentindo
subitamente com um nó na garganta. — E não acho que o Teddy gostaria também.
Papai sorriu e deu um tapinha na minha mão.
— Minha Mia. Não estou desistindo de nada. Não é uma questão de escolha entre uma coisa
e outra. Dar aula ou tocar. Jeans ou terno. A música sempre será uma parte da minha vida.
— Mas você saiu da banda! Parou de se vestir como punk!
Papai suspirou.
— Não foi difícil pra mim. Só deixei essa parte da minha vida para trás. Era a hora de fazer
isso. Nem cheguei a pensar duas vezes em fazer isso, ao contrário do que o seu avô e Henry
pensam. Às vezes você faz escolhas na vida e outras, as escolhas vêm até você. Faz sentido
para você?
Pensei sobre o violoncelo. E em como, por vezes, eu não entendia como tinha sido atraída
para ele, e em como, às vezes, parecia que o instrumento é que tinha me escolhido. Assenti,
sorri e voltei a me concentrar no jogo.

— Então vamos lá, quero ver você me vencer! — exclamei.

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