sexta-feira, 17 de outubro de 2014

07h09

Todos pensam que foi por causa da neve. E, de certa forma, creio que estejam certos.
Hoje de manhã acordei e deparei-me com um cobertor branco de neve cobrindo o nosso
jardim. Não chega a medir três centímetros de espessura, mas, nesta região de Oregon, um
simples grão de poeira faz com que tudo pare enquanto o único trator limpa-neve do município
trabalha para limpar as estradas. São gotas que caem do céu — e caem, caem, caem —, mas
não é granizo nem flocos de neve.
É neve o bastante para cancelar as aulas da escola. Meu irmão mais novo, Teddy, solta um
grito de guerra quando ouve a rádio AM anunciar que as escolas permanecerão fechadas.
— Teremos neve o dia inteiro! — exclama ele. — Papai, vamos fazer um boneco de neve!
Meu pai sorri e tamborila os dedos no seu cachimbo. Ele começou a fumar recentemente
como parte da nova fase em que se encontra, que é retrô, meio anos 1950, Papai sabe tudo.
Agora ele também usa gravata-borboleta. Nunca sei ao certo se isso faz parte da indumentária
mesmo ou se é pura gozação — refiro-me a esse jeito que o meu pai tem de demonstrar que
antes era um punk, mas que agora é um professor de inglês —, ou, ainda, se o fato de ser
professor realmente o transformou num autêntico conservador. Mas gosto do cheiro de tabaco
do cachimbo dele. É adocicado, fumacento e me faz lembrar do inverno e do fogão a lenha.
— Será uma tentativa corajosa de sua parte — diz meu pai a Teddy. — Mas a neve mal
cobriu o chão. Talvez seja melhor pensar numa ameba de neve.
Posso ver que o meu pai está feliz. Basta caírem do céu dois floquinhos de neve para que
todas as escolas da região fiquem fechadas, inclusive aquelas onde meu pai leciona para os
Ensinos Fundamental e Médio, o que significa uma folga inesperada para ele também. Minha
mãe, que trabalha numa agência de viagens no centro, desliga o rádio e se serve da segunda
xícara de café.
— Ora, se vocês todos vão cabular aula, eu também não vou para o trabalho. Não é justo.
Ela pega o telefone para avisar que não vai. Quando termina a ligação, olha para nós.
— Sou eu quem tem que preparar o café?
Papai e eu gargalhamos ao mesmo tempo. A mamãe prepara o cereal e as torradas. Papai é
o cozinheiro da família.
Fingindo não nos ouvir, ela estica o braço até o armário, à procura da caixa de Bisquick.
— Vamos lá. Será que é tão difícil assim? Quem quer panqueca?
— Eu quero! Eu quero! — grita Teddy. — Podemos colocar gotas de chocolate nelas?
— Por que não? — responde mamãe.
— Eba! — grita Teddy, agitando os braços no ar.
— Você está agitado demais pra esta hora da manhã — provoco. Viro para a minha mãe. —
Talvez não devesse deixar Teddy beber tanto café.
— Troquei o café dele por descafeinado — explica mamãe. — Essa é a exuberância natural
dele.—
Bom, contanto que não mude o meu café também, está tudo certo — digo.
— Isso seria maus-tratos infantil — diz papai.
Minha mãe me entrega uma caneca fumegante e o jornal.
— Tem uma foto muito bonita do seu namoradinho aqui — diz ela.
— Sério? Uma foto?
— Sim. É tudo que vimos sobre ele desde o último verão — acrescenta ela, me lançando
um olhar de soslaio com a sobrancelha arqueada, o típico olhar que ela faz quando quer
vasculhar a sua alma.
— Eu sei — digo e, em seguida, suspiro, mesmo sem querer. A banda de Adam, a Shooting
Star, está começando a ficar famosa, o que é ótimo (na maior parte do tempo).
— Ah! A fama, desperdiçada na juventude — diz meu pai, mas com um sorriso no rosto.
Sei que ele se entusiasma por Adam. E sente orgulho também.
Viro a página do jornal e vou até o caderno de entretenimento. Há uma pequena resenha
sobre a Shooting Star, com uma foto ainda menor dos quatro integrantes, ao lado de um artigo
imenso sobre a Bikini e uma foto enorme da vocalista da banda: a diva punk rock, Brooke
Veja. O texto sobre a banda local Shooting Star basicamente diz que eles farão a abertura do
show de Portland, durante a turnê nacional da Bikini. Nem sequer menciona o que para mim é
a grandiosa notícia: ontem à noite a Shooting Star se apresentou num clube em Seattle e,
segundo a mensagem de texto que Adam me enviou à meia-noite, todos os ingressos para a
apresentação foram esgotados.
— Você vai hoje à noite? — pergunta papai.
— Pretendo. Vai depender se vão mandar fechar o estado inteiro por causa da neve.
— Uma nevasca está se aproximando — avisa o meu pai, apontando para um único floco de
neve que cai, se aproximando do chão.
— Também tenho que ensaiar com alguns pianistas da faculdade que a professora Christie
arrumou.
Christie, uma professora universitária de música, aposentada e com quem tenho aulas há
alguns anos, está sempre à procura de vítimas que toquem comigo. — Quero manter você
afiada. Assim, poderá mostrar a esses esnobes da Juilliard School como é que se faz — diz
ela. Ainda não entrei na Juilliard, mas meu recital estava indo muito bem. A Suíte de Bach e a
de Shostakovich foram tocadas por mim como nunca haviam sido, como se os meus dedos
fossem nada além de uma extensão das cordas e do arco. Quando terminei de tocar, ofegante,
minhas pernas tremiam de tanto pressionar o instrumento e um avaliador aplaudiu
ligeiramente, o que, imagino, não acontece com muita frequência. Enquanto me levantava, o
mesmo avaliador me disse que havia muito tempo a escola não “via uma garota interiorana de
Oregon” tocar daquela forma. A professora Christie considerou o comentário uma garantia de
aprovação. Eu não tive tanta certeza assim. E não estava totalmente segura de que o meu
desejo fosse mesmo a verdade. Bem como a ascensão meteórica da Shooting Star, a minha
admissão na Juilliard — se acontecesse — criaria algumas complicações, ou, para ser mais
precisa, dificultaria ainda mais as coisas que vinham surgindo nos últimos meses.
— Preciso de mais café. Alguém quer mais? — ofereceu mamãe, pairando sobre mim com a
cafeteira antiga.
Sinto o cheiro do café, forte, escuro e oleoso, o tipo que todos nós preferimos. Só o cheiro
já me anima.
— Acho que vou voltar pra cama — digo. — Meu violoncelo está na escola, então não
posso nem praticar.
— Não pode praticar? Quarenta e oito horas sem praticar? Oh, será que meu coraçãozinho
vai aguentar? — provoca minha mãe. — É como aprender a apreciar um queijo fedorento —
compara. Embora ela tenha adquirido gosto pela música clássica ao longo dos anos, não é lá
uma plateia que se sente sempre deleitada com a minha maratona de ensaios.
Ouço uma batida e um estrondo vindo do andar de cima. Teddy está tocando sua bateria.
Era do meu pai, quando ele tocava em uma banda muito famosa na nossa cidade e
desconhecida em qualquer outro lugar e quando ainda trabalhava numa loja de discos.
Papai sorri ao ouvir o ruído de Teddy e, ao ver aquilo, sinto uma angústia familiar. Sei que
pode ser idiotice de minha parte, mas sempre me perguntei se o papai se sentia frustrado por
eu não ter me tornado roqueira. Esta era a minha intenção, também. Até que, na terceira série,
me deparei com o violoncelo durante as aulas de música e ele me pareceu mais humano.
Parecia que, ao tocá-lo, ele lhe contaria segredos, então não hesitei. Isso já faz dez anos e
desde então, nunca parei.
— E lá se foi a ideia de voltar pra cama — grita a minha mãe em meio à barulheira da
bateria de Teddy.
— Quem diria! A neve já está derretendo — diz o meu pai, aspirando a fumaça do
cachimbo. Vou até a porta dos fundos e espio o clima lá fora. Um raio de sol surge entre as
nuvens, e posso ouvir o barulho do gelo que começa a derreter. Fecho a porta e volto à mesa.
— Acho que as autoridades exageraram — digo.
— Talvez. Mas eles não poderiam deixar de cancelar as aulas. Já deram a notícia e eu já
pedi a minha folga — diz mamãe.
— De fato. Mas precisamos aproveitar esse presente inesperado e ir para algum lugar —
sugere papai. — Dar um passeio de carro. Visitar Henry e Willow.
Henry e Willow são amigos antigos dos meus pais, e apreciadores de música que também
tiveram um filho e decidiram começar a se portar como adultos. Eles moram em uma fazenda
imensa e antiga. Henry trabalha com alguma coisa de internet, dentro do celeiro que eles
transformaram num escritório, enquanto Willow trabalha num hospital próximo. Eles têm uma
filhinha. Este é o verdadeiro motivo pelo qual minha mãe e meu pai querem visitá-los. Teddy
acaba de completar oito anos e eu tenho dezessete, o que significa que já não temos mais
aquele cheiro de leite azedo que faz os adultos se derreterem.
— Na volta, podemos passar no BookBarn — sugere minha mãe, como que para me animar.
O BookBarn é um sebo gigante, cheio de livros empoeirados e muito velhos. Nos fundos, eles
mantêm um estoque de discos de música clássica que custam vinte e cinco centavos cada e os
quais ninguém, exceto eu, parece interessado em comprar. Mantenho uma pilha deles
escondida debaixo da minha cama. Uma coleção de discos clássicos e antigos não é o tipo de
coisa que se sai anunciando por aí.
Eu os mostrei para Adam, mas só depois de cinco meses que estávamos juntos. Esperava
que ele desse risada. Ele é aquele tipo de cara legal, que usa a barra da calça jeans dobrada,
All Star preto, camiseta preta toda estampada com dizeres punk rock e tatuagens discretas.
Não é o tipo de cara que se interessa por alguém como eu. Foi por isso que, quando o peguei
olhando para mim pela primeira vez no estúdio de música da escola há dois anos, tive certeza
de que ele estava tirando sarro da minha cara e me escondi. Seja como for, ele não riu. E, no
final das contas, ele também tinha uma coleção empoeirada de discos de punk rock debaixo da
cama dele.
— Também podemos parar na casa do vovô e da vovó para jantar — diz meu pai, já
pegando o telefone. — Vamos chegar em casa a tempo de você ir para Portland — acrescenta
ele enquanto disca o número.
— Estou dentro — respondo. E não é pelo atrativo do BookBarn, nem pelo fato de Adam
estar numa turnê, tampouco porque minha melhor amiga, Kim, está ocupada com as tarefas do
anuário. Nem porque meu violoncelo está na escola e eu poderia ficar em casa assistindo à TV
ou dormindo. Na verdade, prefiro sair com a minha família. Isso é outra coisa que não se sai
dizendo por aí, mas Adam entende também.
— Teddy — chama meu pai. — Vá se vestir. Vamos começar uma aventura.
Teddy finaliza seu solo na bateria com um estrondo dos címbalos. No momento seguinte,
chega à cozinha saltitando e de roupa trocada, como se tivesse se vestido enquanto descia as
escadas de madeira e degraus curtos da nossa casa vitoriana e fria.
— School’s out for summer... — canta ele.
— Alice Cooper? — pergunta meu pai. — Não temos nenhum padrão? Cante pelo menos
Ramones.
School’s out forever — canta Teddy diante da reclamação do papai.
Sempre otimista — diz meu pai.
A mamãe ri. Ela coloca um prato de panquecas ligeiramente queimadas sobre a mesa da
cozinha.
— Podem raspar o prato, crianças.

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