sexta-feira, 17 de outubro de 2014

08h17

Entramos no carro, um Buick enferrujado que já era velho quando o vovô nos deu de presente
depois que Teddy nasceu. Meus pais oferecem o carro para que eu o dirija, mas digo que não.
Papai logo se põe diante do volante. Agora, ele gosta de dirigir. Recusou-se, com muita
teimosia, a tirar a carteira de motorista, insistindo a ir para todos os lugares com a sua
bicicleta. Quando tinha a banda, sua inabilidade com a direção obrigava os seus companheiros
a se revezarem no volante. Eles reviravam os olhos para o pai, mas minha mãe fazia mais que
isso. Ela o amolou muito, e às vezes chegou até a gritar com meu pai para ele tirar a carteira,
mas ele continuava insistindo que preferia o poder dos pedais. “Bom, então é melhor você
começar a construir uma bicicleta que aguente uma família de quatro pessoas e que nos
mantenha secos quando chover”, exigiu ela. Meu pai sempre riu dessas provocações e dizia
que resolveria isso.
Mas quando ficou grávida de Teddy, minha mãe bateu o pé. “Já chega”, disse ela e o papai
pareceu entender que alguma coisa tinha mudado. Ele parou de discutir e tirou a carteira de
motorista e até voltou a estudar para obter a licenciatura. Acho que tudo bem ser um pouco
irresponsável com apenas um filho, mas dois... Era hora de crescer. Hora de começar a usar
uma gravata-borboleta.
E é isso que ele está usando hoje, juntamente com um casaco esporte flanelado e um sapato
vintage.
— Vejo que está vestido para a neve — observo.
— Estou parecendo um entregador de cartas — retruca ele, raspando a neve para fora do
carro com um dos dinossauros de plástico de Teddy que estão espalhados pelo gramado. —
Nem a chuva, nem o granizo, nem mesmo meio floco de neve vão fazer com que eu me vista
como um lenhador.
— Ei! Meus parentes eram lenhadores! — adverte mamãe. — Nada de piadinhas sobre
lenhadores.
— Nem sonhando eu faria isso! — rebate papai. — Só estou fazendo comparações de
estilo.
O papai precisa acelerar e girar a chave na ignição cinco vezes para conseguir ligar o
carro. Como de costume, há uma briga pelo que vamos ouvir. Mamãe quer NPR. Papai, Frank
Sinatra. Teddy quer o Bob Esponja. Eu quero a rádio de músicas clássicas, mas reconhecendo
que sou a única fã de música clássica da família, estou disposta a abrir mão do clássico para
ouvir a Shooting Star.
Papai propõe um trato.
— Já que perdemos aula hoje, acho que devemos ouvir um pouco de notícia assim não nos
tornamos ignorantes...
— Acho que você quis dizer desinformados — corrige minha mãe.
Papai revira os olhos, coloca as mãos sobre as da minha mãe e pigarreia naquele jeito
professoral dele.
— Como eu estava dizendo, primeiro vamos ouvir as notícias na NPR, e depois de
ouvirmos as notícias, mudamos para a estação de música clássica. Teddy, não vamos torturálo
com isso. Você pode ligar o seu discman — fala meu pai enquanto começa a desconectar o
tocador de CD portátil que ele inseriu no rádio do carro. — Mas não te dou permissão para
tocar Alice Cooper no meu carro. Está proibido. — Meu pai estica o braço até o porta-luvas
para verificar o que tem lá dentro. — Que tal Jonathan Richman?
— Quero Bob Esponja. Está lá dentro — grita Teddy, saltitando no banco do carro e
apontando para o discman. As panquecas com gotas de chocolate submersas na calda
aumentaram claramente a hiperatividade dele.
— Filho, assim você parte o meu coração — brinca meu pai. Tanto Teddy quanto eu
crescemos ouvindo os hits idiotas de Jonathan Richman, que é o ídolo musical dos meus pais.
Uma vez definidas as nossas preferências, partimos. A pista tem alguns amontoados de
neve, mas em boa parte está apenas molhada. Mas isso é Oregon; as ruas estão sempre
molhadas. Minha mãe costuma brincar que é quando a pista está seca que as pessoas se metem
em encrenca. “Elas confiam demais em si, deixam de prestar atenção e dirigem como idiotas.
Os policiais se divertem distribuindo multas por velocidade excessiva.”
Encosto a cabeça no vidro da janela enquanto observo a paisagem movendo-se
rapidamente, uma pintura de pinheiros verde-escuros salpicados pela neve, uma suave névoa
branca e as nuvens carregadas e cinzentas no céu. Está tão quente dentro do carro que as
janelas ficam embaçadas e eu desenho pequenos rabiscos na condensação que se forma no
vidro.
Quando acabam as notícias, mudamos para a estação de música clássica. Ouço as primeiras
notas da Sonata para violoncelo nº 3 de Beethoven, que era exatamente a peça que eu deveria
estar praticando nesta tarde. Parece um tipo de coincidência cósmica. Concentro-me nas notas,
imagino-me tocando, sinto-me grata pela oportunidade de praticar, feliz por estar em um carro
quentinho com a minha sonata e a minha família. Fecho meus olhos.
Você jamais esperaria que o rádio continuasse funcionando depois do que aconteceu. Mas
ele continuou.
O carro é destruído. O impacto de quatro toneladas de um caminhão a cem quilômetros por
hora chocando-se direto com o banco do passageiro tem a força de uma bomba atômica. As
portas do carro são arremessadas para longe e o banco do passageiro voa pela janela do
motorista. O chassi é arrancado, bate na pista e o motor do carro se solta como se fosse tão
frágil quanto uma teia de aranha. As rodas e as calotas são lançadas na floresta. Parte do
tanque de gasolina é incendiada, acendendo pequenas chamas na estrada molhada.
E há muito barulho. Uma sinfonia estridente, um coro de estalos, uma ária de explosões, e
por fim, a triste ovação do metal pesado sobre as árvores macias. E então, o silêncio, exceto
por uma coisa: a Sonata para violoncelo nº 3 de Beethoven continua tocando. De alguma
maneira, o rádio do carro continua ligado, então, Beethoven ainda toca nesta manhã agora
novamente tranquila de fevereiro.
No começo, acho que está tudo bem. Primeiro porque ainda consigo ouvir Beethoven.
Depois porque estou aqui, imóvel, numa valeta da estrada. Quando olho para baixo, a saia
jeans, o cardigã e as botas pretas que coloquei hoje de manhã estão do mesmo jeito de quando
saímos de casa.
Saio e subo numa barragem para ter uma visão melhor do carro. Nem é mais um carro. É um
esqueleto de metal sem assentos, sem passageiros, o que significa que o resto da minha família
deve ter sido arremessada para fora, assim como eu. Limpo a saia com as minhas mãos e
caminho até a estrada para procurá-los.
Primeiro, vejo meu pai. Mesmo a muitos metros de distância, percebo a saliência que o
cachimbo faz no bolso do seu casaco. — Pai — chamo, mas à medida que me aproximo, o
asfalto fica ainda mais escorregadio e há um amontoado de cinzas que se parece com uma
couve-flor. Imediatamente me dou conta do que estou vendo, mas sabe-se lá como, não faço
nenhuma relação com o meu pai. O que me vem à cabeça são aquelas notícias sobre tornados e
incêndios e sobre como deixam uma casa devastada e a outra, bem ao lado, intacta. Pedaços
do cérebro do meu pai estão sobre o asfalto. Mas o cachimbo dele permanece no bolso
esquerdo do seu casaco.
Encontro a minha mãe próxima a ele. Não há quase nenhum sangue sobre ela, mas seus
lábios já estão azuis e o branco dos seus olhos está completamente vermelho, como um
demônio daqueles de filmes baratos de monstro. Ela parece completamente irreal. E o fato de
vê-la assim, como se fosse um zumbi, faz com que eu sinta como se houvesse um beija-flor em
pânico ricocheteando meu corpo.
Preciso achar Teddy! Onde ele está? Giro ao meu redor, tomada por um desespero
exatamente igual a quando eu o perdi uma vez por dez minutos no mercado. Naquela ocasião,
tive certeza de que ele havia sido sequestrado. E no final, claro, descobri que o Teddy estava
vagueando pelo corredor dos doces. Quando finalmente o encontrei, não sabia se o abraçava
ou se lhe dava uma bronca.
Volto correndo para a vala onde eu estava e vejo um braço esticado.
— Teddy! Estou aqui! — grito. — Segure a minha mão. Vou puxar você. — Mas, quando
me aproximo, vejo o brilho metálico de uma pulseira com pingentes que são pequeninos
violoncelos e violões. Adam me deu de presente no meu aniversário de dezessete anos. É a
minha pulseira. Eu estava com ela hoje de manhã. Olho para o meu pulso. Continuo usando-a.
Aproximo-me mais e agora sei que não é Teddy quem está deitado aqui. Sou eu. O sangue
no meu peito se espalhou pela minha camisa, saia, cardigã e agora está formando pequenas
poças como gotas de tinta sobre a neve alva. Uma das minhas pernas está torta, a pele e os
músculos estão expostos de maneira que consigo ver meus ossos. Estou com os olhos fechados
e meu cabelo castanho-escuro está molhado e avermelhado pelo sangue.
Viro de costas. Isto não está certo. Não pode ser verdade. Somos uma família, dando um
passeio de carro. Isto não é real. Devo ter pegado no sono.
— Não! Pare. Por favor, pare. Por favor, acorde! — grito contra o ar gelado. Está frio.
Minha respiração deveria estar provocando aquele vapor parecido com fumaça, mas não está.
Observo o meu pulso, sem o menor sinal de sangue e ferimento; belisco com toda a força que
posso.
Não sinto absolutamente nada.
Já tive pesadelos antes — sonhei que estava caindo, que tocava num recital de violoncelo
sem saber a música, que terminava com Adam —, mas sempre consegui ter o controle da
situação, me obrigar a abrir os olhos, a levantar a cabeça do travesseiro, a interromper o filme
de terror que passava por detrás das minhas pálpebras fechadas. Tento de novo.
— Acorda! — grito. — Acorda!Acordaacordaacordaacorda! — Mas não consigo. Não
consigo.
Então, ouço alguma coisa. É a música. Ainda posso ouvi-la. Concentro-me nela. Imaginome
tocando a Sonata nº 3 de Beethoven e movimento minhas mãos, do jeito que sempre faço
quando ouço as peças que estou ensaiando. Adam chama isso de “violoncelo imaginário”. Ele
sempre me pergunta se um dia poderemos tocar um dueto, ele no violão e eu no meu
violoncelo.
— Quando terminarmos, podemos arrebentar os nossos instrumentos imaginários — brinca.
— Sei que você tem vontade de fazer isso.
Toco, prestando atenção apenas nela, até que o último sinal de vida do carro se vai e com
ele, a música.
Pouco tempo depois, o barulho das sirenes começa a se aproximar.

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