sexta-feira, 17 de outubro de 2014

09h23

Estou morta?
Preciso fazer esta pergunta a mim mesma.
Será que estou morta?
Parece óbvio que sim, estou morta. Que o instante de ficar parada observando o acidente foi
passageiro, um rápido intervalo de tempo onde o flash da vida passou pelos meus olhos, até
que eu fosse transportada para algum lugar, sabe-se lá onde.
Mas os paramédicos estão aqui agora, e também a polícia e os bombeiros. Alguém cobriu
meu pai com um lençol. E um bombeiro coloca a minha mãe dentro de um saco plástico. Ouçoo
conversando sobre ela com outro bombeiro, que aparentemente não tem mais do que dezoito
anos. O mais velho explica que provavelmente a minha mãe foi atingida primeiro e teve morte
instantânea, o que justifica a ausência de sangue espalhado pelo corpo dela.
— Parada cardíaca imediata — diz ele. — Quando o coração não consegue bombear
sangue, a vítima não sangra. O sangue para de circular.
Não consigo pensar nisso, no sangue da minha mãe parando de circular. Então, penso no
quanto o fato de ela ter sido atingida primeiro parecia tão apropriado, ela servindo de escudo
para nos proteger. Obviamente aquilo não foi uma escolha dela, mas foi o jeito que ela
encontrou.
Mas, será que estou morta? Sou eu mesma deitada no acostamento com a perna presa na
valeta está cercado por uma equipe de homens e mulheres que fazem procedimentos
ininterruptos sobre mim e conectam coisas nas minhas veias que eu não sei do que se trata?
Estou seminua, eles rasgaram a parte de cima da minha camisa. Um dos meus seios fica
exposto. Constrangida, desvio o olhar.
A polícia acendeu pequenas chamas ao longo da área do acidente e instrui os carros que
vêm em ambos os sentidos para que façam o retorno, pois a pista está fechada. Os policiais
educadamente mostram caminhos alternativos e opções de outras vias, que levariam os
motoristas aos lugares para onde eles precisam ir.
Essas pessoas dentro dos carros devem ter algum lugar para ir, mas muitas delas não fazem
o retorno. Elas saem dos seus carros, protegendo-se do frio com seus próprios braços, e se
aproximam da cena. Depois, desviam o olhar, algumas delas choram e uma mulher passa mal.
E, mesmo sem saber quem somos e o que aconteceu, elas rezam por nós. Posso sentir suas
orações.
O que também me faz pensar que estou morta. Isso e o fato de o meu corpo estar
completamente adormecido, muito embora ao olhar para mim e ver a minha perna
completamente esfolada pelo asfalto e o meu osso exposto, você até pudesse achar que eu
estava em completa agonia. E também não estou chorando, embora eu saiba que alguma coisa
impossível de se imaginar acaba de acontecer com a minha família. Estamos como Humpty
Dumpty e nem todos aqueles cavalos e homens do rei seriam capazes de nos juntar outra vez.
Estou pensando em todas essas coisas quando a paramédica de sardas e cabelo ruivo que
estava cuidando de mim respondeu a minha pergunta.
— Ela está na escala 8 do coma Glasgow. Vamos entubá-la agora — grita.
Na mesma hora, eles enfiam um tubo pela minha garganta, colocam um balão nele e
começam a bombear.
— Qual é o tempo estimado para a chegada do helicóptero de resgate?
— Dez minutos — responde o paramédico. — E mais vinte para voltarmos à cidade.
— Vamos chegar lá em quinze se você voar de verdade.
Posso até imaginar o que o cara está pensando. Que não vai me fazer nada bem sofrer outro
acidente a esta altura, e tenho de concordar. Mas ele não diz uma palavra sequer. Apenas
cerra a mandíbula. Eles me carregam até a ambulância: a ruiva sobe comigo. Ela bombeia o
balão com uma das mãos e ajusta o tubo intravenoso e os meus monitores com a outra. Depois
afasta um emaranhado de cabelo que está sobre a minha testa.
— Aguente firme — ela pede.

***

Toquei no meu primeiro recital quando tinha dez anos. Naquela época, já fazia dois que eu
tocava violoncelo. No começo, eu tocava apenas na escola, como parte das aulas de música.
Foi um feliz acaso o fato de eles terem um violoncelo na escola. É um instrumento caro e
frágil. Mas um antigo professor de literatura da universidade havia morrido e doou seu
Hamburg para a nossa escola. Na maior parte do tempo ele ficou encostado num canto. A
maioria das crianças queria aprender a tocar violão ou saxofone.
Quando dei a notícia para mamãe e papai de que eu tinha me tornado violoncelista, os dois
caíram na gargalhada. Depois, eles se desculparam, alegando que ao me imaginarem com meu
tamanho minúsculo segurando um instrumento enorme entre as minhas pernas finas,
simplesmente não puderam se conter. Quando perceberam que eu estava falando sério,
imediatamente transformaram os risos em uma expressão de pleno apoio.
Mas a reação deles ainda dói — de um jeito que eu jamais consegui explicar, de uma forma
que não tenho certeza de que eles entenderiam, mesmo se eu tivesse tentado. Papai costumava
brincar que provavelmente fui trocada na maternidade porque eu não me pareço nem um pouco
com minha família. Todos são loiros, têm a pele branca e eu sou exatamente o oposto: cabelos
castanhos e olhos escuros. Mas, à medida que fui crescendo, as piadas do meu pai sobre a
troca na maternidade começaram a ter um significado maior do que ele esperava. Às vezes, eu
realmente me sentia como se pertencesse a uma tribo diferente. Não era nem um pouco
parecida com o meu pai extrovertido e irônico, nem com a minha mãe durona. E para
completar, em vez de aprender a tocar guitarra, escolhi o violoncelo.
Porém, na minha família, saber tocar um instrumento era ainda mais importante do que o
tipo de música que se tocava, então, depois de alguns meses, quando a minha paixão pelo
violoncelo ficou clara e era evidente que não se tratava de algo passageiro, meus pais
alugaram um para mim para que eu pudesse praticar em casa. Escalas e tríades rudimentares
levaram-me às minhas primeiras tentativas de tocar “Brilha, Brilha, Estrelinha”, que acabou
me levando a exercícios musicais básicos até chegar às suítes de Bach. A escola não oferecia
muitas aulas de música, então minha mãe contratou um professor particular para mim, um
universitário que vinha até minha casa uma vez por semana. Ao longo dos anos, tive uma
porção de alunos da faculdade que me ensinaram e, depois, quando as minhas habilidades
superaram as deles, começaram a tocar comigo.
Isso continuou até a oitava série, quando meu pai, que conhecia a professora Christie da
época em que ele havia trabalhado na loja de discos, perguntou-lhe se ela gostaria de ser a
minha professora particular. Ela concordou em me ouvir tocar, sem muitas expectativas e mais
como um favor a meu pai, conforme ela mesma me contou certo tempo depois. Christie e meu
pai ficaram ouvindo do andar debaixo enquanto eu estava no meu quarto treinando uma sonata
de Vivaldi. Quando desci para o jantar, ela se ofereceu para ser minha professora.
Contudo, meu primeiro recital aconteceu anos depois de conhecê-la. Foi em um teatro da
cidade, um lugar onde normalmente bandas locais se apresentavam, então a acústica era
horrível para música clássica sem o uso de amplificadores. Toquei um solo de violoncelo de
Tchaikovsky, “Valsa da Fada Lilás”.
Lá atrás, nos bastidores, ouvindo as outras crianças arranharem o violino e desafinarem no
piano, quase desisti. Corri para a porta dos fundos e fiquei abaixada nos degraus externos,
com as mãos suadas de nervosismo. Um aluno universitário que costumava me dar aulas
entrou em pânico e mandou um grupo me procurar.
Meu pai me encontrou. Ele estava começando a sair da fase de descolado para a de
quadrado, então estava vestindo um terno vintage com um cinto de couro com tachas e botas
pretas estilo coturno.
— Deus do céu. Qual é o problema com a “minha Mia”? — perguntou ele, sentando-se
perto de mim nos degraus.
Balanço a cabeça, sentindo-me muito envergonhada para falar.
— O que está pegando?
— Não consigo — choraminguei.
Papai ergueu uma de suas sobrancelhas cabeludas e me fitou com seus olhos azuis
acinzentados. Senti-me uma estranha que ele estava observando e tentando compreender. Meu
pai havia tocado em bandas desde sempre. Lógico que ele nunca havia sentido algo tão bobo
quanto o medo de ficar no palco.
— Bem, vai ser uma grande pena — disse ele. — Comprei um presente maravilhoso para
você por causa do recital. É muito melhor do que flores.
— Dê para outra pessoa. Não consigo sair daqui. Não sou como você, nem como a mamãe e
nem como Teddy. — Naquela época, Teddy tinha apenas seis meses, mas já estava muito
claro que ele tinha mais personalidade e mais vigor do que eu jamais teria. E, claro, era loiro
e tinha olhos azuis. E mesmo que ele não fosse assim, Teddy tinha nascido num centro de parto
especializado, não na maternidade de um hospital, então não haveria a menor chance de ele ter
sido trocado.
— É verdade — refletiu ele. — Quando Teddy fez sua primeira apresentação na harpa, ele
estava tão calmo quanto uma britadeira. É um garoto prodígio.
Ri por entre as minhas lágrimas. Papai colocou gentilmente seu braço sobre o meu ombro.
— Sabe, eu ficava em pânico antes de entrar no palco na hora do show.
Olhei para o meu pai, que parecia sempre completamente certo de tudo sobre o mundo.
— Você só está dizendo isso porque...
Ele balançou a cabeça, negando.
— Não, não estou. Só Deus sabe o quanto era terrível. E olha que eu era o baterista e ficava
sempre no fundo. Ninguém nem sequer prestava atenção em mim.
— Então, o que você fazia? — perguntei.
— Bebia — interviu minha mãe, enfiando a cabeça pela porta dos fundos. Ela vestia uma
minissaia preta de vinil, e uma regata vermelha justa, enquanto Teddy babava e sorria dentro
do canguru para bebê que minha mãe tinha preso ao seu corpo. — Duas doses antes do show.
Não recomendo que você faça isso.
— Sua mãe tem razão — acrescentou papai. — As assistentes sociais fazem cara feia
quando veem garotinhas de dez anos bêbadas. Além disso, era muito maneiro quando eu
deixava as minhas baquetas caírem no chão e vomitava no palco. Se você deixar o seu arco
cair e se estiver cheirando à cerveja, vai parecer indelicada. Essa sua turma de música
clássica é muito esnobe em relação a isso.
Agora comecei a rir de verdade. Continuava com medo, insegura, mas, de certa forma, me
pareceu reconfortante pensar que talvez eu tivesse herdado do meu pai esse medo do palco e
concluir que, afinal, eles eram meus pais biológicos.
— Mas e se eu me atrapalhar? E se eu me sair mal?
— Tenho uma notícia pra te dar, Mia. Tem um monte de crianças se saindo muito mal lá
dentro, então você não vai se sobressair — disse minha mãe.
Teddy emitiu um gritinho como se estivesse concordando.
— Mas, falando sério, como a gente consegue acabar com o nervosismo?
Papai continuava sorrindo, mas posso dizer que ele tinha ficado sério porque diminuiu o
tom de voz:
— Nós não conseguimos. Apenas aprendemos a lidar com ele. E aguentamos firme.
Então foi o que eu fiz. Não toquei brilhantemente. Não atingi a glória nem fui ovacionada de
pé, mas também não me saí tão mal. E, depois do recital, ganhei o meu presente. Estava no
banco detrás do carro, parecendo tão humano quanto o violoncelo que tinha chamado a minha
atenção dois anos atrás. E esse não era alugado. Era meu.

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