sábado, 18 de outubro de 2014

10- O Cônsul e o Urso

      John Faa e os outros chefes tinham decidido que iriam para Trollesund, o
principal porto da Lapônia. As bruxas tinham um consulado nessa cidade, e John
Faa sabia que, sem a ajuda delas - ou pelo menos sua neutralidade amigável – ,
seria impossível salvar as crianças cativas.
No dia seguinte, quando as náuseas de Lyra tinham diminuído um pouco, ele
explicou sua idéia a ela e a Farder Coram.
      O sol brilhava, e as ondas verdes quebravam-se de encontro à proa
formando esteiras de espuma. No convés, com a brisa soprando e o mar inteiro
brilhando com luz e movimento, ela sentia pouco enjôo; e agora que Pantalaimon
tinha descoberto o prazer de ser uma gaivota e depois uma procelária roçando os
picos das ondas, Lyra distraiu- se com a alegria dele e não conseguiu ficar entregue
aos sofrimentos de um marinheiro de primeira viagem.
     John Faa, Farder Coram e mais dois ou três homens estavam sentados na popa,
sob o sol, conversando sobre o próximo passo.
– Bom, Farder Coram conhece essas bruxas da Lapônia – disse John Faa. – E se
não me engano há uma dívida de favor.
– É isso mesmo, John – confirmou Farder Coram. - Foi há 40 anos, mas para
uma bruxa isso não é nada; algumas vivem isso multiplicado várias vezes.
– Que foi que aconteceu para criar essa dívida, Farder Coram? – perguntou
Adam Stefanski, o homem encarregado da tropa de combate.
– Salvei a vida de uma bruxa – Farder Coram explicou.
– Ela caiu do céu, perseguida por um enorme pássaro vermelho, nunca vi outro
igual. Ela caiu ferida no pântano, e eu saí procurando. Estava quase afogada, e eu a
coloquei dentro do barco e dei um tiro no pássaro. Ele caiu num atoleiro, infelizmente,
pois era do tamanho de uma galinhola e vermelho como uma labareda.
– Ah... – murmuraram os outros, presos à narrativa de Farder Coram.
– Bom, quando coloquei a moça no barco, tive o maior choque da minha vida,
porque ela não tinha daemon.
Foi como se ele tivesse dito "não tinha cabeça"; essa idéia era repugnante. Os
homens estremeceram, seus daemons se eriçaram, ou se sacudiram, ou piaram
roucamente, e os homens as acalmaram. Pantalaimon esgueirou-se para o colo de
Lyra, os corações de ambos batendo em uníssono.
– Pelo menos era o que parecia- continuou Farder Coram. – Tendo caído do céu,
eu já suspeitava que era uma bruxa. Parecia mesmo uma mulher jovem, mais magra
que algumas e mais bonita que a maioria, mas não ver o daemon me causou um grande
choque.
– Então as bruxas não têm daemon? – quis saber outro homem: Michael
Canzona.
– Os daemons delas são invisíveis, eu acho – disse Adam Stefanski. – Ele estava
lá o tempo todo, e Farder Coram não viu.
– Não, você está enganado, Adam – contestou Farder Coram. – Ele não estava
lá, não. As bruxas têm o poder de se separar de seus daemons a uma distância muito
maior do que nós. Se for preciso, elas podem mandar seus daemons viajar para terras
distantes, ou até as nuvens, ou até o fundo do mar. E essa bruxa que eu encontrei não
tinha descansado nem uma hora quando o daemon dela chegou voando, porque ele
sentiu o medo e os machucados dela, é claro. E eu acredito, embora ela nunca tenha
admitido, que o grande pássaro vermelho que eu matei era o daemon de outra bruxa.
Poxa, fiquei tremendo quando pensei nisso. Se eu soubesse, não teria atirado; teria
tomado outra medida qualquer, no mar ou em terra; mas eu atirei. De qualquer
maneira, eu salvei a vida dela, e ela me deu uma lembrança disso e disse para eu lhe
pedir ajuda se algum dia precisasse. E uma vez ela me mandou ajuda quando os
escraelingues me acertaram uma flecha envenenada. Nós tínhamos outras ligações,
também... Não nos vemos há muitos anos, mas ela vai se lembrar.
– E essa bruxa mora em Trollesund?
– Não, não. Elas moram nas florestas e na tundra, não em um porto marítimo
entre homens e mulheres. O negócio delas é com a natureza. Mas elas têm lá um
consulado, e eu vou mandar um recado para ela, sem dúvida.
Lyra estava louca para saber mais sobre as bruxas, mas a conversa virou para a
questão de combustível e suprimentos, e afinal ela ficou impaciente para conhecer o
resto do navio. Saiu vagando pelo convés na direção da proa, e logo fez amizade com
um Marinheiro Qualificado- amizade essa que começou com ela atirando nele, uma por
uma, as sementes que guardara da maçã que tinha comido no café da manhã.
Ele era um homem corpulento e tranqüilo, e depois que lhe disse um palavrão e
ouviu outro dela em resposta, eles se tornaram grandes amigos. O nome dele era
Jerry. Sob a orientação dele, ela descobriu que ter alguma coisa para fazer impedia a
náusea, e que até um trabalho como lavar o convés podia ser prazeroso, se fosse feito
como um marinheiro fazia. Ela ficou entusiasmada com essa idéia, e depois disso
passou a dobrar as cobertas da sua cama à moda dos marinheiros, a guardar seus
pertences no armário à moda dos marinheiros e usar o termo "estivar" em vez de
"arrumar" para esse processo.
Depois de dois dias no mar, Lyra estava resolvida que aquela era a vida que ela
queria. Tinha toda liberdade no navio, desde a casa de máquinas até a ponte, e logo
sabia o nome de toda a tripulação. O Capitão Rokeby deixou que ela tocasse o apito a
vapor para sinalizar para uma fragata das Holandas{14}; o cozinheiro aceitou a ajuda
dela para misturar o pudim de pêssego; e só uma reprimenda de John Faa impediu que
ela subisse ao topo do mastro para contemplar da gávea o horizonte.
O navio ia para o Norte, e cada dia o frio era mais intenso. Procuraram-se, nos
depósitos, lonas que pudessem ser cortadas para ela, e Jerry ensinou-lhe a costurar,
uma arte que ela aprendeu de boa vontade, embora na Jordan a tivesse desdenhado,
fugindo às aulas da Sra. Lonsdale. Juntos fizeram para o aletômetro uma sacola à
prova d'água que ela podia usar em volta da cintura, caso caísse na água, segundo ela.
Com o instrumento em segurança, ela usando a capa e o capuz de lona, agarrava-se à
amurada, enquanto a espuma gelada derramava-se por cima da proa e molhava o
convés. Ocasionalmente ela sentia enjôo, especialmente quando o vento crescia e o
navio mergulhava pesadamente por uma crista das ondas verde-acinzentadas, e então
foi a vez de Pantalaimon distraí-la roçando as ondas como uma procelária, porque ela
conseguia sentir a euforia de liberdade dele ao sabor do vento e da água e esquecer o
enjôo. De vez em quando, ele tentava até mesmo ser um peixe, e certa vez juntou-se a
um cardume de golfinhos, para grande surpresa e prazer deles. Lyra ficou, tremendo
de frio, no castelo de proa, e riu de prazer enquanto seu amado Pantalaimon, esguio e
poderoso, saltava da água com meia dúzia de outras figuras cinzentas e rápidas. Era
prazer, mas não um prazer simples, pois nele havia também dor e medo: e se ele
gostasse mais de ser golfinho do que gostava dela?
Seu amigo, o Marinheiro Qualificado, estava por perto e enquanto ajeitava a
tampa de lona sobre a abertura da proa ele parou para observar o daemon da menina
nadando e saltando com os golfinhos. Seu próprio daemon, uma gaivota, estava
empoleirado no cabrestante, com a cabeça enfiada sob a asa. Ele sabia o que Lyra
estava sentindo.
–Eu me lembro a primeira vez que vim para o mar, eu era bem novinho e a minha
Belisária ainda não tomara apenas uma forma, e ela adorava ser toninha, que é uma
baleia pequena. Eu tinha medo de que ela ficasse assim para sempre. No meu primeiro
navio, tinha um velho marinheiro que nunca podia ir à terra, porque o daemon dele tinha
ficado sendo um golfinho, e ele nunca podia sair do mar. Era um marinheiro muito
bacana, o melhor navegador que já se viu; podia ter feito fortuna com a pesca; mas não
gostava. Nunca foi feliz até morrer e poder ser enterrado no mar.
– Por que os daemons têm que ficar com uma forma só?
– Lyra perguntou. – Quero que Pantalaimon possa mudar sempre. Ele também
quer.
– Ah, eles sempre ficam com uma só, e sempre ficarão. Faz parte de crescer. Vai
chegar um tempo em que você vai ficar cansada de tantas mudanças dele, e vai querer
que ele tenha uma forma estabelecida.
– Nunca vou querer isso!
– Ah, vai, sim. Vai querer crescer como todas as outras meninas. De qualquer
maneira, a forma única tem suas vantagens.
– Quais?
– Saber que tipo de pessoa você é. A velha Belisária, por exemplo; ela é uma
gaivota, o que significa que eu sou uma espécie de gaivota, também. Não sou
grandioso, esplêndido, nem bonito, mas sou durão e consigo sobreviver em qualquer
lugar, e sempre arranjo comida e boa companhia. Vale a pena saber disso. E quando o
seu daemon se estabelecer numa forma, você vai saber que tipo de pessoa é.
– Mas e se o meu daemon se estabelecer numa forma que eu não goste?
– Bom, você vai se decepcionar, não é? Tem muita gente que gostaria de ter um
daemon leão e acabam com um poodle. E até aprenderem a se contentar com o que
são, reclamam muito. Acho isso um desperdício de energia.
Mas Lyra tinha a impressão de que nunca cresceria.
Certa manhã, havia no ar um cheiro diferente, e o navio movia-se de modo
estranho, balançando-se de um lado para o outro, em vez de mergulhar a proa e tornar
a erguê-la. Lyra despertou e em menos de um minuto estava no convés, olhando
avidamente para terra: uma visão tão estranha, depois de toda aquela água, pois
embora só tivessem permanecido alguns dias navegando, para Lyra era como se
tivessem passado meses no oceano. Bem à frente do navio erguia-se uma montanha
de encostas verdes e o pico coberto de neve, e no sopé uma cidadezinha e um porto:
casas de mádeira com telhados pontudos, a torre fina de uma igreja, caixotes no porto
e nuvens de gaivotas voando em círculo e gritando. O cheiro era de peixe, mas junto
com ele vinham também cheiros de terra firme: resina de pinheiro, barro, e alguma
coisa animal e almiscarada, e mais alguma coisa, que era fria, informe e livre: podia ser
neve. Era o cheiro do Norte.
Em volta do navio, brincavam focas, mostrando seus rostos de palhaço acima da
água antes de mergulharem de novo ruidosamente.
O vento que levantava espuma das cristas brancas das ondas era
monstruosamente frio, e procurava toda abertura que houvesse no casaco de Lyra, e
logo as mãos dela doiam e o rosto estava dormente. Pantalaimon, em sua forma de
arminho, aquecia o pescoço dela, mas o tempo estava frio demais para que ficassem
do lado de fora por muito tempo sem um trabalho a fazer, mesmo que fosse observar
as focas, e Lyra desceu para tomar seu mingau do café da manhã e olhar pela
escotilha do refeitório.
Dentro do porto, o mar estava calmo, e enquanto o barco avançava ao longo do
gigantesco quebra-mar, Lyra começou a sentir-se tonta por causa da falta de
movimento. Ela e Pantalaimon observavam atentamente enquanto o navio movia-se de
modo lento e majestoso em direção ao atracadouro. Durante a hora seguinte, o ruído
do motor diminuiu para um ronco baixo, vozes gritavam ordens ou perguntas, cordas
eram jogadas, passarelas baixadas, portas abertas.
– Vamos, Lyra- chamou Farder Coram. – Já arrumou sua bagagem?
A bagagem de Lyra, por assim dizer, já estava arrumada desde que ela acordara
de manhã e avistara terra firme. Tudo que precisava fazer agora era correr até a
cabine e pegar a sacola de compras.
A primeira coisa que ela e Farder Coram fizeram em terra firme foi visitar a casa
do Cônsul das Bruxas. Não demoraram a encontrar; a cidadezinha rodeava o porto,
sendo o oratório e a casa do Governador as únicas construções um pouco maiores. O
Cônsul das Bruxas morava numa casa de madeira pintada de verde com vista para o
mar, e quando eles tocaram a campainha, o som ressoou pela rua silenciosa.
Um criado levou-os para uma saleta e lhes trouxe café.
Finalmente o próprio Cônsul veio recebê-los. Era um homem gordo, de rosto
exuberante, usando um sóbrio terno preto. Seu nome era Martin Lanselius. Seu daemon
era uma serpente pequena da mesma cor verde intensa e brilhante dos olhos dele, que
eram a única coisa de bruxo na aparência dele; mas Lyra não tinha certeza de como
imaginava a aparência de uma bruxa.
– Em que posso ajudá-lo, Farder Coram? – ele perguntou.
– De duas maneiras, Dr. Lanselius. Primeiro, estou ansioso para entrar em
contato com uma bruxa que conheci há alguns anos, na região dos Pântanos na Anglia
Oriental. O nome dela é Serafina Pekkala.
O Dr. Lanselius tomou nota com uma lapiseira de prata.
– Há quanto tempo foi o seu encontro com ela? –quis saber.
– Deve ter uns 40 anos. Mas acho que ela se lembra.
– E qual é a segunda maneira em que posso ajudá-lo?
– Estou representando um grupo de famílias gípcias que perderam seus filhos.
Temos razões para acreditar que existe uma organização sequestrando essas
crianças, as nossas e as andarilhas, e que essas crianças são trazidas para o Norte
com algum objetivo desconhecido. Gostaria de saber se o senhor ou o seu povo ouviu
alguma coisa sobre isso.
O Dr. Lanselius ficou bebericando calmamente seu café.
– Não é impossível que notícias de tal atividade possam ter chegado às nossas
paragens – disse. – o senhor sabe que as relações entre o meu povo e os
nortelandenses são inteiramente cordiais. Seria difícil encontrar uma justificativa para
eu ir contra eles.
Farder Coram assentiu como se compreendesse muito bem.
– Naturalmente – respondeu. – E não me seria necessário perguntar-lhe se eu
poderia conseguir a informação de qualquer outra maneira. Foi por isso que primeiro
perguntei pela minha amiga.
Agora foi o Dr. Lanselius quem assentiu como se compreendesse muito bem. Lyra
observava esse jogo com perplexidade e respeito. Havia muita coisa acontecendo por
detrás das palavras, e ela viu que o Cônsul das Bruxas estava chegando a uma
decisão.
– Muito bem – ele disse. – Naturalmente, isso é verdade, e o senhor fique
sabendo que seu nome não nos é desconhecido, Farder Coram. Serafina Pekkala é a
rainha de um clã de bruxos na região do Lago Enara. Quanto à sua outra pergunta,
naturalmente fica entendido que essa informação não chegou ao senhor através de
mim.
– Naturalmente.
– Bem, aqui mesmo nesta cidade existe uma filial de uma organização chamada
Companhia de Exploração Progresso do Norte, que finge estar procurando minério,
mas que na realidade é controlada por uma coisa chamada Conselho Geral Londrino de
Oblação. Por acaso sei que essa organização importa crianças.
Isto não é conhecido na cidade; o governo da Noruega não tem conhecimento
oficial do fato. As crianças não ficam muito tempo aqui. São levadas para o interior.
– Sabe para onde, Dr. Lanselius?
– Não. Eu lhe contaria, se soubesse.
– E sabe o que acontece a elas lá?
Pela primeira vez o Dr. Lanselius olhou de relance para Lyra.
Ela o encarou de volta, impassível. O pequeno daemon-serpente verde ergueu a
cabeça do colarinho do Cônsul e cochichou algo em seu ouvido, deixando ver a língua
pequena e rápida. O Cônsul declarou:
– Já ouvi a expressão "o Processo Maystadt" em relação a este assunto. Acho
que é um nome usado para evitar o uso do nome real. Também já ouvi a palavra
"intercisão", mas não sei a que se refere.
– E no momento há crianças na cidade? – Farder Coram perguntou.
Ele estava acariciando o pêlo de seu daemon, sentado alerta em seu colo. Lyra
percebeu que ela havia parado de ronronar.
– Acho que não – disse o Dr. Lanselius. – Um grupo de umas dez chegou na
semana passada e foi embora anteontem.
– Ah, há tão pouco tempo assim? Então isso nos dá alguma esperança. Como foi
que viajaram, Dr. Lanselius?
– De trenó.
– E o senhor não tem idéia de para onde foram?
– Muito pouca. Não é um assunto que nos interesse.
– Naturalmente. Agora, o senhor respondeu todas as minhas perguntas de boa
vontade, e só tenho mais uma. Se o senhor fosse eu, que pergunta faria ao Cônsul dos
Bruxos?
Pela primeira vez o Dr. Lanselius sorriu.
– Eu perguntaria onde poderia obter os serviços de um urso de armadura – disse.
Lyra endireitou-se na cadeira e sentiu o coração de Pantalaimon dar um salto em
suas mãos.
– Pensei que os ursos de armadura estivessem a serviço do Conselho de
Oblação – disse Farder Coram, surpreso. –Quero dizer, da Companhia de Progresso
do Norte, ou seja lá qual for o nome que estão usando.
– Pelo menos um deles não está. Vai encontrá-lo no entreposto de trenós no final
da rua Langlokur. No momento, ele ganha a vida lá, mas seu temperamento é tão forte,
e tão forte é o medo que ele causa nos cachorros, que seu emprego talvez não dure
muito.
–Então ele é um renegado?
–Parece que sim. O nome dele é Iorek Byrnison. Você me perguntou o que eu
perguntaria, e eu lhe disse. Agora eis o que eu faria: eu agarraria a chance de
empregar um urso de armadura, mesmo que fosse uma oportunidade muito mais
distante do que esta.
Lyra mal conseguia ficar sentada. Farder Coram, no entanto, conhecia o ritual de
entrevistas como esta, e pegou outro pedaço de pão-de-mel. Enquanto ele comia, o Dr.
Lanselius virou-se para Lyra.
– Fiquei sabendo que você possui um aletômetro- disse, para grande surpresa
dela; como poderia saber disso?
– Sim – ela respondeu. Então, impulsionada por um cutucão de Pantalaimon,
ofereceu:
Gostaria de dar uma olhada nele?
– Gostaria muito.
Ela puxou de dentro da roupa a sacola de lona e entregou-lhe o embrulho de
veludo.
Ele desembrulhou o instrumento e ergueu-o com grande cuidado, contemplando o
mostrador como um sábio contemplando um manuscrito raro.
– Que maravilha! – exclamou. – Já vi outro exemplar, mas não era tão bonito
quanto este. E você possui o livro de instruções?
– Não – Lyra começou.
Antes, porém, que ela pudesse dizer mais alguma coisa, Farder Coram interveio:
–Não, é uma grande pena que embora Lyra possua o aletômetro não haja meio
de consultá-lo. É um mistério igual às manchas de tinta que os hindus usam para ler o
futuro. E o livro de instruções mais próximo, pelo que sei, é o da Abadia de St. Johann
em Heidelberg.
Lyra entendeu por que ele dizia isso: não queria que o Dr. Lanselius soubesse do
poder de Lyra. Mas ela via também uma coisa que Farder Coram não conseguia ver: a
agitação do daemon do Dr. Lanselius. Ela logo percebeu que não adiantava fingir.
Portanto, disse:
– Na verdade, eu consigo ler o aletômetro.
Ela se dirigiu tanto ao Dr. Lanselius quanto a Farder Coram, mas quem reagiu foi
o Cônsul.
– É muito sábio da sua parte – disse. – Onde foi que obteve este exemplar?
– O Reitor da Faculdade Jordan em Oxford me deu. Dr. Lanselius, o senhor sabe
quem foi que construiu estas coisas?
– Dizem que tiveram origem em Praga. O inventor do primeiro aletômetro estava
aparentemente tentando descobrir um modo de medir a influência dos planetas, de
acordo com os princípios da astrologia. Ele pretendia criar um mecanismo que reagisse
à percepção de Marte ou Vênus, assim como a bússola reage à percepção do Norte.
Nisso ele fracassou, mas o mecanismo que criou está obviamente reagindo a algo,
mesmo que ninguém saiba exatamente a quê.
– E onde ele conseguiu estes símbolos?
– Ah, foi no século XVII. Havia símbolos e emblemas por toda parte. Os prédios e
os quadros podiam ser lidos como livros. Tudo simbolizava outra coisa; se a pessoa
tivesse o dicionário certo, poderia ler até a Natureza. Não era estranho que os filósofos
usassem a simbologia da sua época para interpretar um conhecimento vindo de uma
origem misteriosa. Mas, vocês sabem, durante mais de dois séculos eles não foram
corretamente usados.
Devolveu o instrumento a Lyra e acrescentou:
– Posso lhe fazer uma pergunta? Sem o livro dos símbolos, como é que você lê?
– Eu faço minha cabeça ficar vazia e então é como olhar para dentro d'água. A
gente deixa os olhos encontrarem o nível certo, porque é o único que fica em foco.
Mais ou menos isso - ela falou.
– Será que posso vê-la fazer isso? – ele pediu.
Lyra olhou para Farder Coram, com vontade de concordar, porém esperando a
aprovação dele. O ancião assentiu.
– Que é que vou perguntar? – Lyra quis saber.
– Quais são as intenções dos tártaros em relação a Kamchatka?
Esta não era difícil. Lyra girou um ponteiro até o camelo, que significava Ásia, que
significa os tártaros; outro, para a cornucópia, significando Kamchatka, onde ficavam as
minas de ouro; e o terceiro para a formiga, que significava atividade, que significava
propósito e intenção. Então ficou imóvel, deixando a mente reunir os três níveis de
significado, esperando tranqüilamente a resposta, que veio quase no mesmo instante.
O ponteiro comprido estremeceu sobre o golfinho, o elmo, o bebê e a âncora,
dançando entre eles e até o cadinho num desenho complicado que os olhos de Lyra
acompanharam sem hesitação, mas que era incompreensível para os dois homens.
Depois que ele completou várias vezes o movimento, Lyra ergueu os olhos.
Pestanejou duas vezes, como se saísse de um transe.
– Eles vão fingir que atacam lá, mas não vão atacar, porque é longe demais, e
eles iam ficar espalhados demais – disse.
– Pode me dizer como leu isto?
– O golfinho, um dos significados mais profundos dele é brincar, fazer
brincadeiras – ela explicou. – Sei que é esse significado porque ele parou no símbolo
um certo número de vezes e ficou claro nesse nível e em nenhum outro. O bebê
significa... significa dificuldade... O ataque seria muito difícil para eles, e a âncora diz
por quê: porque eles iam ficar esticados como a corda da âncora. É assim que eu vejo,
entende?
O Dr. Lanselius assentiu.
– Notável – comentou. – Fico-lhe muito grato. Não vou esquecer.
Então olhou estranhamente para Farder Coram e depois para Lyra.
– Posso lhe pedir mais uma demonstração?- perguntou.
– No quintal atrás desta casa você vai encontrar vários galhos de pinheiro
nubígeno{15} pendurados na parede. Um deles foi usado por Serafina Pekkala; você
pode me dizer qual?
– Claro! – disse Lyra, sempre pronta para fazer bonito.
Pegou o aletômetro e saiu depressa. Estava ansiosa para ver o tal pinheironubígeno
que as bruxas usavam para voar. Enquanto ela estava ausente, o Cônsul
perguntou:
– Sabe quem é esta criança?
– É a filha de Lorde Asriel – respondeu Farder Coram.
– E a mãe é a Sra. Coulter, do Conselho de Oblação.
– E além disto?
O velho gípcio sacudiu a cabeça.
– Não, eu não sei mais. Mas é uma criatura estranha e inocente, e eu não quero
que nenhum mal lhe aconteça. Como ela consegue ler aquele instrumento eu não sei,
mas acredito no que ela diz. Por que pergunta, Dr. Lanselius? Que é que o senhor sabe
sobre ela?
– Há séculos as bruxas falam dessa criança – disse o Cônsul. – Por viverem tão
próximas do lugar onde o véu entre os mundos é fino, de vez em quando elas escutam
sussurros imortais, as vozes daqueles seres que passam de um mundo a outro. E eles
falaram de uma criança como esta, que tem um grande destino que não poderá ser
cumprido neste mundo, mas num lugar muito além dele. Sem esta criança, morreremos
todos, é o que dizem as bruxas. Mas ela tem que cumprir esse destino sem saber o
que está fazendo, porque somente na ignorância dela nós podemos ser salvos. Está
entendendo, Farder Coram?
– Não – disse Farder Coram. – Não posso dizer que estou.
– O que significa que ela deve ser livre para cometer erros. Devemos esperar que
ela não cometa, mas não podemos guiá-la. Estou feliz por ter visto esta criança antes
de morrer.
– Mas como foi que o senhor a reconheceu? E que foi que quis dizer quando falou
em seres que passam de um mundo a outro? Não consigo compreender o que o senhor
diz, Dr. Lanselius, por mais que o considere um homem honesto...
Mas antes que o Cônsul pudesse responder, a porta se abriu e Lyra entrou,
triunfante, trazendo um raminho de pinheiro.
– É este aqui! – exclamou. – Testei todos eles, e tenho certeza de que é este.
O Cônsul examinou-o com atenção e assentiu.
– Correto – disse. – Bem, Lyra, isto é notável. Você tem sorte de ter um
instrumento como este, e eu lhe desejo sorte com ele. Gostaria de lhe dar uma coisa...
Pegou o galho e partiu um raminho para ela.
– Ela voou com isto? – Lyra quis saber, impressionada.
– Voou, sim. Não posso lhe dar todo, porque preciso dele para entrar em contato
com ela, mas isto é suficiente. Cuide bem dele.
– Vou cuidar. Muito obrigada.
Ela enfiou o pedacinho de ramo dentro da bolsa, ao lado do aletômetro. Farder
Coram tocou no ramo de pinheiro como se fosse um amuleto, e Lyra viu no rosto dele
uma expressão que nunca tinha visto antes: quase nostálgica. O Cônsul levou-os até a
porta, onde apertou a mão de Farder Coram, e a de Lyra também.
– Espero que sejam bem-sucedidos – disse.
Ficou parado na soleira, no frio penetrante, observando-os seguir pela pequena
rua.
– Ele já sabia da resposta sobre os tártaros – Lyra contou a Farder Coram. – O
aletômetro me contou, mas eu não disse. Foi o cadinho.
– Imagino que estava testando você, filha. Mas fez bem em ser gentil, já que não
temos certeza do que ele já sabe. E aquela dica do urso foi muito útil. De outra
maneira, não ficaríamos sabendo.
Conseguiram encontrar o entreposto, que consistia em dois armazéns de concreto
numa área matagosa de terrenos baldios onde o capim fino crescia entre pedras
cinzentas e poças de lama gelada. No escritório, um homem carrancudo informou que
eles poderiam falar com o urso no final do expediente, às seis horas, mas teriam que
chegar na hora, porque em geral ele ia diretamente para o quintal atrás do Bar de
Einarsson, onde lhe davam bebida.
Então Farder Coram levou Lyra para a melhor loja de roupas da cidade e
comprou para ela algumas roupas próprias para o frio. Compraram um casacão feito
de pele de rena, porque os pêlos da rena são ocos e isolam muito bem; e o capuz era
feito de pele de carcaju{16}, porque esse pêlo expulsa o gelo que se forma quando a
pessoa respira. Compraram roupas de baixo e forros de bota de pele de filhote de
rena, e luvas de seda para usar debaixo das grossas luvas de pele. As botas e essas
luvas eram feitas da pele da perna da rena, que é muito resistente, e as solas das
botas eram feitas com a pele da foca barbada, que é tão grossa quanto o couro do
leão-marinho, porém mais leve. Finalmente, compraram uma capa semitransparente
que a envolvia completamente, feita de intestino de foca.
Vestindo tudo isso, com um cachecol de seda em volta do pescoço e uma touca
de lã tapando as orelhas e o grande capuz puxado para a frente, ela sentia até calor;
mas eles iam para lugares ainda muito mais frios.
John Faa, que tinha ficado supervisionando o descarregamento do navio, estava
ansioso para saber o que o Cônsul das Bruxas dissera, e ficou ainda mais curioso
quando soube do urso.
– Vamos lá hoje mesmo – decidiu. – Já falou alguma vez com uma criatura
dessas, Farder Coram?
– Já, sim; e já lutei contra uma, também, embora não sozinho, graças a Deus.
Temos que nos preparar para lidar com ele, John. Ele vai pedir muito, tenho certeza, e
deve ser ranzinza e difícil de tratar; mas precisamos dele.
– Ah, precisamos, sim. E a sua bruxa?
– Bem, ela está muito longe, e agora é rainha de um clã – contou Farder Coram.
– Eu esperava que pudesse mandar um recado para ela, mas a resposta ia demorar
demais.
– Ah, sim. Agora vou contar o que foi que eu descobri, amigo.
Pois John Faa estava impaciente para lhes contar uma coisa.
Ele havia conhecido no porto um explorador, um homem da Nova Dinamarca
chamado Lee Scoresby, do país do Texas, e esse homem tinha um balão! A expedição
que ele pretendia acompanhar fracassara por falta de fundos antes de sair de
Amsterdã, de modo que ele estava livre.
– Pense no que podemos fazer com a ajuda de um aeróstata, Farder Coram! –
disse John Faa, esfregando as mãos. - Contratei o sujeito para ir conosco. Parece que
estamos tendo sorte neste lugar.
– Ainda mais sorte teríamos se tivéssemos uma idéia de aonde estamos indo –
disse Farder Coram.
Mas nada conseguia diminuir o prazer de John Faa por estar novamente em
campanha.
Depois que escureceu e que toda a carga tinha sido retirada do navio e estava
esperando no cais, Farder Coram e Lyra seguiram ao longo da praia procurando o Bar
de Einarsson. Encontraram facilmente: um tosco barracão de concreto com um cartaz
de néon vermelho piscando irregularmente acima da porta e o som de vozes altas
passando através das janelas embaçadas de condensação.
Um beco de solo acidentado ao lado do bar levava a um portão de ferro que dava
para os fundos do prédio, onde havia um barracão. A luz fraca que saía pela janela dos
fundos do bar mostrava uma figura grande e pálida agachada, devorando uma posta de
carne que segurava com ambas as mãos. Lyra teve um vislumbre de um focinho sujo
de sangue, olhos pequenos e maus, e uma imensidão de pêlos amarelados e sujos. A
figura soltava sons ao mastigar e engolir, rosnados e ofegos.
Farder Coram parou junto ao portão e chamou:
– Iorek Byrnison!
O urso parou de comer. Pelo que eles podiam ver, o urso estava olhando
diretamente para eles, mas era impossível decifrar sua expressão.
–Iorek Byrnison! – tornou a chamar Farder Coram. - Posso falar com você?
Lyra tinha o coração disparado, porque alguma coisa na presença do urso davalhe
uma sensação quase de frio, de uma força perigosa e brutal, mas uma força
controlada pela inteligência; e não uma inteligência humana, nada parecido com isto,
porque naturalmente os ursos não tinham daemons. Aquela estranha figura mastigando
carne não se parecia com o que ela havia imaginado, e ela sentiu admiração e piedade
profundas pela criatura solitária.
Ele deixou a perna de rena cair na lama e foi andando de quatro até o portão. Ali
ficou de pé, com seus mais de três metros de altura, como se quisesse mostrar seu
poder e frisar que aquele portão seria inútil para contê-lo.
– Bom, quem são vocês?
Sua voz era tão grossa que parecia sacudir a terra. O fedor que vinha do seu
corpo era quase insuportável.
– Sou Farder Coram, do povo gípcio da Anglia Oriental. E esta menininha é Lyra
Belacqua.
– Que é que vocês querem?
– Queremos lhe oferecer um emprego, Iorek Byrnison.
– Já tenho emprego.
O urso pôs-se de quatro novamente. Sua voz era tão grossa e sem entonação
que era difícil detectar nela alguma expressão, fosse de ironia ou de raiva.
– Que é que você faz no entreposto de trenós? –Farder Coram quis saber.
– Conserto máquinas e artigos de ferro. Levanto coisas pesadas.
– Que tipo de trabalho é esse para um panserbjorne?
– Trabalho pago.
Atrás do urso, na porta do bar abriu-se uma fresta, e um homem colocou no chão
um grande jarro de barro antes de erguer os olhos para eles.
– Quem está aí?
– São desconhecidos – disse o urso.
O dono do bar parecia que ia perguntar mais alguma coisa, mas o urso lançou-se
na direção dele, e o homem, assustado, fechou a porta. O urso passou uma garra pelo
cabo do jarro e levou-o à boca. Lyra sentiu o cheiro forte de álcool.
Depois de beber vários goles, o urso largou o jarro e voltou a morder a carne,
aparentemente esquecido de Farder Coram e Lyra; mas de repente ele tornou a falar.
– Que trabalho vocês estão oferecendo?
– Combate, com certeza – disse Farder Coram. - Estamos viajando para o Norte
até encontrarmos o lugar para onde levaram algumas crianças roubadas. Quando
encontrarmos o lugar, vamos ter que lutar para libertar as crianças; e então vamos
trazer todas de volta.
– E como pagam?
– Não sei o que lhe oferecer, Iorek Byrnison. Se quiser ouro, nós temos.
– Não serve.
– Que é que lhe pagam no entreposto de trenós?
– Comida e bebida.
O urso silenciou; deixou cair o osso esfrangalhado e tornou a levar o jarro à boca,
engolindo a forte bebida como se fosse água.
Farder Coram falou então:
– Desculpe a indiscrição, Iorek Byrnison, mas você podia viver com orgulho e
liberdade no gelo, caçando focas e leões-marinhos, ou podia ir para a guerra e ganhar
muitos prêmios; que é que prende você a Trollesund e ao Bar de Einarsson?
Lyra sentiu o corpo inteiro arrepiar-se. Achava que uma pergunta como aquela,
sendo quase um insulto, iria enraivecer a enorme criatura, e impressionou-se com a
coragem de Farder Coram em perguntar. Iorek Byrnison largou o jarro e aproximou-se
do portão para estudar o rosto do ancião. Farder Coram não se abalou.
– Sei quem é o pessoal que vocês estão procurando, os mutiladores de crianças
– disse o urso. – Saíram da cidade anteontem, indo para o Norte com mais crianças.
Ninguém vai lhes falar sobre eles; fingem não ver, porque os mutiladores de crianças
trazem dinheiro e negócios para a cidade. Ora, eu não gosto dos mutiladores de
crianças, de modo que vou responder com educação. Fico aqui e bebo porque os
homens daqui tiraram a minha armadura, e sem ela eu posso matar focas, mas não
posso ir para a guerra. Eu sou um urso de armadura: a guerra é o mar onde eu nado e
o ar que eu respiro. Os homens desta cidade me deram bebida, me fizeram beber até
dormir, e então tiraram a minha armadura. Se eu soubesse onde ela está, iria derrubar
a cidade até pegar de volta. Se querem o meu serviço, o preço é este: devolver minha
armadura. Se fizerem isto, eu vou ajudar na sua luta até morrer ou até vocês vencerem.
O preço é a minha armadura; quando eu tiver de volta a minha armadura, nunca mais
vou precisar da bebida.

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