sexta-feira, 17 de outubro de 2014

10h12

Quando a ambulância em que estou se aproxima do hospital — não o que fica na minha
cidade, mas um hospital menor que se parece mais com uma casa antiga —, os médicos se
apressam e me levam para dentro.
— Acho que temos um pulmão colapsado aqui. Coloquem um tubo torácico e levem-na! —
ordenou a médica ruiva e delicada enquanto me passava para uma equipe de enfermeiras e
médicos.
— Onde estão os outros? — pergunta um cara barbudo que está vestido com um jaleco.
— O motorista do caminhão sofreu contusões leves, está recebendo tratamento no local do
acidente. Os pais já estavam sem vida quando o socorro chegou. O garoto, aproximadamente
sete anos de idade, vem logo atrás.
Exalei o ar dos meus pulmões como se estivesse segurando a respiração por uns vinte
minutos. Depois de ter deparado comigo mesma naquela valeta, não consegui sair para ir à
procura de Teddy. Se ele estivesse como a mamãe e o papai... como eu... Eu... Eu não quero
nem pensar nisso. Mas ele não está. Teddy está vivo.
Levaram-me para uma sala pequena onde havia luzes fluorescentes. O médico gruda alguma
coisa laranja ao lado do meu peito e depois coloca um pequeno tubo de plástico em mim. Um
outro médico acende uma lanterna bem em cima do meu olho.
— Sem resposta — diz ele à enfermeira. — O helicóptero está aqui. Leve-a para a área de
traumatologia. Agora!
Eles me tiraram às pressas da sala de emergência e me levaram até o elevador. Tenho que
correr para acompanhá-los. Um pouco antes de as portas se fecharem, vejo que Willow está
aqui, o que é estranho. Estávamos a caminho de sua casa, para visitarmos ela, Henry e o bebê.
Será que ela veio por causa da neve? Ou por causa da gente? Eu a vejo correndo pelo
corredor do hospital, com a expressão muito séria. Creio que ela ainda nem sabe que somos
nós. Talvez Willow tenha até mesmo nos ligado, deixado uma mensagem na caixa postal do
celular da minha mãe para se desculpar por algum imprevisto e dizer que não estaria em casa
para nos receber.
O elevador se abre na cobertura. Um helicóptero, com suas hélices cortando o ar, está
parado no meio de um círculo vermelho.
Nunca entrei num helicóptero antes. Mas Kim, minha melhor amiga, já. Ela sobrevoou o
Monte Santa Helena uma vez com o tio dela, um fotógrafo famoso da National geographic.
Kim vomitou nele.
— E lá estava meu tio, falando sobre a flora pós-vulcânica e eu vomitei nele e em cima de
todas as câmeras — contou Kim na sala de aula no dia seguinte.
Ela ainda estava com a cara meio verde depois da experiência.
Kim trabalha no anuário do colégio e quer ser fotógrafa. O tio a levou nessa viagem como
um agrado e para incentivar o seu talento em potencial.
— Até cheguei a tirar umas fotos com as câmeras dele — lamentou Kim. — Nunca vou
conseguir me tornar uma fotógrafa depois disso.
— Existem diferentes tipos de fotógrafos — afirmei. — Você não precisa necessariamente
sair voando por aí, em helicópteros.
Kim sorriu.
— Que bom. Porque eu nunca mais vou entrar num helicóptero. E você também, nunca!
Quero dizer a Kim que, às vezes, não temos escolha.
A porta do helicóptero está aberta, e minha maca com todos os seus tubos e fios é posta ali.
Entro bem atrás. Um médico permanece a meu lado, ainda bombeando o pequeno balão de
plástico que aparentemente está respirando por mim. Depois que começamos a levantar voo,
compreendo por que Kim se sentiu enjoada. Um helicóptero não é como um avião que viaja
como uma bala em alta velocidade, mas se mantém estável. Um helicóptero se parece mais
com um disco de hóquei lançado no céu. Para cima e para baixo, de um lado para o outro. Não
faço a menor ideia de como essas pessoas conseguem continuar realizando os procedimentos
em mim, como lêem as minúsculas impressões do computador, como conseguem dirigir essa
coisa enquanto se comunicam por fones de ouvido, conversando sobre o meu estado. Também
não entendo como fazem tudo isso enquanto as hélices não param de girar.
O helicóptero atinge um bolsão de ar e é óbvio que eu deveria me sentir enjoada. Mas não
sinto nada. Pelo menos este eu, que é um espectador, não sente nada. E o eu que está aqui,
deitado na maca, parece que também não. Mais uma vez, preciso me perguntar se estou morta
e respondo a mim mesma que não. Não teriam me colocado neste helicóptero e não
sobrevoariam as florestas comigo se eu estivesse morta.
Além do mais, se eu estiver morta, gosto de pensar que a mamãe e o papai teriam vindo me
encontrar a esta altura.
Vejo o horário no painel de controle. São 10h37 da manhã. Fico me perguntando o que está
acontecendo lá embaixo. Será que Willow se deu conta de quem estava na emergência?
Alguém teria ligado para os meus avôs? Eles moram em uma cidade vizinha à nossa e eu
estava ansiosa para jantar com eles. O vovô pesca e ele mesmo defuma o salmão e a ostra, e
provavelmente nós jantaríamos isso com pão preto de cerveja. Então, o vovô levaria Teddy
até as lixeiras grandes da cidade, o deixaria ali e passearia com ele por lá, deixando-o
escolher algumas revistas para comprar. Nos últimos tempos, Teddy andava fissurado pela
Seleções. Ele gosta de recortar os desenhos para fazer colagens.
Fico pensando em Kim. Hoje não temos aula. Provavelmente não irei para a escola amanhã.
Pode ser que ela pense que faltei porque fiquei com Adam até tarde assistindo ao show da
Shooting Star em Portland.
Portland. Estou quase certa de que estou sendo levada para lá. O piloto do helicóptero
continua falando o tempo todo sobre o “trauma um”. Pela janela, posso ver o pico da montanha
Hood se aproximando. O que significa que estamos perto de Portland.
Será que Adam já está lá? Ele tocou em Seattle ontem à noite, mas fica tão cheio de
adrenalina depois de uma apresentação que dirigir o acalma. O pessoal da banda geralmente
se sente bem tranquilo por deixá-lo dirigir enquanto eles aproveitam para tirar um cochilo. Se
Adam já está em Portland, ainda deve estar dormindo. Será que quando acordar ele vai tomar
café em Hawthorne? Ou será que vai pegar um livro para ler no Japanese Garden? Foi o que
fizemos na última vez em que estive em Portland com ele, mas aquele dia estava mais quente.
Sei que mais tarde, hoje ainda, a banda vai passar o som. E então, Adam vai ficar lá fora, me
esperando. No começo, pensará que me atrasei. Como é que ele vai saber que, na verdade, eu
cheguei adiantada? Que cheguei a Portland hoje de manhã enquanto a neve ainda estava
derretendo?

***

— Alguma vez você já ouviu falar desse tal de Yo-Yo Ma? — Adam me perguntou.
Era primavera, eu estava no segundo ano do Ensino Médio e Adam estava no terceiro.
Àquela altura, ele já vinha me observando na sala de música há meses. Nossa escola era
pública, mas era uma daquelas que sempre se destacam e saem nas revistas por incentivar as
disciplinas de Artes. Tínhamos muito tempo livre para pintar no espaço destinado à arte ou
para estudar música. Eu passava o meu tempo na ala de música que tinha isolamento acústico.
Adam também passava boa parte do tempo lá, tocando violão. Não guitarra como ele tocava
na banda. Apenas acordes mais acústicos.
Revirei meus olhos.
— Todo mundo sabe quem é Yo-Yo Ma.
Adam sorriu. Pela primeira vez notei que o sorriso dele era torto, que sua boca era
inclinada para um lado. Com o polegar, onde sempre usava um anel, ele apontou para as salas.
— Não acho que você vá encontrar cinco pessoas ali que já ouviram sobre esse tal de Yo-
Yo Ma. E, a propósito, que tipo de nome é esse? Tem a ver com gueto ou algo assim? Yo
Mama?
— É chinês.
Adam balança a cabeça e dá risada.
— Conheço muitos chineses. Eles têm nomes tipo Wei Chin, Lee alguma coisa... Mas nada
de Yo-Yo Ma.
— Você não pode blasfemar o mestre! — advirto.
Mas depois, eu ri, mesmo contra a minha vontade. Levou alguns meses para eu acreditar que
Adam não estava zombando da minha cara, e depois disso, começamos a bater papo com
frequência no corredor.
Ainda assim, a atenção que ele me dava me deixou confusa. Adam não era um cara muito
popular. Ele não era nenhum atleta nem fazia muito o tipo bem-sucedido. Mas ele era legal.
Legal porque tocava numa banda com o pessoal que já estava na faculdade. Legal porque tinha
o seu próprio estilo de roqueiro, pautado pelas lojas de segunda mão e pelos brechós e não
pelas imitações da Urban Outfitters. Legal porque ele parecia totalmente feliz em se sentar no
refeitório e ficar ali, concentrado num livro, não simplesmente fingindo que estava lendo
porque não tinha nenhum lugar para sentar ou ninguém com quem conversar. Não era esse o
caso. Mesmo. Adam tinha um grupo muito pequeno de amigos e um grande número de
admiradoras.
E eu não era nenhuma imbecil. Eu tinha amigos e uma melhor amiga com quem sentar e
almoçar. Também tinha outras amizades ótimas que fiz no acampamento do conservatório onde
passei o verão. As pessoas gostavam de mim, mas elas não me conheciam de verdade. Na
sala, eu era uma aluna quieta. Não era de ficar levantando a mão para fazer perguntas, nem
perturbava os professores. E eu vivia ocupada, passava boa parte do tempo ensaiando ou
tocando no quarteto de cordas, ou ainda participando de aulas teóricas com o pessoal da
faculdade. Os alunos eram legais, mas costumavam me tratar como se eu fosse adulta. Uma
outra professora. E não se pode paquerar seus professores.
— O que você diria se eu tivesse ingressos para a apresentação do mestre? — perguntou
Adam com um brilho no olhar.
— Ora, sem essa. Você não tem — respondi, empurrando-o com um pouco mais de força do
que eu desejava.
Adam fingiu se chocar contra a parede de vidro. Depois passou as mãos pela roupa como se
tivesse tirando a poeira.
— Mas é verdade. O concerto será no Schnitzer, em Portland.
— Você quis dizer Arlene Schnitzer Concert Hall? É uma parte da sinfonia.
— É esse lugar mesmo. Estou com os ingressos. Dois. Quer ir?
— Está falando sério? Sim! Eu estava morrendo de vontade de ir, mas o ingresso custa
oitenta dólares. Espera aí. Como você conseguiu esses ingressos?
— Um amigo da família deu pros meus pais, mas eles não vão. Não é lá grande coisa... —
respondeu Adam bem rápido. — Bem, é na sexta-feira à noite. Se quiser, pego você às cinco e
meia e nós vamos juntos, de carro, para Portland.
— Combinado — concordei, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
No entanto, na sexta-feira à tarde, eu estava mais nervosa do que quando bebi, sem
perceber, um bule inteiro de café extraforte do meu pai enquanto estudava para as provas
finais do inverno passado.
Não era Adam a causa do meu nervosismo. A essa altura, eu já me sentia confortável com a
presença dele. O problema era a incerteza. O que era isso, exatamente? Um encontro? Um
presente de amigo? Um ato de caridade? Eu não gostava de me sentir insegura em relação a
uma situação nova. Era por isso que eu ensaiava tanto, para poder pisar em terreno firme e
lidar com os detalhes a partir disso.
Mudei de roupa umas seis vezes. Teddy, que naquela época estava no jardim de infância,
sentou no meu quarto e ficou tirando os livros de Calvin e Haroldo das prateleiras, fingindo
que os lia. Ele parecia entretido, embora eu não tivesse muita certeza se o motivo do riso eram
as tirinhas do livro ou as minhas próprias trapalhadas.
Minha mãe enfiou a cabeça na fresta da porta para verificar o meu progresso.
— É só um cara, Mia — disse enquanto eu me arrumava.
— É, mas é só o primeiro cara com quem vou sair para um encontro — frisei. — Então não
sei se visto uma roupa para um encontro ou uma roupa para um concerto. As pessoas
costumam se arrumar para esse tipo de coisa? Ou será que eu deveria colocar uma roupa mais
casual, do tipo “isso não é um encontro”?
— Vista-se com aquilo que te faz se sentir bem — sugeriu ela. — Assim você estará
vestida para o que vier.
Tenho certeza de que minha mãe faria o que lhe desse na telha se ela estivesse no meu lugar.
Nas fotos em que ela está com o meu pai, nos primeiros anos de namoro deles, ela é uma
mistura de mulher fatal dos anos de 1930 e de uma ciclista, com seu cabelo de fada, seus olhos
grandes e azuis contornados com delineador, e o corpo esguio sempre coberto por alguma
roupa sexy, como uma regatinha de renda combinada com calça de couro justa.
Suspirei. Queria ser tão segura quanto ela. No final das contas, escolhi uma saia preta longa
e um suéter vinho de manga curta. Singelo e simples. Minha marca registrada, suponho.
Quando Adam apareceu com um terno lustroso e sapatos Creepers (uma combinação que
certamente impressionou muito o meu pai), percebi que aquilo era mesmo um encontro. É
claro que Adam se preocupou em vestir-se para um concerto, e um terno à la anos 1960 foi
uma maneira legal que ele encontrou para ser formal, mas eu sabia que havia algo a mais. Ele
parecia nervoso, cumprimentou meu pai com um aperto de mão, dizendo que tinha CDs antigos
da banda dele.
— Para usar como suporte para copos, espero — disse meu pai.
Adam pareceu surpreso, não estava acostumado com o fato de o pai ser mais engraçado que
a filha, imagino.
— Crianças, não se animem muito. No último show do Yo-Yo Ma houve muito tumulto —
gritou minha mãe enquanto caminhávamos pelo gramado.
— Seus pais são legais — disse Adam, abrindo a porta do carro para mim.
— Eu sei — afirmei.
Seguimos para Portland sem muita conversa. Adam colocou para tocar alguns trechos das
bandas que ele gostava, um trio sueco que me pareceu meio monótono, mas depois me mostrou
uma banda que me pareceu bem bacana. Ficamos meio perdidos no centro e chegamos à casa
de shows faltando apenas alguns minutos para a apresentação.
Nossos assentos eram no balcão. Muito alto. Mas não se vai para um concerto do Yo-Yo
Ma pela visão, mas sim pelo som, que é incrível. Aquele homem tem um jeito de fazer o
violoncelo soar por um minuto como o choro de uma mulher, seguido da risada de uma
criança. Ao ouvi-lo, eu sempre me recordava do porquê eu comecei a tocar violoncelo logo
de cara — porque há algo muito humano e muito expressivo nesse instrumento.
Quando o concerto começou, olhei para o Adam de canto de olho. Ele até parecia à vontade
com a ocasião, mas não parava de olhar para a programação, provavelmente contando os
minutos para o intervalo. Fiquei preocupada com a possibilidade de ele estar entediado, mas
depois de um certo tempo, fiquei tão encantada pela música que parei de prestar atenção nele.
Então, quando Yo-Yo Ma tocou Le gran tango, Adam esticou o braço e segurou a minha
mão. Em qualquer outro contexto, isso teria sido meio clichê, um movimento planejado para
ver a minha reação. Mas Adam não estava olhando para mim. Ele estava com os olhos
fechados e balançando o corpo suavemente em seu assento. Ele também estava entorpecido
pela música. Apertei a mão dele e ficamos assim até o final do concerto.
Depois, compramos café e donuts e caminhamos ao longo do rio. Havia uma forte neblina,
então ele tirou o paletó e me cobriu.
— Você não ganhou esses ingressos de um amigo da sua família, não é mesmo? —
perguntei.
Pensei que ele fosse rir ou que jogaria os braços para cima do jeito que sempre fazia
quando eu o vencia em uma discussão sobre determinado assunto. Mas ele olhou bem dentro
dos meus olhos e eu pude ver a mistura de verde, marrom e cinza que permeava as suas íris.
Ele balançou a cabeça.
— Juntei a gorjeta de duas semanas das entregas de pizza — admitiu.
Interrompi meus passos. Pude ouvir a água fluindo lá embaixo.
— Por quê? Por que eu? — perguntei.
— Nunca vi ninguém se entregar à música como você. É por isso que gosto de ver você
ensaiando. Fica uma ruguinha muito linda bem aqui, na sua testa — respondeu Adam, tocando
em um ponto bem acima do meu nariz. — Sou obcecado por música e mesmo assim não
consigo me transportar como você.
— E daí? Sou algum tipo de experimento social para você? — Minha intenção foi que
aquilo soasse como uma brincadeira, mas soou um pouco mais amargo.
— Não, você não é um experimento — respondeu com a voz rouca e meio sufocada.
Senti um calor subindo pelo meu pescoço e depois as minhas bochechas ficando vermelhas.
Olhei para os meus sapatos. Tinha certeza de que Adam estava olhando para mim agora, da
mesma forma que tinha certeza de que se eu o olhasse, ele me beijaria. E fiquei surpresa ao me
dar conta do quanto eu queria aquele beijo, ao perceber que eu tinha pensado naquilo tantas
vezes que já tinha memorizado o formato exato dos seus lábios, e que eu tinha imaginado meu
dedo roçando a covinha do queixo dele.
Num piscar de olhos, ergui a cabeça. Adam estava ali, esperando por mim.
Foi assim que tudo começou.

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