sábado, 18 de outubro de 2014

1- A Garrafa de Tokay

   LYRA e seu daemon atravessaram o Salão, já bastante escuro, tomando cuidado para seguirem junto à parede, fora de vista da Cozinha. As três mesas grandes ao longo do Salão já estavam arrumadas e os bancos compridos estavam afastados, esperando os comensais. No alto, ao longo das paredes, os retratos de antigos Reitores estavam na penumbra. Lyra chegou ao tablado e voltou-se para olhar a porta aberta da Cozinha; não vendo ninguém, subiu para junto da mesa principal.
    Ali os talheres eram de ouro, não de prata, e os 14 lugares não eram num banco de carvalho, mas sim em cadeiras de mogno com almofadas de veludo.
Lyra parou junto à cadeira do Reitor e deu um peteleco de leve na taça maior; o som percorreu todo o Salão.
– Você está de brincadeira. Comporte-se! - cochichou o daemon.
O nome do daemon era Pantalaimon, e, no momento, ele tinha a forma de uma mariposa marrom para não se destacar na penumbra do Salão.
– Lá na Cozinha estão fazendo barulho demais – Lyra cochichou de volta. - E o Administrador só aparece depois do primeiro sino. Deixe de ser ranzinza. Mas, em todo caso, ela colocou a palma da mão sobre o cristal que vibrava;
Pantalaimon esvoaçou à frente dela, atravessando a extensão do tablado, e entrou pela
porta entreaberta da Sala Privativa, no outro extremo. Logo depois tornou a aparecer.
– Está deserta – sussurrou. – Mas temos que agir depressa.
Quase agachada, escondida pela mesa, Lyra venceu rapidamente a distância e
entrou na Sala Privativa, onde tornou a ficar de pé e olhou em volta. A única luz vinha da
lareira; a pilha de lenha em brasa desabou enquanto ela estava olhando, fazendo subir
uma coluna de faíscas pela chaminé. Ela havia passado a maior parte da vida na
Faculdade, mas nunca tinha visto a Sala Privativa; só os Catedráticos e seus
convidados podiam entrar ali, e nunca uma mulher. Nem as criadas entravam para
limpar; esse trabalho só quem fazia era o Mordomo.
Pantalaimon acomodou-se no ombro dela.
– Está satisfeita agora? Podemos ir? – cochichou.
– Não seja medroso! Ainda quero dar uma espiada!
Era uma sala ampla, com uma mesa oval de madeira vermelha encerada e sobre
ela várias garrafas e taças de cristal, e uma tabaqueira de prata com uma pequena
estante de cachimbos.
Num aparador vizinho, havia um pequeno aquecedor de pratos e uma cesta com
botões de papoula.
– Eles se tratam bem, hein, Pan? – ela comentou baixinho.
E foi sentar-se numa das poltronas de couro verde, tão funda que ela ficou quase
deitada, mas endireitou-se e encolheu as pernas. Depois pôs-se a examinar os retratos
nas paredes: mais Catedráticos, com certeza; barbados e melancólicos, de dentro de
suas molduras, eles lançavam olhares de solene desaprovação.
– Que acha que eles conversam aqui? – a garota perguntou, ou começou a
perguntar, pois, antes de terminar a frase, ela ouviu vozes do lado de fora da porta.
– Para trás da poltrona. Depressa! – sussurrou Pantalaimon.
Como um raio, Lyra pulou da poltrona e foi se esconder atrás dela. Não era o
melhor esconderijo: ela havia escolhido logo a poltrona que ficava bem no meio da sala,
e se não ficasse quietinha...
A porta se abriu, e a iluminação da sala mudou: um dos recém-chegados trazia
uma lamparina, que ele colocou sobre o aparador. Lyra via as pernas dele, as calças
verde-escuro e os sapatos pretos bem encerados: um criado.
Então uma voz grossa perguntou:
– Lorde Asriel já chegou?
Era o Reitor. Lyra prendeu a respiração ao ver o daemon do criado (um cão,
como os daemons de todos os criados) entrar trotando e sentar-se em silêncio aos pés
dele, e então os pés do Reitor ficaram visíveis também, metidos nos sapatos velhos
que ele sempre usava.
– Não, Reitor – disse o Mordomo. – Também não chegou notícia das Docas
Aéreas.
– Imagino que ele vai chegar com fome. Leve-o direto para o Salão, está bem?
– Está bem, Reitor.
– E já separou um pouco do Tokay especial?
– Já, sim, Reitor. O 1898, como o senhor mandou. Lorde Asriel aprecia muito
essa safra, se bem me lembro.
– Ótimo. Agora vá, por favor.
– Vai precisar da lamparina, Reitor?
– Sim, pode deixá-la aí. Durante o jantar, venha ajeitar o pavio, está bem?
O Mordomo fez uma mesura leve e virou-se para sair, e seu daemon seguiu-o
obedientemente. De seu precário esconderijo, Lyra ficou observando enquanto o Reitor
ia até um grande armário de carvalho a um canto da sala, tirava a sua beca de um
cabide e vestia-a com dificuldade – o Reitor tinha sido um homem muito forte, mas
agora tinha bem mais de 70 anos e seus movimentos eram rígidos e lentos. O daemon
do Reitor era uma fêmea de corvo, e assim que ele terminou de vestir a túnica o
daemon saltou de cima do armário e foi se acomodar no seu lugar de costume: o
ombro direito dele.
Lyra sentia a aflição de Pantalaimon, embora este não emitisse um único som. Ela
própria estava achando delicioso aquele friozinho na barriga...
Lorde Asriel, o visitante mencionado pelo Reitor, era tio dela, um homem a quem
ela muito admirava... e temia. Diziam que ele estava envolvido em altas políticas,
explorações secretas, guerras distantes, e ela nunca sabia quando ele ia aparecer. Ele
era muito bravo; se a apanhasse ali, ela seria severamente castigada, mas conseguiria
aguentar.
Porém, o que ela viu em seguida mudou completamente as coias.
O Reitor tirou do bolso um papel dobrado e colocou-o sobre a mesa. Tirou a rolha
de uma garrafa que continha um vinho quase dourado, desdobrou o papel e deixou cair
lá dentro um jorro fino de pó branco; depois amassou bem o papel e jogou-o no fogo da
lareira. Então tirou um lápis do bolso e mexeu o vinho até dissolver todo o pó, e depois
recolocou a rolha.
Seu daemon soltou um grasnido curto; o Reitor respondeu num murmúrio, e olhou
em volta com os olhos semicerrados e severos, antes de sair pela porta por onde tinha
entrado.
Lyra cochichou:
– Viu isso, Pan?
– Claro que vi! Agora saia depressa, antes que o Administrador chegue!
Mas, enquanto ele falava, ouviu-se um sino tocando uma badalada na outra ponta
do Salão.
– É o sino do Administrador! – Lyra exclamou. –Pensei que a gente Ia ter mais
tempo...
Pantalaimon esvoaçou até a porta do Salão e voltou correndo.
– O Administrador já está lá – avisou. – E você não vai poder sair pela outra
porta...
A outra porta, aquela por onde o Reitor tinha entrado e saído, abria-se para o
movimentado corredor entre a Biblioteca e a Sala de Estar dos Catedráticos. A essa
hora do dia, esse corredor estava cheio de homens indo vestir suas becas para o
jantar, ou correndo para deixar papéis ou pastas na Sala de Estar antes de ir para o
Salão; sabendo disso, Lyra tinha planejado sair por onde entrara, contando com mais
alguns minutos antes do sino do Administrador.
Se ela não tivesse visto o Reitor colocar aquele pó no vinho, poderia até ter
desafiado a cólera do Administrador ou tentado passar despercebida no corredor
movimentado. Mas estava confusa, e isso fez com que hesitasse.
Então ouviu passos pesados sobre o tablado: era o Administrador vindo verificar
se a Sala Privativa estava pronta, com as papoulas e o vinho que os Catedráticos
beberiam depois do jantar. Lyra correu para o armário de carvalho, abriu-o e escondeuse
lá dentro, puxando a porta bem no momento em que o Administrador entrou.
Ela não se preocupou com Pantalaimon: a sala era toda de cores escuras, e ele
podia muito bem entrar debaixo de uma poltrona.
Ela escutou o resfolegar forte do Administrador e, pela fresta da porta, viu-o
ajeitar os cachimbos na estantezinha junto à tabaqueira, lançando um olhar de relance
para os frascos de bebida e as taças. Depois alisou os cabelos sobre as orelhas com
ambas as mãos e disse algo ao seu daemon. Era um criado, de modo que ele era uma
cadela; mas um criado de alta categoria, de modo que o cão também era superior –
um setter vermelho.
O daemon parecia suspeitar de alguma coisa e ficou olhando em volta como se
sentisse uma presença intrusa, mas não foi até o armário, para grande alívio de Lyra.
Ela temia muito o Administrador, que duas vezes lhe dera uma sova.
Lyra ouviu um sussurro bem fraquinho; obviamente Pantalaimon tinha se enfiado
no armário.
– Agora vamos ter que ficar aqui. Por que você nunca escuta o que eu digo?
Lyra só respondeu depois que o Administrador saiu. Cabia a ele supervisionar os
que serviam a mesa principal; ela ouviu os Catedráticos entrando no Salão, o murmúrio
de vozes, o arrastar de pés.
– Ainda bem que não escutei – ela cochichou em resposta. – Senão não teríamos
visto o Reitor colocar veneno no vinho.
Pan, era o Tokay que ele tinha pedido ao Mordomo! Vão assassinar Lorde Asriel!
– Você não sabe se aquilo é veneno.
– Claro que é! Você não se lembra? Ele esperou o Mordomo sair da sala; se
fosse inocente, não se importaria que o Mordomo visse. E eu sei que está acontecendo
alguma coisa.
Alguma coisa política. Os criados só falam sobre isso. Pan, nós podíamos impedir
um assassinato!
– Nunca ouvi tamanha bobagem – cortou ele. –Como acha que vai conseguir ficar
quatro horas imóvel neste armário apertado? Deixe que eu vá vigiar o corredor; quando
estiver deserto, eu aviso.
Ele voou do ombro dela, e ela viu a sombra minúscula aparecer na fresta de luz.
– Não adianta, Pan, vou ficar aqui – declarou. –Há outra túnica ou sei lá o que
aqui dentro; vou colocar isto no chão do armário e me acomodar. Tenho que ver o que
eles fazem!
Até então ela estava agachada; ficou em pé com cuidado, tateando à procura dos
cabides para não fazer barulho, e descobriu que o armário era maior do que pensara.
Havia várias becas acadêmicas e capuzes, alguns orlados de pele, a maioria com forro
de seda.
– Será que são todos do Reitor? – ela sussurrou. – Quando ele recebe diplomas
honorários de outros lugares, talvez eles lhe dêem becas que ele guarda aqui para
usar... Pan, você acha mesmo que aquilo no vinho não é veneno?
– Não; assim como você, eu acho que é veneno. E acho que isso não é da nossa
conta.
E acho que interferir seria a mais idiota de todas as coisas idiotas que você já fez
na sua vida. Não temos nada a ver com isso.
– Não seja estúpido! – Lyra exclamou. – Não posso ficar aqui sentada vendo
darem veneno a ele!
– Então vá para outro lugar.
– Você é um covarde, Pan.
– Claro que sou. Posso perguntar o que você pretende fazer? Vai dar um salto e
arrancar a taça dos dedos trêmulos dele? Qual é a sua idéia?
– Não tenho idéia, e você sabe muito bem – ela respondeu em voz baixa. – Mas
agora que vi o que o Reitor fez, não tenho escolha. Pensei que você conhecesse a
existência da consciência. Sabendo o que vai acontecer, como é que eu posso ir me
sentar na Biblioteca ou em qualquer outro lugar e ficar tamborilando os dedos? Isso eu
não pretendo fazer, juro!
– Era isso que você queria o tempo todo – ele disse depois de um momento. –
Queria se esconder aqui e assistir a tudo. Por que eu não percebi antes?
– Está certo, eu quero mesmo – ela confessou. –Todo mundo sabe que eles vêm
fazer uma coisa secreta. Têm um ritual, ou alguma coisa assim. E eu só queria saber o
que é.–
Não é da nossa conta! Se eles querem ter seus segredinhos, você devia apenas
se sentir superior e deixá-los em paz. Esconder-se, espiar, tudo isso é coisa de criança
boba.
– Sabia que você ia dizer isso. Agora pare de resmungar.
Os dois ficaram em silêncio por algum tempo, Lyra desconfortável no chão duro
do armário e Pantalaimon pousado num cabide com ar contrariado, vibrando suas
antenas temporárias.
Lyra sentia vários pensamentos brigando dentro da sua cabeça e adoraria poder
compartilhá-los com o seu daemon, mas era também orgulhosa e achou melhor tentar
clarear os pensamentos sem a ajuda dele.
O que predominava era a aflição, e não por si própria – de tanto passar por
situações difíceis, já estava acostumada. Dessa vez, estava aflita por causa de Lorde
Asriel, e do que aquilo tudo queria dizer. Ele não costumava visitar a Faculdade, e o
fato de estarem numa época de alta tensão política significava que ele não estava vindo
simplesmente para comer, beber e fumar com um punhado de velhos amigos. Ela sabia
que tanto Lorde Asriel quanto o Reitor eram membros do Conselho do Gabinete, que
era o órgão especial de assessoria ao Primeiro-ministro, de modo que a visita podia ter
alguma coisa a ver com isso; mas as reuniões do Conselho do Gabinete eram feitas no
Palácio, não na Sala Privativa da Faculdade Jordan.
Além disso, havia o boato que estava provocando cochichos entre os criados da
Faculdade: dizia-se que os tártaros tinham invadido Moscóvia e estavam avançando
rumo ao Norte, para São Petersburgo, de onde poderiam dominar o Mar Báltico e
acabar conquistando todo o oeste da Europa. E Lorde Asriel estivera no Extremo
Norte: na última vez em que ela o vira, ele estava preparando uma expedição para a
Lapônia...
– Pan... – ela cochichou.
– Que é?
– Você acha que vai haver guerra?
– Ainda não. Lorde Asriel não estaria jantando aqui se a guerra fosse explodir na
semana que vem.
– É o que eu acho. Mas depois?
– Psiu. Vem vindo alguém.
Ela sentou-se ereta e encostou o olho na fresta da porta. Era o Mordomo,
entrando para verificar o pavio da lamparina, como o Reitor ordenara. A Sala de Estar
e a Biblioteca eram iluminadas por luz anbárica{2}, mas, na Sala Privativa, os
Catedráticos preferiam as lâmpadas de nafta, mais antigas e mais suaves. Isso não
mudaria enquanto o Reitor estivesse vivo.
O Mordomo aparou o pavio e colocou outra acha de lenha na lareira, depois
escutou cautelosamente junto à porta antes de surrupiar um punhado de folhas da
tabaqueira. Mal tinha recolocado a tampa quando a maçaneta da outra porta girou, e
ele deu um pulo, sobressaltado. Lyra tentou não rir. O Mordomo enfiou às pressas as
folhas de fumo no bolso e virou-se para o recém-chegado.
– Lorde Asriel! – exclamou.
Um arrepio de surpresa gelou as costas de Lyra. Ela não conseguia vê-lo e tentou
dominar a vontade de mudar de posição para avistá-lo.
– Boa noite, Wren – disse Lorde Asriel, naquela voz áspera que Lyra sempre
escutara com uma mistura de prazer e apreensão. – Cheguei atrasado para o jantar.
Vou esperar aqui.
O Mordomo parecia constrangido; só se entrava na Sala Privativa a convite do
Reitor, e Lorde Asriel sabia disso. Mas o Mordomo viu também o olhar de Lorde Asriel
fixo em seu bolso estufado e resolveu não protestar.
– Devo avisar ao Reitor que o senhor chegou?
– Não seria mau. Pode me trazer café.
– Muito bem, senhor.
O Mordomo saiu apressado, seu daemon trotando obedientemente atrás. O tio de
Lyra foi até a lareira e estendeu os braços por cima da cabeça, espreguiçando-se e
bocejando como um leão.
Estava usando roupas de viagem. Como sempre acontecia quando tornava a vêlo,
Lyra lembrou-se de quanto ele a assustava.
Agora estava fora de questão sair sem ser percebida; ela teria que esperar e
torcer.O daemon de Lorde Asriel, uma pantera branca, postou-se logo atrás dele.
– Vai mostrar as projeções aqui? – ele perguntou em voz baixa.
– Vou. Vai ser menos confuso do que irmos para o Auditório. Vão querer ver os
espécimes também; daqui apouco vou mandar chamar o Porteiro. São tempos ruins,
Stelmaria.
– Você devia descansar.
Ele esticou-se numa das poltronas, de modo que seu rosto ficou escondido de
Lyra.
– É, sim. E também mudar de roupa; com certeza, existe alguma regra de
etiqueta que permite que eles me dêem uma multa de uma dúzia de garrafas por entrar
aqui sem estar vestido adequadamente. Eu precisava dormir uns três dias. Mas o caso
é que... Houve uma batida na porta, e o Mordomo entrou, trazendo um bule de cate e
uma xícara numa bandeja de prata.
– Obrigado, Wren – disse Lorde Asriel. – Aquilo ali sobre a mesa é Tokay?
– O Reitor mandou separá-lo especialmente para o senhor. – informou o
Mordomo. – Há só três dúzias de garrafas do 98.
– Não há bem que sempre dure. Deixe a bandeja aqui ao meu lado. Ah, peça ao
Porteiro para mandar as duas caixas que deixei na Portaria.
– Para cá, senhor?
– Sim, para cá, ora. E vou precisar de uma tela e uma lanterna de projeção,
também aqui, também agora.
O Mordomo mal conseguia segurar o queixo de surpresa, mas conseguiu engolir a
pergunta ou o protesto.
– Wren, você está esquecendo o seu lugar – disse Lorde Asriel. – Não me
questione; apenas faça o que eu lhe ordeno.
– Muito bem, senhor – replicou o Mordomo. –Se posso dar uma sugestão,
senhor, talvez seja melhor avisar o Sr.Cawson do que o senhor está planejando,
senhor, senão ele ficará um tanto perplexo, se é que me entende.
– Está bem. Avise a ele, então.
O Sr. Cawson era o Administrador. Havia uma rivalidade antiga e bemestabelecida
entre ele e o Mordomo; o Administrador era mais graduado, porém o
Mordomo tinha mais oportunidades de insinuar-se com os Catedráticos, e aproveitava
cada uma delas. Ele ia adorar a oportunidade de mostrar ao Administrador que sabia
mais do que ele sobre o que acontecia na Sala Privativa.
Fez uma mesura e saiu. Lyra observou o tio servir-se uma xícara de café, bebê-la
de uma vez e servir-se outra, que passou a beber mais devagar. Ela estava perplexa:
caixas de espécimes? Uma lanterna de projeção? Que teria ele de tão urgente e
importante para mostrar aos Catedráticos?
Então Lorde Asriel levantou-se e virou as costas ao fogo. Ela o viu de corpo
inteiro, e maravilhou-se com o contraste que ele fazia com o Mordomo gorducho, os
Catedráticos curvados e lânguidos: Lorde Asriel era um homem alto, de ombros largos,
fisionomia soturna e feroz, olhos que pareciam cintilar com um humor selvagem. Tinha o
rosto de uma pessoa a quem se obedecia ou combatia – nunca poderia ser tratada
como inferior ou digna de compaixão. Todos os seus movimentos eram largos e
possuíam um equilíbrio perfeito, como os de um animal selvagem; dentro de um
aposento como aquele, ele parecia uma fera presa numa jaula pequena demais.
No momento, sua expressão era distante e preocupada. O daemon aproximou-se
e encostou a cabeça na cintura dele, e ele baixou os olhos para a pantera com um
olhar enigmático, antes de voltar-lhe as costas e encaminhar-se para a mesa. Lyra
derepente sentiu o estômago dar um nó, pois Lorde Asriel havia tirado a tampa do
frasco de Tokay e estava enchendo uma taça.
– Não!
O grito abafado saiu antes que ela pudesse contê-lo. Lorde Asriel ouviu-o e virouse
imediatamente.
– Quem está aí?
Ela não conseguiu controlar-se: saltou para fora do armário e correu para
arrancar a taça das mãos dele. O vinho voou, molhando aborda da mesa e o tapete, e
a taça caiu e despedaçou-se. Ele agarrou a menina pelo pulso, torcendo-o com força.
– Lyra! Que diabos está fazendo aqui?
– Me solte e eu lhe conto!
– Primeiro vou lhe quebrar o braço. Como ousa entrar aqui?
– Acabei de salvar a sua vida!
Por um segundo os dois ficaram imóveis, ela a se retorcer de dor e fazendo uma
careta para reprimir os gemidos, ele inclinado sobre ela, de testa franzida, como um
trovão anunciando tem pestade.
– Que foi que disse? – ele perguntou, em voz mais baixa.
– O vinho está envenenado – ela resmungou, quase sem abrir a boca. – Vi o
Reitor colocar um pó branco dentro dele.
Lorde Asriel soltou-a e ela caiu no chão; nervoso, Pantalaimon esvoaçou para o
ombro dela. O tio baixou os olhos com uma raiva controlada, e ela não ousou encará-lo
nos olhos.
– Entrei só para ver como era esta sala – ela contou. –Sei que não devia ter feito
isso. Ia sair antes que alguém entrasse, mas o Reitor apareceu e fiquei encurralada. O
armário era o único esconderijo. E vi quando ele colocou o pó no vinho. Se eu não
tivesse...
Bateram na porta.
– Deve ser o Porteiro – disse Lorde Asriel. – Volte para o armário. Se eu ouvir o
menor barulho, vou fazer você ter vontade de morrer.
Ela correu a se esconder, e mal fechara a porta do armário quando Lorde Asriel
falou em voz alta:
– Pode entrar!
Como ele tinha dito, era o Porteiro.
– Coloco aqui, senhor?
Lyra viu o velho parado à porta com ar indeciso, e atrás dele a ponta de um
grande caixote de madeira.
– Isto mesmo, Shuter. Traga as duas para dentro e coloque no chão perto da
mesa.
Lyra acalmou-se um pouquinho e permitiu-se sentir a dor no ombro e no pulso. Ela
teria chorado de dor se fosse outro tipo de menina; mas só o que fez foi cerrar os
dentes e movimentar de leve o braço até senti-lo mais leve.
Então ouviu o ruído de vidro quebrado e o borbulhar de um líquido que se
derramava.
– Maldição! Shuter, seu velho descuidado! Veja o que você fez!
Lyra conseguia ver mal e mal. O tio dera um jeito de derrubar a garrafa de Tokay,
fazendo parecer que tinha sido o Porteiro. O velho pousou com cuidado o caixote no
chão e começou a se desculpar.
– Sinto muito, mesmo, senhor. A mesa estava mais perto do que eu pensava...
–Arrume alguma coisa para limpar esta sujeira. Vá depressa, antes que o tapete
fique impregnado!
O porteiro e seu jovem ajudante saíram apressados. Lorde Asriel aproximou-se
do armário e falou num cochicho: – Já que está aí, pode fazer alguma coisa útil. Vigie
atentamente o Reitor. Se me contar alguma coisa interessante a respeito dele, vou
impedir que você tenha mais problemas do que os que já vai ter. Entendeu?
– Sim, tio.
– Se fizer um barulho sequer aí dentro, não vou ajudá-la. Você está por sua
conta.
Ele afastou-se, e estava novamente parado de costas para a lareira quando o
Porteiro voltou com uma vassoura e uma pá para os cacos de vidro, além de um pano
e uma tigela para o líquido.
– Só posso pedir desculpas mais uma vez, senhor; juro que não sei o que me...
– Limpe isto aí e pronto.
Enquanto o Porteiro enxugava o vinho do tapete, o Mordomo bateu e entrou com
o criado de Lorde Asriel - um homem chamado Thorold. Os dois carregavam um
caixote pesado, de madeira encerada e alças de bronze. Viram o que o porteiro estava
fazendo e estacaram.
– Era o Tokay, sim – disse Lorde Asriel. – Uma pena. A lanterna está aí? Coloque-a perto do armário, Thorold, por favor. A tela vai ficar no outro lado. Lyra percebeu que pela fresta da porta conseguiria ver a tela e o que fosse projetado nela, e ficou curiosa em saber se o tio tinha feito de propósito. Protegida pelo barulho que o criado fazia ao desenrolar o linho rígido e montar a tela e sua armação.
ela cochichou:
– Está vendo? Não valeu a pena?
– Pode ser que sim... – disse Pantalaimon em tom severo, com sua vozinha de mariposa – ...e pode ser que não – completou.
Lorde Asriel ficou parado perto da lareira bebericando o resto do café e observando com ar sisudo enquanto Thorold abria a caixa da lanterna de projeção e desencapava as lentes antes de verificar o tanque de óleo.
– Há bastante óleo, senhor – disse. – Quer que eu mande chamar um técnico para fazer a projeção?
– Não, eu mesmo farei isso. Obrigado, Thorold. Eles já terminaram o jantar, Wren?
– Creio que estão quase terminando, senhor – respondeu o Mordomo. – Se entendi direito o que o Sr. Cawson disse, o Reitor e seus convidados vão se apressar quando souberem que o senhor está aqui. Posso levar a bandeja do café?
– Pode levar.
– Muito bem, senhor.
Com uma mesura leve, o Mordomo pegou a bandeja e saiu, e Thorold foi com ele.
Assim que a porta se fechou, Lorde Asriel olhou diretamente para o armário no outro lado da sala, e Lyra sentiu a força daquele olhar quase como se ele tivesse uma forma física, como se fosse uma flecha ou uma lança. Então ele desviou os olhos e falou baixinho com seu daemon.
A pantera veio sentar-se calmamente ao lado dele, alerta, elegante e perigosa, os olhos verdes examinando o aposento antes de se voltarem, como os olhos negros dele, para a porta que dava para o Salão, no momento em que a maçaneta girou. Lyra não conseguia ver a porta, mas escutou uma respiração profunda quando o primeiro homem entrou.
– Estou de volta, Reitor – disse Lorde Asriel. – Por favor , traga os seus convidados; tenho algo muito interessante para mostrar.

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