sexta-feira, 17 de outubro de 2014

04h57

Não consigo parar de pensar na música “À espera da vingança”. Já faz anos que ouvi essa
música, mas depois que vovô saiu de perto da minha cama, fiquei cantando-a para mim
mesma, sem parar. Papai escreveu essa música há anos, mas agora sinto como se a tivesse
escrito ontem. Como se tivesse escrito do lugar de onde está agora. Como se houvesse uma
mensagem oculta para mim nessa letra. Que outra explicação pode haver? Não estou
escolhendo. Só estou fugindo da luta.
O que isso significa? Seria algum tipo de conselho? Alguma pista do que os meus pais
escolheriam para mim se pudessem fazê-lo? Tento pensar nisso pelo ponto de vista deles. Sei
que eles gostariam de ficar comigo e que todos nós ficássemos juntos de novo. Mas não faço a
menor ideia se isso acontece depois que morremos, e, se for assim, se acontecerá nessa manhã
ou daqui setenta anos. O que eles esperariam de mim agora? Depois que formulo a pergunta,
posso imaginar a cara de raiva da mamãe. Ela ficaria com o rosto pálido só de pensar que eu
consideraria qualquer outra possibilidade que não fosse ficar. Mas o papai, ele sim entenderia
o significado de desistir da luta. Talvez, assim como vovô, ele compreenderia por que acho
que não posso ficar.
Estou escutando a música, como se estivesse mergulhada na letra e nas instruções que ela
traz, uma rota musical que indica para onde eu devo ir e como chegar até lá.
Canto e me concentro, canto e penso tanto na letra que mal percebo que Willow voltou para
a UTI, mal percebo que ela está conversando com a enfermeira rabugenta, e mal reconheço o
tom de determinação em sua voz.
Se eu estivesse prestando atenção, perceberia que a Willow está tentando conseguir
autorização para Adam vir me visitar. Se eu estivesse prestando atenção, talvez tivesse
conseguido sair antes que Willow — como sempre — conseguisse o que queria.
Não quero ver o Adam agora. Melhor dizendo, é claro que quero. Preciso. Mas sei que se
eu o vir, vou perder o último fio de tranquilidade que vovô deixou comigo ao me dizer que
tudo bem se eu quiser partir. Estou tentando reunir forças para fazer o que tem de ser feito. E
Adam só vai complicar as coisas. Tento ficar de pé para sair, mas algo aconteceu comigo
desde que voltei da cirurgia. Não tenho mais forças para me movimentar. Ainda assim,
preciso reunir todas as que me restam para me sentar na cadeira. Não consigo sair correndo;
tudo que posso fazer é me esconder. Dobro os joelhos na altura do peito e fecho os olhos.
Ouço a enfermeira Ramirez conversando com Willow.
— Vou levá-lo até onde ela está — diz ela.
E pelo menos desta vez, a enfermeira rabugenta não manda Willow voltar para os seus
próprios pacientes.
— Aquilo que você fez ontem foi uma grande besteira! — Ouço-a dizer para Adam.
— Eu sei — responde ele. A voz dele soa como um sussurro rouco, como costuma ficar
depois que se grita muito num show. — Estava desesperado.
— Não. Você foi romântico.
— Fui um idiota. Eles disseram que antes disso ela estava melhor, que já estava respirando
sem a ajuda dos aparelhos. Que estava mais forte. Mas foi depois que vim até aqui que ela
começou a piorar. Disseram que o coração dela parou na mesa de cirurgia...
A voz de Adam quase desaparece.
— Mas fizeram ele funcionar de novo. Mia estava com o intestino perfurado, e isso
prejudicou o bom funcionamento dos órgãos. Essas coisas acontecem com frequência, e não
tem nada a ver com você. Identificamos o problema e conseguimos solucioná-lo. É isso que
importa.
— Mas ela estava melhor — sussurra Adam. Ele parece tão jovem e tão vulnerável, como
Teddy ficava quando estava doente. — E aí eu apareci e ela quase morreu.
Agora, Adam engasga num soluço. O som me faz acordar como se um balde de água gelada
tivesse sido jogado em cima de mim. Adam acha que foi ele quem me deixou assim? Não! Que
absurdo! Ele está redondamente enganado.
— E pensar que eu quase fiquei em Porto Rico pra me casar com um filho da puta gordo!
— desabafa a enfermeira. — Mas não fiquei. E agora tenho uma vida diferente. O quase não
importa. É preciso encarar a situação real, do jeito que ela se apresenta no momento presente.
E a Mia continua aqui. — Ela abre a cortina que envolve a minha cama. — Agora entre —
pede a Adam.
Esforço-me para erguer a cabeça e abrir os olhos. Deus do céu, mesmo neste estado, ele
continua lindo. Seus olhos estão fundos de cansaço. A barba cresceu um pouco, o bastante
para me arranhar caso nos beijássemos. Adam está vestindo o seu típico uniforme da banda,
uma camiseta, calça jeans justa, tênis All Star e um cachecol xadrez de vovô nos ombros.
Logo que me vê, ele fica pálido, como se tivesse na frente de uma criatura horrenda da
Lagoa Negra. E de fato estou muito feia, com um aparelho ligado em mim que me ajuda a
respirar e mais uma dúzia de outros tubos, além do curativo da última cirurgia que está sujo de
sangue. Mas depois de algum tempo, Adam solta a respiração e volta a ser o Adam de sempre.
Ele olha ao seu redor, como se tivesse deixado alguma coisa cair, até que encontra o que está
procurando: a minha mão.
— Meu Deus, Mia! A sua mão está um gelo! — Ele se inclina, pega também a minha mão
direita com cuidado para não encostar nos tubos e nos fios, aproxima a boca e começa a
soprá-las para aquecê-las. — Você e essas suas mãos malucas. — Adam sempre fica surpreso
quando vê que as minhas mãos, mesmo em pleno verão e mesmo depois dos nossos encontros
mais quentes, continuam geladas. Digo a ele que é má circulação, mas ele não acredita muito
porque os meus pés geralmente estão sempre quentinhos. Adam diz que tenho mãos biônicas e
que é por isso que sou uma violoncelista tão boa.
Observo enquanto ele aquece as minhas mãos, do jeito que ele sempre fez. Penso na
primeira vez em que ele fez isso, na escola, sentado no gramado, como se aquilo fosse a coisa
mais natural do mundo. Lembro-me também da primeira vez que ele fez isso na frente dos
meus pais. Estávamos sentados na varanda, na véspera do Natal, tomando cidra. Estava muito
frio lá fora. Adam agarrou as minhas mãos de repente e começou a soprá-las. Teddy achou
engraçado e deu risada. A mamãe e o papai não disseram nada, só trocaram um olhar; alguma
coisa se passou na cabeça dos dois, não sei exatamente o que, então mamãe sorriu para nós
com certa melancolia.
Fico me perguntando se conseguiria sentir o toque dele. Se eu me deitar em cima do meu
corpo agora, será que voltaria a ser uma só? Poderia senti-lo? Se eu esticasse a minha mão até
a dele, será que ele poderia me sentir? Será que Adam conseguiria aquecer as mãos que ele
não pode ver?
Adam solta a minha mão e dá um passo à frente para me olhar. Ele está tão pertinho de mim
que quase consigo sentir o seu cheiro e sinto uma vontade louca de tocá-lo. É uma vontade
primitiva, natural, avassaladora, do mesmo jeito que um bebê sente a necessidade de tocar o
seio da mãe. Mas ainda assim, sei que se nos tocarmos, um novo cabo de guerra surgirá — um
que será ainda mais doloroso do que aquele que Adam e eu estávamos segurando nos últimos
meses.
Adam começa a murmurar alguma coisa. Com a voz bem baixa. Ele não para de repetir: por
favor. Por favor. Por favor. Por favor. Por favor. Por favor. Por favor. Por favor. Por
favor. Por favor. Por fim, ele para e olha bem para o meu rosto:
— Por favor, Mia — implora. — Não me faça escrever uma música.


***

    Jamais pensei que me apaixonaria. Nunca fui o tipo de garota que tinha paixonites por estrelas
do rock ou que fantasiava em se casar com o Brad Pitt. Eu sabia que algum dia provavelmente
eu teria namorados (na faculdade, de acordo com as predições de Kim) e que me casaria. Não
estava totalmente imune aos encantos do sexo oposto, eu era uma daquelas garotas românticas
que tinha sonhos cor-de-rosa sobre o amor.
    Mesmo quando eu estava me apaixonando — aquela paixão intensa e estonteante que você
não consegue esconder porque não tira o sorriso bobo do rosto —, nem me dei conta do que
estava acontecendo. Quando estava com Adam, pelo menos depois daquelas primeiras e
estranhas semanas, me senti tão bem que não me incomodei em pensar sobre o que estava
acontecendo comigo, com a gente. É que tudo parecia tão normal e certo quanto tomar um
banho quente com muita espuma. O que não significa que não tivemos lá umas brigas.
Brigávamos por várias coisas: porque ele não era muito legal com a Kim, porque eu era
antissocial nos shows dele, porque ele dirigia em alta velocidade e por causa da minha mania
de puxar a coberta toda para mim. Eu ficava brava porque ele nunca escreveu uma música
para mim. Adam alegava que não era muito bom com músicas bobinhas que falam de amor:
— Se quer que eu escreva uma música para você, vai ter que me trair ou alguma coisa
desse tipo — dizia ele, já sabendo muito bem que isso não aconteceria.


Contudo, no outono passado, Adam e eu começamos a ter um tipo diferente de briga. Na
verdade, nem chegava a ser uma briga. Não gritávamos e praticamente não discutíamos, mas
uma certa tensão pairava no ar, entre nós. E parece que tudo começou com a minha audição
para tentar entrar na Juilliard.
— E aí, acabou com eles? — perguntou-me Adam quando eu voltei. — Vão admitir você
com bolsa integral?
Tive a sensação de que tinha, pelo menos, passado no teste — mesmo antes de contar à
professora Christie sobre aquele avaliador que disse: “Faz tempo que não vemos uma
interiorana de Oregon por aqui”, mesmo antes de ela começar a espalhar porque estava
totalmente convencida de que aquela era uma promessa sutil de que eu seria admitida. Algo
aconteceu enquanto me apresentei naquela audição; quebrei alguma barreira invisível e pude
finalmente tocar as peças da maneira como elas soavam na minha cabeça, e o resultado foi
transcendental: os lados mental e físico, técnico e emocional das minhas habilidades tinham
finalmente se integrado. Depois, no caminho de volta para casa, quase na fronteira entre a
Califórnia e Oregon, tive uma visão repentina na qual me vi carregando o meu violoncelo pela
cidade de Nova York. E foi como se eu já soubesse disso, e essa certeza se instalou em mim.
Não sou o tipo de pessoa que costuma ter premonições ou excesso de confiança, por isso
suspeitei que houvesse algo a mais naquela visão do que simplesmente um devaneio.
— Ah, fui mais ou menos — respondi para Adam e quando o fiz, percebi que havia mentido
para ele pela primeira vez, e aquela foi uma mentira diferente de todas as omissões que eu já
havia cometido antes.
Para começo de conversa, eu não tinha contado ao Adam que eu me inscreveria para a
Juilliard, o que de fato foi muito pior do que parecia. Antes de me inscrever, tive de usar
todos os meus momentos livres para praticar com a professora Christie e fazer os ajustes
finais do concerto de Shostakovich e das duas Suítes de Bach. Quando Adam me perguntou
por que eu estava tão ocupada, inventei umas desculpas bobas dizendo que estava tentando
aprender a tocar umas peças difíceis. Tentei justificar para mim mesma que aquilo era
tecnicamente verdade. E a professora Christie conseguiu agendar para mim uma sessão de
gravação na universidade, então eu pude enviar um material de alta qualidade para a Juilliard.
Eu tinha de chegar ao estúdio às sete horas da manhã aos domingos, e nas noites de sábado eu
inventava que não me sentia muito bem e dizia a Adam que era melhor que ele não ficasse
para passar a noite comigo. Também dei um jeito de justificar essa outra mentira para mim
mesma. Eu não estava de fato me sentindo muito bem porque estava muito ansiosa, então não
era bem uma mentira. E, além disso, eu achava que não havia motivo nenhum para causar
alarde. Eu também não tinha contado a Kim, então não era como se só o Adam estivesse sendo
enganado.
Mas depois que contei a ele sobre a audição, tive a sensação de que eu estava caminhando
sobre uma areia movediça e que se desse mais um passo, não haveria como me livrar dela e
então, me afogaria de vez. Assim, respirei fundo e me obriguei a voltar para a terra firme.
— Pra ser sincera, não é verdade — confessei. — Eu me saí muito bem. Toquei muito
melhor do que eu já havia tocado em toda a minha vida. Foi como se eu estivesse possuída.
A primeira reação de Adam foi sorrir, cheio de orgulho.
— Queria ter visto isso. — Mas então, seus olhos se entristeceram e ele franziu o cenho. —
Por que você não me contou logo isso? Por que não me ligou depois da audição pra me contar
a novidade? — indagou ele.
— Não sei — respondi.
— Bem, vejo que essa é uma grande novidade — prosseguiu Adam, tentando esconder a
mágoa. — Devemos comemorar.
— Tudo bem, vamos sim — falei com uma alegria forçada. — Podemos ir para Portland no
sábado, passar no Japanese Garden e depois jantar no Beau Thai.
Adam fez uma careta.
— Não posso. Neste fim de semana vou tocar no Olympia, em Seattle. Uma turnê pequena,
lembra? Adoraria que você viesse comigo, mas não sei se isso seria realmente uma
comemoração para você. Volto logo, no domingo à tarde. Posso te encontrar em Portland no
domingo à noite, se você quiser.
— Não vai dar. Vou tocar no quarteto de cordas na casa de um professor. Que tal o próximo
fim de semana?
Adam pareceu lamentar.
— Nos próximos fins de semana estaremos no estúdio, mas podemos sair para algum lugar
durante a semana. Por aqui mesmo. Que tal aquele restaurante mexicano?
— Claro. O restaurante mexicano.
Dois minutos antes, eu não queria nem mesmo comemorar, mas agora estava me sentindo
triste e insultada por ter sido relegada a um jantarzinho no meio da semana e no mesmo lugar
de sempre, o mesmo que costumávamos ir.
Quando Adam se formou no Ensino Médio na primavera passada e mudou-se da casa dos
pais para o Porão do Rock, não achei que as coisas mudariam muito. Ele continuaria morando
perto de mim. Continuaríamos a nos encontrar com frequência. Eu sentiria falta dos nossos
bate-papos na sala de música, mas também me sentiria aliviada porque a nossa relação sairia
do foco do colégio.
Mas as coisas mudaram quando o Adam foi para o Porão do Rock e começou a faculdade,
embora tenham mudado não pelas razões que imaginei. No início do inverno, no momento em
que Adam começava a se acostumar com a vida da faculdade, de repente, as coisas
começaram a esquentar para a Shooting Star. Eles receberam um convite para assinar contrato
com uma gravadora de médio porte localizada em Seattle e agora ficavam ocupados nos
estúdios de gravação. Além disso, a banda estava fazendo muito mais shows e a multidão de
fãs era cada vez maior, aumentando praticamente todos os fins de semana. As coisas estavam
tão agitadas que Adam teve de abandonar metade das disciplinas do seu curso e começou a
frequentar a faculdade meio-período e, se as coisas continuassem assim, ele teria de trancar
de vez.
— Não vou ter outra escolha — desabafou para mim.
Eu estava realmente muito empolgada por ele. Sabia que a Shooting Star não era só mais
uma bandinha universitária da cidade, era uma banda especial. Não ligava para as ausências
cada vez mais frequentes dele, especialmente porque Adam deixava muito claro o quanto o
incomodava ficar longe de mim. Mas, de algum modo, a possibilidade de eu ir para a Juilliard
fez as coisas mudarem — fez com que eu começasse a me importar. O que não fazia o menor
sentido porque isso serviria pelo menos para nos deixar numa situação de igual para igual, já
que agora havia algo de empolgante acontecendo comigo também.
— Podemos ir para Portland daqui algumas semanas — prometeu Adam. — Quando toda a
decoração de Natal estiver pronta.
— Tudo bem — respondi sem o menor entusiasmo.
Adam suspirou.
— As coisas estão ficando complicadas, não é?
— É. Estamos com as agendas muito ocupadas.
— Não foi isso que eu quis dizer — retrucou Adam, virando o meu rosto para que assim eu
pudesse olhar bem nos olhos dele.
— Sei que não foi isso que você quis dizer — retruquei, mas então senti um nó na garganta
e não consegui dizer mais nada.


Tentamos aliviar a tensão, conversar sobre ela sem de fato falar sobre ela.
— Sabe, li no US News and World Report que a Willamette University tem um excelente
programa de música — disse Adam. — Fica em Salem, que aparentemente está ficando cada
vez mais na moda.
— De acordo com a opinião de quem? Do governador? — rebati.
— Liz encontrou umas coisas legais numa loja de roupas vintage que tem lá. E, você sabe,
quando começam a aparecer essas coisas, é sinal que o lugar está se modernizando.
— Mas você esquece que eu não faço nem um pouco o tipo moderninha — lembro-o. —
Mas já que estamos falando nisso, talvez a Shooting Star deva se mudar para Nova York.
Digo, afinal, a cidade é o coração do cenário punk. Ramones. Blondie.
Eu disse isso com um tom de voz frívolo e ao mesmo tempo sedutor.
— Isso foi há trinta anos — reagiu Adam. — E mesmo se eu quisesse mudar para Nova
York, tenho certeza de que o resto do pessoal da banda não aceitaria isso.
Ele ficou olhando melancolicamente para os próprios sapatos, e foi então que percebi que a
parte da brincadeira da conversa tinha acabado. Senti o meu estômago embrulhado, um
aperitivo que antecedeu a porção cheia de mágoa que estava por vir.
Adam e eu nunca fomos muito o tipo de casal que conversa sobre o futuro, nem sobre os
planos do nosso relacionamento, mas, como as coisas entre nós, de repente, começaram a ficar
obscuras, evitávamos falar sobre qualquer coisa que estava para acontecer num período maior
do que as próximas semanas. Isso fez com que as nossas conversas se tornassem artificiais e
estranhas, exatamente como no começo do nosso relacionamento quando ainda tentávamos
encontrar uma maneira de nos comunicar melhor. Uma tarde, no outono, vi na vitrine um
vestido de seda lindo, dos anos de 1930, na mesma loja vintage onde papai comprava seus
ternos. Quase o mostrei para Adam e perguntei se ele achava que eu poderia usá-lo na
formatura, mas a formatura só seria em junho, e talvez Adam estivesse viajando com as suas
turnês ou talvez eu estivesse ocupada demais com os preparativos para a Juilliard, então
resolvi não dizer nada. Não muito tempo depois disso, Adam reclamou que a guitarra dele
estava ficando muito batida e disse que queria uma Gibson SG. Eu disse a ele que compraria e
lhe daria de presente de aniversário, mas Adam afirmou que aquele tipo de guitarra custava
milhares de dólares e que, além disso, o aniversário dele era só em setembro. O jeito com que
ele disse “setembro” soou como um juiz decretando uma sentença de prisão.


Faz algumas semanas, fomos a uma festa de Réveillon juntos. Adam ficou bêbado, e quando
bateu meia-noite, ele me deu um beijaço.
— Vai, promete que vai passar o próximo Réveillon comigo — sussurrou no meu ouvido.
Estava a ponto de explicar que mesmo que eu fosse admitida na Juilliard, passaria o Natal e
o Ano-Novo em casa, mas então percebi que a questão não era essa. Então fiz a promessa
conforme ele pediu, porque eu queria que ela se cumprisse tanto quanto Adam. Depois retribuí
o beijo com a mesma intensidade, como se quisesse fundir o meu corpo com o dele através
dos nossos lábios.
No dia do Ano-Novo, cheguei em casa e encontrei toda a minha família na cozinha, reunida,
além de Henry, Willow e o bebê deles. O papai estava preparando o café da manhã: picadinho
de salmão, sua especialidade.
Henry balançou a cabeça ao me ver:
— Vejam só essas crianças. Parece que foi ontem que chegar em casa às oito era cedo.
Hoje em dia eu seria capaz de matar alguém para poder dormir até as oito.
— Nem conseguimos ficar acordamos até a meia-noite — admitiu Willow, embalando o
bebê no colo. — O que foi até bom porque a mocinha aqui quis começar a comemorar o Ano-
Novo às cinco e meia.
— Eu fiquei acordado até meia-noite! — gritou Teddy. — Eu vi aquela bola caindo quando
deu meia-noite. É em Nova York, sabia? Se você mudar pra lá, vai me levar para ver a bola
ao vivo? — perguntou ele.
— Claro que vou, Teddy — respondi, fingindo entusiasmo. A ideia de mudar para Nova
York parecia cada vez mais real e, embora essa ideia geralmente me deixasse nervosa,
confusa e entusiasmada ao mesmo tempo, imaginar Teddy e eu juntos na véspera do Ano-Novo
me trouxe uma sensação insuportável de solidão.
Mamãe olhou para mim, sobrancelhas arqueadas.
— Hoje é o primeiro dia do ano, então não estou nem um pouco preocupada com a hora que
você chegou em casa, mas se você estiver de ressaca, vai ficar de castigo.
— Não estou. Só bebi uma cerveja. Só estou meio cansada.
— Só meio cansada? Tem certeza?
Mamãe agarrou o meu pulso e me virou para ela. Ao ver a minha expressão abatida, ela
inclinou a cabeça um pouco para o lado como se quisesse dizer: “Você está bem?”. Dei de
ombros e mordi os lábios para me controlar. Mamãe balançou a cabeça, me deu uma xícara de
café e me levou até a mesa. Depois me serviu um prato de salmão e uma fatia grossa de pão, e
mesmo achando que não estava com um pingo de fome, fiquei com água na boca, meu
estômago roncou e, de repente, me senti muito faminta. Comi em silêncio, e mamãe ficou me
observando o tempo todo. Depois que todos terminaram, ela pediu para que fossem para a sala
assistir à Rose parade na TV.
— Todo mundo! Para a sala! — ordenou ela. — Mia e eu vamos lavar a louça.
Assim que todos saíram, mamãe se virou para mim e eu simplesmente desmoronei em cima
dela, aos prantos, aliviando a tensão e a incerteza que eu vinha carregando nas últimas
semanas. Mamãe ficou parada, em silêncio, me deixando ensopar o seu suéter. Quando parei,
ela me entregou a esponja.
— Você lava, eu seco. Vamos conversar enquanto isso. Água morna e sabão. Isso sempre
serviu como um calmante pra mim.
Mamãe pegou o pano de prato e começamos a trabalhar. Contei-lhe sobre Adam e eu:
— Parece que esse um ano e meio em que estamos juntos foram os meses mais perfeitos do
mundo — falei. — Tanto que nunca cheguei a pensar sobre o futuro. Sobre as direções
diferentes que cada um de nós poderia tomar.
Mamãe sorriu. Um sorriso triste e ao mesmo tempo de quem entendia exatamente o que eu
estava falando.
— Eu pensei nisso.
Virei para ela. Minha mãe estava olhando para a janela, observando dois pardais que
estavam se banhando numa poça d’água.
— Lembro do ano passado, quando Adam veio para passar a véspera do Natal com a gente.
Disse para o seu pai que vocês tinham se apaixonado cedo demais.
— Já sei, já sei. O que uma garotinha estúpida conhece sobre o amor?
Mamãe parou de secar uma frigideira.
— Não foi isso que eu quis dizer. Eu quis dizer exatamente o contrário. O seu
relacionamento com o Adam nunca me pareceu um romancezinho de colégio — retrucou a
mamãe fazendo um símbolo de aspas com as mãos. — Não tem nada a ver com encher a cara
na caçamba de uma picape como acontecia com os relacionamentos na minha época de
colégio. Vocês dois pareciam, e ainda parecem, apaixonados, um amor verdadeiro e profundo.
— Ela suspirou. — Mas dezessete anos não é uma idade nada conveniente para se apaixonar.
Isso me fez sorrir e aliviou ligeiramente o desconforto no estômago.
— Nem me fale. E se nós dois não fôssemos músicos, poderíamos ir para a faculdade
juntos e tudo ficaria bem — confessei.
— Isso seria fugir do problema, Mia — ponderou mamãe. — Todo relacionamento tem suas
dificuldades. Assim como a música, às vezes se tem harmonia e outras, cacofonia. Eu não
preciso lhe explicar sobre isso.
— Sim, acho que tem razão.
— E, por favor, foi a música que uniu vocês. Foi isso que eu e seu pai sempre pensamos.
Vocês dois são apaixonados por música e então se apaixonaram um pelo outro. Foi mais ou
menos como aconteceu comigo e com o seu pai. Eu não tocava nada, mas escutava.
Felizmente, eu era um pouco mais velha que ele.
Nunca contei para mamãe o que Adam havia dito naquela noite do concerto do Yo-Yo Ma
quando perguntei a ele: “Por que eu?”, assim como nunca contei que a música fazia totalmente
parte disso.
— É, mas agora sinto como se a música estivesse a ponto de nos separar.
Mamãe balançou a cabeça.
— Bobagem! A música não faz isso. A vida, essa sim pode fazer vocês dois tomarem rumos
diferentes. Mas cabe a cada um de vocês escolher que caminho quer seguir. — Ela se vira e
olha bem para mim. — Adam não está tentando te impedir de ir pra Juilliard, está?
— Não mais do que eu estou tentando fazer com que ele mude para Nova York. E de
qualquer forma, essa hipótese é ridícula. Pode ser que eu nem vá.
— Sim, pode ser que não. Mas com certeza, você vai para algum lugar. Acho que todos nós
sabemos disso. E o mesmo é válido para Adam.
— Pelo menos ele pode ir para um lugar diferente e continuar morando aqui.
A mamãe deu de ombros.
— Talvez. Pelo menos por enquanto.
Levo as mãos ao rosto e balanço a cabeça.
— O que vamos fazer? — lamento. — Sei que estou bem no meio de um cabo de guerra.
Mamãe me ofereceu um olhar de solidariedade.
— Não sei. Mas se você quer ficar com ele, eu a apoiaria, embora eu só esteja dizendo isso
porque não acho que você seja capaz de desistir de Juilliard. Mas eu entenderia se você
escolhesse o amor, o amor do Adam em vez do amor pela música. Seja qual for a sua escolha,
vai sair ganhando. Assim como também vai sair perdendo. O que eu posso te dizer? O amor é
uma merda.


Adam e eu conversamos mais uma vez sobre o assunto. Fomos para o Porão do Rock e
sentamos em um futon. Adam ficou dedilhando uma música no violão.
— Pode ser que eu não consiga entrar — disse para ele. — Talvez eu acabe aqui, e entre na
faculdade com você. De certa forma, espero que não me chamem, porque aí não vou precisar
escolher.
— Se você entrar, a escolha já vai estar feita, não é? — perguntou Adam.
E já estava mesmo. Eu iria. E isso não significava que deixaria de amar Adam nem que nós
terminaríamos, mas tanto mamãe quanto papai estavam certos. Eu não abriria mão da Juilliard.
Adam ficou em silêncio por um minuto, dedilhando notas tão altas no violão que quase não
o escutei quando ele falou:
— Não quero ser o cara que vai dizer para você não ir. Se eu estivesse nessa situação, você
me deixaria ir.
— Eu já deixei. De certa forma, você já foi. Para a sua própria Juilliard — pontuei.
— Eu sei — afirmou Adam com a voz baixa. — Mas eu continuo aqui. E continuo
perdidamente apaixonado por você.
— Eu também.
E então, paramos de falar por um momento enquanto Adam executava alguma melodia
desconhecida. Perguntei o que estava tocando.
— Se chama “O blues da namorada que vai para Juilliard e deixa o meu coração de
roqueiro aos pedaços” — explicou ele, cantando o título num tom de voz exageradamente
agudo.
Depois, Adam me deu aquele sorriso bobo, acanhado e sincero que vinha bem do fundo do
coração.
— Estou brincando — falou.
— Acho bom.
— Quer dizer, mais ou menos — acrescentou ele.


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