sexta-feira, 17 de outubro de 2014

12h19

Há muitas coisas erradas comigo.
Aparentemente, meus pulmões entraram em colapso. Estou com o baço perfurado.
Hemorragia interna de origem desconhecida. E o mais grave, contusões cerebrais. Também
estou com as costelas quebradas. Queimaduras nas pernas causadas pelo atrito com o asfalto,
o que exigirá enxertos de pele, e, quanto ao rosto, precisarei de uma cirurgia plástica, mas
apenas — como os médicos destacaram — se eu tiver sorte.
Agora, neste exato momento, dentro do centro cirúrgico, os médicos tiveram de remover
meu baço, inserir um tubo para drenar a água que se acumula nos pulmões e dar um jeito em o
que quer que estivesse causando a hemorragia interna. Não há muito que eles possam fazer em
relação ao meu cérebro.
— Temos de esperar para ver — diz um dos cirurgiões, olhando para uma das tomografias
computadorizadas da minha cabeça. — Enquanto isso, chamem o banco de sangue. Preciso de
duas unidades de “O negativo” e de mais duas unidades reserva.
“O negativo”. É o meu tipo de sangue. E eu não fazia a menor ideia. Não é algo sobre o qual
já tive de pensar a respeito antes. Nunca havia estado num hospital, exceto quando fui parar no
pronto-socorro depois de ter cortado o meu tornozelo em um caco de vidro. Nem precisei
levar pontos, só tomei uma vacina antitétano.
No centro cirúrgico, os médicos estão discutindo sobre qual música ouvirão, do mesmo
jeito que eu e minha família fizemos naquela manhã. Um deles quer ouvir jazz. Outro, rock. A
anestesista, que permanece próxima à minha cabeça, quer ouvir música clássica. Torço por
ela, e sinto que isso ajuda porque alguém coloca um CD de Wagner, embora eu não tenha
certeza de que a Cavalgada das Valquírias seja bem o que eu tenho em mente. Estava
torcendo por algo mais leve. As quatro estações, talvez.
A sala de cirurgia é pequena e está cheia, repleta de luzes fluorescentes, o que destaca o
quanto este lugar está encardido. Não é como na TV em que as salas de cirurgia são como
teatros imaculados que poderiam acomodar um cantor de ópera e uma plateia. O chão, apesar
de estar polido e brilhante, está cheio de marcas de ferrugem, as quais acredito serem antigas
manchas de sangue.
Sangue. Por todo o lado. Mas isso não incomoda os médicos nem um pouco. Eles cortam,
costuram e fazem a sucção do rio de sangue que se forma sem nenhum problema, como se
estivessem lavando a louça com água e detergente. Enquanto isso, injetam uma espécie de
mangueira na minha veia e não param de reabastecer a bolsa de sangue.
O cirurgião que queria ouvir rock transpira muito. Com certa frequência, uma das
enfermeiras tem que secá-lo com uma gaze que ela segura com uma pinça. Em um dado
momento, a máscara cirúrgica que ele usa fica molhada pelo suor e ele tem de trocá-la.
A anestesista tem dedos delicados. Ela está sentada ao lado da minha cabeça, observando
todos os meus sinais vitais, ajustando a quantidade de líquidos, gases e de drogas que estão
injetando em mim. Ela deve estar fazendo um bom trabalho porque aparentemente não sinto
nada, embora não parem de mexer no meu corpo. É um trabalho duro e complicado, não tem
nada a ver com um jogo chamado “Operação” com o qual brincávamos quando éramos
crianças e em que você tinha que tomar cuidado para não tocar os lados da figura enquanto
removia um osso, do contrário o alarme soava.
A anestesista acaricia as minhas têmporas distraidamente com suas luvas de látex. Era isso
que mamãe costumava fazer quando eu chegava em casa com gripe ou com uma daquelas dores
de cabeça terríveis que doíam tanto que eu chegava a me imaginar cortando uma veia da minha
testa só para aliviar a pressão.
O CD de Wagner já tocou duas vezes até agora e os médicos decidem que está na hora de
trocar por outro tipo de música. Escolhem jazz. As pessoas presumem que só porque gosto de
música clássica sou aficionada por jazz. Mas não sou. Meu pai é. Ele adora, especialmente os
acordes mais ousados como as músicas mais recentes de Coltrane. Ele diz que o jazz, para as
pessoas mais velhas, é como se fosse punk.
A cirurgia parece interminável. Estou exausta. Não sei como os médicos têm energia para
continuar. Eles continuam ali, de pé, parados, mas é como se aquilo fosse mais difícil que
correr uma maratona inteira.
Começo a desviar a minha atenção e a me questionar sobre qual é o meu estado. Se não
estou morta — e o monitor que acompanha os batimentos cardíacos continua apitando, então
suponho que não morri —, mas não sou eu quem está no meu corpo, então, será que posso ir
para outro lugar? Sou um fantasma? Será que consigo me transportar para uma praia no Havaí?
Será que posso aparecer do nada no Carnegie Hall, na cidade de Nova York? Posso ir até
onde Teddy está?
Só para tentar fazer uma experiência, tento mexer o meu nariz como Samantha em A
feiticeira. Não acontece nada. Estalo os dedos. Bato os saltos do sapato. Continuo aqui.
Decido tentar algo mais simples. Caminho até a parede, imaginando que vou atravessá-la e
sair do outro lado. Mas quando chego até lá, me choco contra ela.
Uma enfermeira traz mais uma bolsa de sangue e, antes que a porta se feche atrás dela, eu
também saio. Agora estou no corredor do hospital. Há muitos médicos e enfermeiras com seus
jalecos azuis e verdes passando de um lado para o outro. Uma mulher com uma touca azulclara
na cabeça, deitada numa maca e com um intravenoso injetado na veia, chama: —
William, William. — Caminho um pouco mais. Há uma fileira de salas de cirurgia, todas
cheias de pessoas adormecidas. Se os pacientes que estão nessas salas estão como eu, então
por que eu não posso ver as pessoas fora de seus corpos? Está todo mundo perambulando por
aí, como eu estou agora? Gostaria muito de encontrar alguém na mesma condição que eu.
Tenho algumas perguntas, como por exemplo, qual é o estado em que me encontro exatamente
e o que devo fazer para sair dele? Como posso voltar para o meu corpo? Tenho que esperar
até os médicos me acordarem? Mas não tem ninguém ao meu redor. Talvez o resto das pessoas
tenha descoberto como se transportar para o Havaí.
Sigo uma enfermeira que atravessa uma porta automática. Estou em uma pequena sala de
espera agora. Meus avós estão aqui.
Minha avó está falando com o meu avô, ou talvez consigo mesma. É o jeito que ela tem de
não deixar as emoções a dominarem. Já a vi fazer isso antes, quando meu avô teve um infarto.
Está usando galochas e um avental de jardinagem que está manchado e sujo de terra. Ela
deveria estar trabalhando na estufa quando recebeu a notícia. O cabelo da vovó é curto,
encaracolado e grisalho; ela o mantém assim desde a década de 1970, segundo papai. “É mais
prático. Não dá trabalho e nem preciso me preocupar”, afirma vovó. Isso é muito típico dela.
Nada de bobagens. Ela é prática por excelência, tanto que a maioria das pessoas jamais
imaginaria que ela tem uma queda por anjos. Vovó tem uma coleção de anjos de cerâmica,
bonequinhas em forma de anjos, anjos de cristal, e tudo o mais que você possa imaginar em
formato de anjo, numa cristaleira que fica no quarto de costura dela. E ela não apenas os
coleciona, mas também acredita neles. Vovó acha que eles estão espalhados por todos os
lugares. Uma vez, um casal de mobelhas se aninhou na lagoa da floresta, bem atrás da casa dos
meus avós. Vovó estava convencida de que as aves eram seus pais que tinham falecido há
muito tempo e que vieram para olhar por ela.
Outra vez, estávamos sentados na varanda da casa dela e eu vi um pássaro vermelho.
— É um cruza-bico? — perguntei para a vovó.
Ela balançou a cabeça.
— Minha irmã Glória é um cruza-bico — respondeu vovó, se referindo à Glo, minha tiaavó
falecida recentemente e com quem vovó nunca se deu muito bem. — Ela não viria até
aqui.
Vovô olha fixamente para o líquido do seu copo de isopor e começa a arrancar pedacinhos
da borda, formando bolinhas que caem sobre o seu colo. Dá para ver que é o pior tipo de café,
aquele que foi feito em 1997 e ficou na cafeteira desde então. Mesmo assim, eu não me
incomodaria em tomar um copo.
Pode-se traçar uma linha reta entre o vovô, meu pai e Teddy, ainda que o cabelo ondulado e
loiro do vovô tenha ficado grisalho e ele seja mais gordinho que Teddy, que é uma vareta, e
meu pai seja magro e musculoso graças às sessões de levantamento de peso que executa
durante as tardes. Mas os três têm os mesmos olhos azul-acinzentados, a cor do oceano em um
dia nublado.
Talvez seja por isso que agora sinto dificuldades em olhar para o meu avô.

***

Juilliard foi ideia da vovó. Ela é de Massachusetts, mas mudou-se para Oregon em 1955,
sozinha. Hoje, isso não seria nenhuma novidade para ninguém, mas creio que há cinquenta e
dois anos, uma atitude como essa, partindo de uma mulher solteira com seus vinte e dois anos
de idade, tenha sido um grande escândalo. Vovó alegou que se sentia atraída pela vastidão e
pelos espaços a céu aberto e nada mais vasto e a céu aberto do que as infinitas florestas e as
praias de Oregon. Ela conseguiu um emprego como secretária do Serviço Florestal e vovô
trabalhava lá como biólogo.
Às vezes, no verão, voltávamos para Massachusetts e nos hospedávamos por uma semana
em um pequeno hotel na região oeste do estado que é também visitado durante esse período
pela extensa família da minha avó. É nessa ocasião que vejo os meus primos de segundo grau,
tias-avós e tios cujos nomes mal consigo lembrar. Tenho muitos parentes em Oregon, mas
todos eles são por parte do vovô.
Nas férias do verão passado, levei o meu violoncelo para poder continuar ensaiando para o
próximo concerto de música de câmara. O voo não estava cheio, então as aeromoças
permitiram que eu deixasse o meu instrumento no assento ao lado do meu, do mesmo jeito que
um profissional costuma fazer. Teddy achou a situação hilária e ficou o tempo todo tentando
alimentar o violoncelo com pedacinhos de pretzels.
No hotel, fiz um pequeno concerto à noite, no salão principal, para os meus parentes e para
os animais empalhados que estavam pendurados na parede. Foi depois disso que alguém
mencionou Juilliard e vovó se animou com a ideia.
No início, a ideia pareceu absurda. Havia um programa de música excelente na
universidade bem próxima a nós. E, se eu quisesse me deslocar um pouco mais, havia um
conservatório em Seattle que ficava a apenas algumas horas dali, de carro. Juilliard era do
outro lado do país. E cara. Mamãe e papai ficaram balançados com a ideia, mas posso dizer
que nenhum dos dois de fato queria me deixar ir sozinha para a Nova York nem gastar quantias
estratosféricas para que talvez eu me tornasse uma violoncelista de uma orquestra de segunda
categoria em alguma cidade pequena e interiorana. Eles não faziam a menor ideia se eu era
boa o suficiente para isso. E, para falar a verdade, nem eu. A professora Christie me disse que
eu era uma das alunas mais promissoras que já havia ensinado, mas ela nunca cogitou Juilliard
para mim. Era uma escola para músicos virtuosos e a ideia de que eles poderiam me dar uma
chance parecia até mesmo arrogância da minha parte.
Mas depois daquela semana de férias, quando alguém de fora, uma pessoa imparcial e da
Costa Leste, considerou-me digna de Juilliard, a ideia impregnou-se na cabeça da vovó. Ela
não pensou duas vezes e foi falar com a professora Christie sobre o assunto, e a professora se
agarrou a isso como um cachorro se agarra ao osso.
Então, me inscrevi, juntei cartas de recomendação e enviei uma gravação. Não contei nada
disso para Adam. Disse a mim mesma que não havia o menor motivo para alardes, já que a
chance de conseguir uma audição era minúscula. Mas, mesmo assim, reconheci que aquilo era
uma mentira. Uma pequena parte de mim sentia que o simples fato de me inscrever fosse um
tipo de traição. Juilliard era em Nova York. E Adam estava aqui.
Mas não mais na escola. Adam estava um ano à frente de mim, e àquela altura do ano, meu
último no Ensino Médio, ele já tinha começado a fazer faculdade na cidade. Ele estudava
apenas meio período porque a Shooting Star estava começando a fazer sucesso. Eles estavam
fechando contrato com uma gravadora que ficava em Seattle, e tinham uma agenda cheia e
shows para cumprir. Então, só depois que recebi o envelope creme com as palavras The
Juilliard School em relevo e com uma carta me convidando para uma audição, que contei a
Adam que eu havia me inscrito e recebido o convite. Expliquei que pouquíssimas pessoas
chegavam tão longe. No começo ele pareceu um pouco aturdido, como se não estivesse
acreditando no que eu dizia. Mas depois, esboçou um sorriso triste e disse: — Yo Mama, é
melhor que fique esperto!
As audições aconteceram em São Francisco. Papai teve uma reunião importante na escola e
não pôde comparecer e mamãe tinha acabado de começar a trabalhar na agência de viagens,
então a vovó se ofereceu para me acompanhar.
— Vamos ter um fim de semana de garotas. Vamos tomar chá em Fairmont, olhar as vitrines
da Union Square, pegar a balsa para Alcatraz. Seremos turistas.
Mas, uma semana antes de partirmos, a vovó tropeçou na raiz de uma árvore e torceu o
tornozelo. Ela teve de usar uma daquelas botas ortopédicas e não podia andar. O pânico
começou a surgir. Eu disse que poderia ir sozinha — de carro ou de trem e que voltaria logo
em seguida.
Contudo, o vovô insistiu em me levar. Fomos na picape dele. Não conversamos muito
durante o percurso, o que foi muito bom para mim, porque eu estava uma pilha de nervos. Não
parei de mexer no amuleto em formato de palito de picolé que Teddy havia me dado de
presente para dar sorte, antes de partirmos.
O vovô e eu ficamos ouvindo música clássica e notícias sobre fazendas no rádio do carro
quando conseguíamos sintonizar alguma estação. Quando não, ficávamos em silêncio, mas era
um silêncio tranquilizador, que me fez relaxar e me sentir mais próxima a ele do que qualquer
outra conversa jamais teria feito.
Vovô havia reservado uma pousada charmosa, cheia de decorações, e foi engraçado vê-lo
com suas botas de trabalho e sua camisa flanelada em meio a todas aquelas toalhinhas de
crochê e fru-frus. Mas ele levou tudo numa boa.
A audição foi extenuante. Tive de tocar cinco peças musicais: um concerto de Shostakovich,
duas Suítes de Bach, a peça completa de Tchaikovsky, Pezzo capriccioso (o que foi quase
impossível), um movimento de Ennio Morricone, The mission, que foi uma escolha divertida,
porém arriscada, porque Yo-Yo Ma já tinha o executado e as comparações seriam inevitáveis.
Saí com as pernas bambas e pingava de suor, mas a súbita produção de endorfina combinada à
sensação de alívio me deixou eufórica.
— Vamos dar um passeio pela cidade? — perguntou meu avô com um sorriso.
— Com certeza!
Fizemos todas as coisas que a vovó havia prometido que faríamos. O vovô me levou para
tomar chá e para fazer compras, mas para o jantar, cancelamos as reservas que a vovó tinha
feito num restaurante sofisticado em Fisherman’s Wharf e fomos para Chinatown, à procura do
restaurante que tivesse a maior fila de clientes do lado de fora, assim, comeríamos lá.
Quando voltamos, meu avô me deixou em casa e me envolveu num abraço. Ele faz mais o
tipo que cumprimenta com um aperto de mão, talvez um tapinha nas costas em ocasiões
especiais. O abraço dele foi forte e apertado, e eu sabia que aquele era o jeito que ele tinha de
dizer que também se divertiu muito.
— Eu também, vovô — sussurrei.

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