sábado, 18 de outubro de 2014

13- Esgrima

     O primeiro impulso dela foi de virar-se e sair correndo, ou então vomitar. Um
ser humano sem daemon era como uma pessoa sem rosto, ou com as costelas à
mostra e o coração arrancado: uma coisa antinatural e estranha, que pertencia ao
mundo dos pesadelos noturnos, não ao mundo desperto e racional.
     De modo que Lyra agarrou-se a Pantalaimon; sentia a cabeça girar e tinha
ânsias de vômito; apesar do frio intenso da noite, um suor doentio umideceu sua
carne com uma coisa ainda mais fria.
– Rateira! – fez o menino. – Você viu a minha Rateira?
Lyra não tinha dúvidas do que ele queria dizer.
– Não – respondeu, em voz tão fraca e assustada quanto ela se sentia. –
Como é que você se chama?
– Tony Makarios – ele disse. – Onde está a Rateira?
– Não sei... – ela começou, mas teve que engolir em seco para controlar a
náusea. – Os Papões...
Mas não conseguiu continuar. Teve que sair do barracão e ir sentar-se na neve
sozinha, só que naturalmente ela não estava sozinha, nunca estaria sozinha, pois
Pantalaimon estava sempre ali. Ah, ser afastada dele como aquele menininho tinha sido
afastado da sua Rateira! A pior coisa no mundo! Ela soluçava, e Pantalaimon também
gemia, e em ambos havia uma imensa piedade e tristeza por aquele meio-menino.
Então ela levantou-se.
– Venha – chamou, em voz trêmula. – Tony, saia daí. Vamos levar você para um
lugar seguro.
     Houve um movimento dentro da peixaria, e ele apareceu à porta, ainda agarrado
ao peixe seco. Estava usando roupas quentes, um casacão com capuz bem acolchoado
e botas de pele, mas que aparentavam ser de segunda mão e não lhe assentavam
muito bem. Do lado de fora, sob a luz que vinha dos rastros desbotados da Aurora
Boreal e do chão coberto de neve, ele parecia ainda mais perdido e digno de pena do
que a princípio, quando estava acocorado dentro da peixaria, à luz da lamparina.
O aldeão que trouxera a lamparina tinha recuado alguns metros, e gritou alguma
coisa. Iorek Byrnison traduziu:
– Ele está dizendo que você tem que pagar pelo peixe.
Lyra teve vontade de mandar o urso acabar com ele, mas disse apenas:
– Vamos livrar a aldeia desta criança. Eles podem muito bem dar um peixe como
pagamento.
O urso falou. O homem resmungou, mas não discutiu. Lyra colocou a lanterna na
neve e pegou a mão do meio-menino para guiá-lo até o urso. Ele a acompanhou, sem
mostrar surpresa ou medo diante do grande animal branco, e quando Lyra ajudou-o a
sentar-se nas costas de Iorek, ele disse apenas:
– Não sei onde está a minha Rateira.
– Não, nem nós, Tony – ela respondeu. – Mas nós vamos... Vamos castigar os
Papões. Vamos fazer isso, eu prometo. Iorek, será que você consegue me carregar
também?
– A minha armadura pesa muito mais do que duas crianças.
    Ela então subiu para o lado de Tony e ensinou-lhe a agarrar-se aos pêlos longos
do urso, e Pantalaimon ficou dentro do capuz dela, aquecido, próximo e cheio de pena.
Lyra sabia que a vontade de Pantalaimon era estender o braço e acariciar o pequeno
meio-menino, lambê-lo e aquecê-lo como o daemon dele teria feito; mas o grande tabu
impedia isso, naturalmente.
    Atravessaram a aldeia em direção à serra, e os rostos dos aldeões mostravam
horror e uma espécie de alívio temeroso ao ver aquela criatura horrivelmente mutilada
ser levada embora por uma menininha e um grande urso branco.
    No coração de Lyra, a repugnância lutava com a compaixão, e a compaixão
venceu. Ela rodeou com os braços o corpinho magro e ossudo, para que ele não
caísse. A viagem de volta à caravana foi mais fria, mais difícil e mais escura, porém
pareceu passar mais depressa, apesar de tudo isso. Iorek Byrnison era incansável, e
os movimentos que Lyra tinha que fazer para equilibrar-se tornaram-se automáticos, de
modo que ela não corria perigo de cair. O corpo frio em seus braços era tão leve que
de certo modo era fácil de segurar, mas por outro lado ele estava inerte, rígido, sem se
mover de acordo com os movimentos do urso, portanto, de certo modo, ele era difícil
de segurar.
De vez em quando, o meio-menino falava.
– Que foi que você disse? – Lyra perguntou.
– Eu disse que ela vai saber onde eu estou.
– É, vai saber, sim, vai encontrar você, e nós vamos encontrar ela. Segure com
força, Tony. Não estamos longe...
O urso galopava. Lyra não tinha idéia de como estava cansada até alcançarem os
gípcios. Os trenós haviam parado para o descanso dos cães, e de repente estavam
todos ali, Farder Coram, Lorde Faa, Lee Scoresby, todos vindo ajudar, mas recuando
em silêncio ao verem a outra figura com Lyra. Ela estava tão rígida que não conseguia
sequer soltar os braços que rodeavam o corpo dele, e John Faa teve que ajudá-la.
– Meu Deus, que é isto? – espantou-se ele. – Lyra, minha filha, que foi que você
encontrou?
– O nome dele é Tony – ela murmurou através dos lábios congelados. – E
levaram o daemon dele. É isso que os Papões fazem.
Os homens, temerosos, ficavam à distância; mas o urso, para espanto de Lyra,
deu lhes uma bronca.
– Que vergonha! Pensem no que esta criança fez! Vocês podem não ter mais
coragem que ela, mas deviam ter vergonha de mostrar que têm menos!
– Tem razão, Iorek Byrnison – disse John Faa, virando-se em seguida para dar
ordens.
– Atiçem a fogueira e esquentem sopa para a criança. Para as duas crianças.
Farder Coram, seu abrigo está montado?
– Está, sim, John. Traga Lyra, vamos aquecê-la.
– E o menino também – disse outra voz. – Ele pode comer e se aquecer, mesmo
não...
Lyra estava tentando contar a John Faa sobre as bruxas, mas estavam todos
muito ocupados, e ela cansada demais. Depois de momentos confusos, com vultos
andando apressados de um lado para outro, ela sentiu Pantalaimon mordiscar de leve
sua orelha, e acordou com o rosto do urso a poucos centímetros do seu.
– As bruxas – disse Pantalaimon. – Eu chamei Iorek.
– Ah, é mesmo – ela resmungou. – Iorek, obrigada por me levar e me trazer.
Posso não me lembrar de contar a Lorde Faa sobre as bruxas, de modo que é melhor
você fazer isso.
Ela ouviu o urso concordar e então adormeceu de vez.
Quando acordou, o dia estava claro, o que, naquela região, significava um céu
pálido a sudoeste e o ar cheio de neblina cinzenta através da qual os gípcios moviamse
como fantasmas corpulentos, preparando os trenós e atrelando os cães.
Lyra via isso tudo de dentro do abrigo do trenó de Farder Coram, onde ela estava
deitada sob uma pilha de peles. Pantalaimon acordou antes dela e experimentava a
forma de uma raposa do Artico antes de reverter à sua forma favorita de arminho.
Iorek Byrnison estava dormindo na neve ali perto, a cabeça apoiada nas patas;
mas Farder Coram estava de pé e atarefado, e assim que viu Pantalaimon ele veio
mancando acordar Lyra.
Ela o viu chegar e sentou-se.
– Farder Coram, sei o que era que eu não conseguia entender! O aletômetro
ficava dizendo "pássaro" e "não", e isso não fazia sentido, porque significava "nenhum
daemon" e eu não sabia como isso podia ser... Que foi?
– Lyra, eu não queria contar isso a você depois de tudo que você fez, mas o
menino morreu há uma hora. Ele não conseguia se acomodar, não conseguia ficar num
lugar; não parava de perguntar pelo daemon, onde ele estava, se ele ia demorar; e
ficava apertando aquele pedaço de peixe velho como se... Ah, não consigo falar sobre
isso, filha; mas ele finalmente fechou os olhos e ficou imóvel, e foi a primeira vez que
pareceu estar em paz, pois ficou igual a qualquer outra pessoa morta, com o daemon
seguindo o curso natural. Tentaram abrir uma cova para ele, mas o chão está duro
como ferro. Então John Faa ordenou que fizessem uma grande fogueira e vão cremar o
corpo dele, para que ele não seja devorado pelos comedores de carniça. Minha filha,
você fez uma coisa boa e corajosa, e estou orgulhoso de você. Agora que sabemos da
maldade terrível de que aquela gente é capaz, vemos nosso dever com mais clareza. O
que você deve fazer é comer e descansar, porque adormeceu cedo demais para se
alimentar ontem à noite, e nesta temperatura é preciso comer para não enfraquecer...
Ele estava arrumando coisas, ajeitando as peles, apertando as cordas do trenó,
desembaralhando as rédeas.
– Farder Coram, onde está o menino? Já foi cremado?
– Não, Lyra, está lá atrás.
– Quero ir lá ver.
Ele não poderia recusar, pois ela vira coisa pior do que um cadáver, e isto poderia
acalmá-la. De modo que, com Pantalaimon como uma lebre branca saltitando
delicadamente a seu lado, ela seguiu ao longo da fila de trenós até o local onde alguns
homens empilhavam lenha.
O corpo do menino estava ao lado da trilha, coberto por um pano xadrez. Ela
ajoelhou-se e levantou o pano com a mão enluvada. Um dos homens fez menção de
impedir, mas os outros sacudiram a cabeça.
Pantalaimon aproximou-se enquanto Lyra contemplava o pobre rostinho abatido.
Ela descalçou uma das luvas e tocou nos olhos dele. Estavam frios como mármore, e
Farder Coram tinha razão: o coitado do Tony Makarios não era diferente de qualquer
outro humano cujo daemon tivesse partido na morte. Ah, se tirassem Pantalaimon dela!
Ela o pegou no colo e abraçou-o como se quisesse enfiá-lo dentro do coração. E tudo
que o pequeno Tony tinha era seu pobre pedaço de peixe...
Onde estava o peixe?
Ela puxou a coberta: o peixe não estava lá.
No mesmo instante ela estava de pé, os olhos brilhando de fúria, interpelando os
homens:
– Onde está o peixe dele?
Eles pararam de trabalhar, perplexos, sem saber o que ela queria; mas alguns
dos daemons deles sabiam e se entreolharam.
Um dos homens pôs-se a sorrir hesitantemente.
– Não ouse achar graça! Vou arrancar os pulmões de quem rir dele! Era tudo que
ele tinha, só um pedaço velho de peixe seco, era tudo que ele tinha no lugar do seu
daemon para amar e cuidar! Quem tirou o peixe dele? Onde é que ele foi parar?
Pantalaimon era um leopardo branco, como o daemon de Lorde Asriel, mas ela
nem reparou nisso; tudo que via era o certo e o errado.
– Calma, Lyra- disse um homem. – Calma, criança!
– Quem foi que pegou? – ela tornou a perguntar.
O gípcio recuou um passo diante daquela fúria.
– Eu não sabia- disse outro, em tom de arrependimento.
– Pensei que era o que ele andava comendo. Tirei da mão dele porque achei mais
respeitoso. Só isso, Lyra.
– Então onde está?
O homem explicou, constrangido:
– Sem saber que ele precisava do peixe, eu dei para os meus cachorros. Peço
que me perdoe.
– Não sou eu quem tem que perdoar, é ele – ela respondeu.
Imediatamente virou-se e tornou a ajoelhar-se, colocando a mão na face
congelada da criança morta.
Então teve uma idéia, e procurou entre suas peles. O ar frio atravessou-a quando
ela abriu o casacão, mas em poucos segundos achou o que procurava e tirou uma
moeda de ouro da bolsa antes de tornar a agasalhar-se.
– Preciso da sua faca – disse ao homem que tinha tirado o peixe; depois virou-se
para Pantalaimon. – Como era o nome dele?
Pantalaimon compreendeu, naturalmente, e disse:
– Rateira.
Ela segurou a moeda com força na mão esquerda enluvada e segurando a faca
como um lápis gravou no metal o nome do daemon perdido.
– Espero que isto sirva, se eu fizer como um Catedrático da Jordan – ela
cochichou para o menino morto.
Forçou os dentes dele a se abrirem o suficiente para ela enfiar a moeda. Foi
difícil, mas ela conseguiu, e conseguiu também tornar a fechar-lhe a boca. Então
devolveu a faca ao homem e na penumbra da manhã virou-se para ir até Farder Coram.
Ele lhe deu uma caneca de sopa saída do fogo, que ela bebericou com prazer.
– Que é que vamos fazer com as bruxas, Farder Coram? – ela quis saber. – Será
que a sua bruxa estava com eles?
– A minha bruxa? Realmente não tenho idéia, Lyra. Elas podem estar indo a
qualquer lugar. A vida das bruxas é cheia de vários tipos de preocupações, coisas
invisíveis para nós, doenças misteriosas que as atacam e a nós não, motivos de guerra
além da nossa compreensão, alegrias e tristezas ligadas à florescência de pequenas
plantinhas na tundra... Mas eu gostaria de ter visto esse vôo, Lyra. Gostaria de poder
ver uma coisa como essa. Agora beba a sopa toda. Quer mais? Temos um pão
assando, também. Coma bastante, filha, porque logo partiremos.
O alimento fortaleceu Lyra, e o gelo em sua alma começou a derreter. Com os
outros ela foi ver o pequeno meio-menino ser colocado em sua pira fúnebre, e inclinou a
cabeça e fechou os olhos durante as orações feitas por John Faa; e então os homens
aspergiram álcool de carvão e acenderam o fogo, que num instante se alastrou.
Uma vez certos de que o cadáver tinha sido todo consumido, os viajantes
recomeçaram a jornada. Foi uma viagem fantasmagórica: logo começou a nevar, e num
instante o mundo estava reduzido às sombras cinzentas dos cães, os solavancos e
estalidos do trenó, o frio cortante e um mar agitado de grandes flocos pouco mais
escuros do que o céu e pouco mais claros do que o solo.
Através de tudo isto, os cães continuaram a correr, caudas no ar, soltando vapor
pela boca. Avançavam para o norte, enquanto o pálido meio-dia chegava e passava, e
o crepúsculo tornava a abraçar o mundo. Pararam para comer, beber e descansar
numa fenda entre os montes, e para verificar a direção, e enquanto John Faa
conversava com Lee Scoresby sobre a melhor maneira de utilizar o balão, Lyra pensou
na mosca-espiã e foi perguntar a Farder Coram o que havia acontecido com a lata de
folhas de fumar onde ele aprisionara o inseto.
– Está bem guardada – ele contou. – Está no fundo daquela valise, mas não dá
para abrir; lá no navio eu soldei a tampa, como falei que ia fazer. Não sei o que vamos
fazer com ela, para dizer a verdade; talvez jogar no fundo de uma mina de fogo, talvez
isto resolvesse. Mas não precisa se preocupar, Lyra. Enquanto eu estiver com ela,
você está segura.
Na primeira oportunidade, ela enfiou o braço dentro da lona congelada da valise e
tirou a latinha. Antes mesmo de tocá-la, ela sentiu o zumbido.
Enquanto Farder Coram conversava com os outros chefes, ela levou a lata a Iorek
Byrnison e explicou sua idéia. Aquilo lhe ocorrera quando ela se lembrou da facilidade
com que ele rasgara o metal da cobertura do motor.
Ele escutou, e então pegou a tampa de uma lata de biscoitos e habilmente
enrolou-a formando um cilindro pequeno e chato.
Ela ficou impressionada com a habilidade das mãos dele: ao contrário da maioria
dos ursos, ele e os outros da sua espécie tinham garras-polegares opostas, com as
quais podiam segurar com firmeza as coisas; além disso, ele possuía um sentido inato
da força e flexibilidade dos metais, o que significava que bastava erguer um pedaço de
metal, flexioná-lo desta ou daquela maneira, e então raspar nele um círculo com a
garra para marcar o lugar de dobrar. Foi o que fez, dobrando as laterais até formar
uma caixinha redonda e uma tampa que lhe servisse. A pedido de Lyra, ele fez duas
dessas: uma do mesmo tamanho da lata de folhas de fumar e outra onde coubesse a
lata e uma boa quantidade de pêlos e musgo bem comprimidos para abafar o zumbido.
Fechada, a caixa tinha o mesmo tamanho e formato do aletômetro.
Feito isto, ela sentou-se ao lado de Iorek Byrnison enquanto o urso mastigava um
pernil de rena congelado e duro como madeira.
– Iorek, é ruim não ter daemon? Você não se sente solitário? – ela quis saber.
– Solitário? – ele repetiu. – Não sei. Eles me dizem que está frio: não sei o que é
frio, porque não sinto frio. Do mesmo modo, não sei o que é solidão. Os ursos foram
feitos para ficarem sozinhos.
– E os ursos de Svalbard? Eles são milhares, não são? Foi o que ouvi dizer.
Ele não respondeu, mas partiu a carne ao meio com um som como um tronco
rachando.
– Perdão, Iorek – ela disse. – Não quis ofender. É que fico curiosa. Sabe, fico
ainda mais curiosa sobre os ursos de Svalbard por causa do meu pai.
– Quem é o seu pai?
– Lorde Asriel. E ele está preso em Svalbard, entende? Acho que os Papões
traíram ele e pagaram aos ursos para que ele fique preso lá.
– Não sei. Não sou um urso de Svalbard.
– Pensei que era...
– Não. Já fui um urso de Svalbard, mas agora não sou. Fui expulso como castigo
porque matei outro urso. Então tiraram o meu cargo, a minha fortuna e a minha
armadura, e me mandaram viver na fronteira do mundo humano e lutar quando alguém
me contratasse para isso, ou trabalhar em coisas brutais e afogar as lembranças no
álcool.–
Por que matou o outro urso?
– De raiva. Entre os ursos existem maneiras de afastar a raiva de um pelo outro,
mas eu estava fora de meu controle. De modo que matei ele e fui castigado com
justiça.
– E você era rico e importante – disse Lyra, impressionada. – Exatamente como o
meu pai, Iorek! Foi exatamente o que aconteceu com ele depois que eu nasci; ele
também matou alguém e então tiraram toda a fortuna dele. Foi muito antes de virar
prisioneiro em Svalbard. Não sei nada de Svalbard, a não ser que fica no Extremo
Norte... É tudo coberto de gelo? Pode-se chegar lá atravessando o mar congelado?
– Não partindo deste litoral. O mar às vezes congela ao sul, às vezes não. Você
ia precisar de um barco.
– Ou um balão, talvez.
– É, um balão, mas então você ia precisar do vento certo.
Ele mordeu o pernil de rena, e uma idéia louca entrou na cabeça de Lyra quando
ela se lembrou de todas aquelas bruxas no céu noturno, mas nada falou sobre o
assunto. Em vez disso, fez perguntas a Iorek Byrnison sobre Svalbard e escutou
atentamente enquanto ele lhe falava das geleiras que deslizavam devagar; das rochas e
icebergs onde os leões-marinhos de presas brilhantes reuniam-se em grupos de 100 ou
mais; dos mares repletos de focas, dos narvais batendo as compridas presas brancas
acima da água gelada; da enorme costa escura e cercada de ferro, os penhascos com
quase 500 metros de altura onde os imundos avantesmas-dos-penhascos voejavam e
se empoleiravam; das minas de carvão e minas de fogo onde os ursos-ferreiros
martelavam grandes folhas de ferro e com elas fabricavam armaduras...
– Se eles tomaram a sua armadura, Iorek, onde foi que arranjou esta?
– Eu mesmo fiz em Nova Zembla, com ferro-celeste. Até fazer isto eu estava
incompleto.
– Quer dizer que os ursos conseguem fazer sua própria alma... – disse ela. Havia
muita coisa a aprender no mundo. – Quem é o Rei de Svalbard? Os ursos têm rei?
– O nome dele é Iofur Raknison.
Aquele nome disparou um alarme na mente de Lyra; ela já havia ouvido aquele
nome, mas onde? E não tinha sido pela voz de um urso, nem de um gípcio. A voz que
pronunciara esse nome era de um Catedrático - precisa, pedante e indolentemente
arrogante, uma voz bem típica da Faculdade Jordan. Ela tentou lembrar-se. Ah,
conhecia tão bem aquela voz!
E então lembrou-se: a Sala Privativa, os Catedráticos ouvindo Lorde Asriel.
Tinha sido o Catedrático de palmeriano quem falara alguma coisa sobre Iofur
Raknison. Ele tinha usado a palavra "panserbjorne", que Lyra não conhecia, e na
ocasião ela não sabia que Iofur Raknison era um urso: mas que foi que havia sido dito?
O rei de Svalbard era vaidoso e podia ser adulado. Havia mais alguma coisa; se ao
menos ela conseguisse recordar... Mas muita coisa acontecera desde então.
– Se seu pai é prisioneiro dos ursos de Svalbard, ele não vai conseguir escapar –
Iorek Byrnison declarou. – Não há madeira para fazer um barco. Por outro lado, se ele
é um fidalgo, será bem tratado. Vão lhe dar uma casa para morar, um criado, comida e
combustível.
– Os ursos podem ser derrotados, Iorek?
– Não.
– Ou talvez enganados?
Ele parou de mastigar e olhou diretamente para ela. então disse:
– Você nunca vai derrotar os ursos de armadura. Já viu a minha armadura; agora
veja as minhas armas.
Largou a carne e estendeu as patas, com a palma para cima, para que ela visse.
Cada palma era coberta de pele calejada com mais de três centímetros de espessura,
e cada garra era pelo menos tão comprida quanto a mão de Lyra, e afiada como faca.
Ele deixou que ela as apalpasse.
– Um golpe pode esmagar o crânio de uma foca –ele disse. – Ou quebrar a
coluna de um homem, ou arrancar um membro. E posso morder. Se você não tivesse
me impedido, em Trollesund, eu teria esmagado a cabeça daquele homem como um
ovo. Já falei da força, agora vou falar da esperteza; não se consegue enganar um urso.
Quer uma prova? Pegue um graveto e vamos esgrimar.
Ansiosa para experimentar, ela quebrou o galho de uma moita coberta de neve,
tirou todas as folhas e empunhou-o como se fosse uma espada. Iorek Byrnison ficou
sentado nas patas traseiras, à espera. Quando estava pronta, ela o atacou, mas não
quis golpeá-lo porque ele parecia muito pacífico. De modo que ficou brandindo a arma,
avançando pelos lados, sem pretender encostar nele, e ele não se mexeu. Ela fez isso
várias vezes, e nem uma vez ele se moveu um centímetro.
Finalmente ela resolveu golpeá-lo diretamente, sem força, mas apenas tocando a
ponta do galho no estômago dele; no mesmo instante, ele estendeu a pata e afastou o
galho para o lado.
Surpresa, ela tentou novamente, com o mesmo resultado.
Ele se movimentava com muito mais rapidez e segurança do que ela. Ela tentou
atingi-lo de verdade, movimentando o pedaço de pau como a arma de um espadachim,
e nem uma vez tocou no corpo dele. Ele parecia saber antes dela o que ela pretendia
fazer, e quando ela mirava a cabeça dele, a enorme pata desviava o galho.
Quando ela fazia uma finta, ele não se movia.
Ela ficou exasperada e lançou-se num ataque furioso, golpe após golpe, e nem
uma vez conseguiu enganar aquelas patas; elas estavam em toda parte, no momento
exato de aparar, no lugar exato de bloquear.
Finalmente ela ficou com medo e parou. Estava suando dentro das peles, sem
fôlego, exausta, e o urso continuava sentado impassivelmente. Mesmo se ela tivesse
uma espada de verdade com aponta aguçada, ele estaria ileso.
– Aposto que você consegue aparar uma bala de espingarda – ela disse, jogando
longe o galho. – Como é que consegue?
– Não sendo um humano – ele respondeu. – É por isso que você nunca
conseguiria enganar um urso. Enxergamos truques e mentiras como enxergamos
pernas e braços. Conseguimos ver de um modo que os humanos esqueceram. Mas
você sabe disso; afinal, consegue entender o leitor de símbolos.
– Não é a mesma coisa, é?
Ela estava mais nervosa com o urso agora do que quando ele estava furioso.
– É, sim – ele confirmou. – Pelo que sei, os adultos não conseguem fazer isso.
Aquilo que eu sou para os lutadores humanos você é para os adultos com o leitor de
símbolos.
– É, pode ser – disse ela, confusa e de má vontade. – Isto quer dizer que quando
eu crescer vou esquecer?
– Quem sabe? Nunca tinha visto um leitor de símbolos, nem alguém que
conseguisse ler um. Talvez você seja diferente dos outros.
Ele ficou de quatro novamente e voltou a comer sua carne. Lyra tinha
desabotoado o agasalho de peles, mas agora o frio era muito, e ela teve que fechá-lo.
No geral, fora um episódio inquietante. Ela estava com vontade de consultar o
aletômetro ali mesmo, mas o frio era insuportável, e além disso estavam chamando por
ela porque era hora de seguir viagem. Ela pegou as latas que Iorek Byrnison tinha feito,
colocou a que estava vazia dentro da valise de Farder Coram e colocou a que continha
a mosca-espiã junto com o aletômetro na sacola que levava na cintura. Ficou contente
quando se puseram em marcha.
Os chefes haviam concordado com Lee Scoresby que quando chegassem à
parada seguinte iriam inflar o balão e ele iria espionar do ar. Naturalmente Lyra estava
doida para voar com ele e, obviamente, isso foi proibido; mas ela estava viajando no
trenó dele e encheu-o de perguntas.
– Sr. Scoresby, como voaria até Svalbard?
– Você ia precisar de um dirigível com um motor a gás, alguma coisa como um
zepelim, ou então um bom vento sul. Mas eu não teria coragem, droga. Você já viu
aquele lugar? O buraco mais feio, triste, ruim, esquecido que pode existir.
– Eu só estava pensando, se Iorek Byrnison quisesse voltar...
– Iria ser morto. Iorek é um degredado; assim que colocasse os pés lá iria ser
feito em pedaços.
– Como é que o senhor infla o balão, Sr. Scoresby?
– De dois modos. Posso fazer hidrogênio derramando ácido sulfúrico em raspas
de ferro. A gente recolhe o gás que ele solta e aos poucos enche o balão. A outra
maneira é encontrar um exaustor de gás do solo perto de uma mina de fogo. Há muito
gás no subsolo daqui, e também óleo pétreo. Posso extrair gás do óleo pétreo, se
precisar, e também do carvão. Não é difícil fazer gás. Porém a maneira mais rápida é
usar gás do solo. Um bom exaustor consegue encher o balão em uma hora.
– Quantas pessoas o senhor pode carregar?
– Seis, se for preciso.
– Poderia carregar Iorek Byrnison de armadura?
– Já fiz isso. Uma vez, eu o salvei dos tártaros, quando ele estava cercado, e eles
queriam que ele morresse de fome. Foi na campanha do Tunguska; voei até lá e tirei
Iorek. Parece fácil, droga, mas tive que adivinhar o peso do garotão. E então tive que
contar com achar gás do solo debaixo da fortaleza de gelo que ele tinha feito. Mas lá
de cima eu conseguia ver o tipo de solo que era, e calculei que podíamos cavar. Sabe,
para descer eu tenho que soltar gás do balão, e só posso subir de novo com mais gás.
De qualquer maneira, nós conseguimos, com a armadura e tudo.
– Sr. Scoresby, sabe que os tártaros fazem buracos na cabeça das pessoas?
– Ah, claro. Fazem isso há milhares de anos. Na guerra de Tunguska, capturamos
cinco tártaros vivos, e três deles tinham um buraco na cabeça. Um deles tinha dois.
– Fazem isso uns nos outros?
– Isso mesmo. Primeiro cortam um semicírculo de pele no couro cabeludo, para
que possam levantar a pele e expor o osso. Então cortam e retiram do crânio um
pequeno círculo de osso, com muito cuidado para não atingir o cérebro, e então tornam
a costurar o couro cabeludo por cima.
– Pensei que fizessem isso nos inimigos!
– Claro que não. É um grande privilégio. Fazem isso para que os Deuses possam
falar com eles.
– Já ouviu falar num explorador chamado Stanislaus Grumman?
– Grumman? Claro. Conheci um homem da equipe dele quando atravessei o rio
Yenisei de balão há dois anos. Ele ia morar com as tribos tártaras por lá. Aliás, acho
que ele também tinha o tal buraco na cabeça. Fazia parte de uma cerimônia de
iniciação, mas o sujeito me disse que não entendia patavina daquilo.
– Então... Se ele era como um tártaro honorário, eles não iam matá-lo?
– Matá-lo? Então ele está morto?
– Está, sim. Eu vi a cabeça dele – disse Lyra com orgulho.
– Foi meu pai quem encontrou. Vi quando ele mostrou a cabeça para os
Catedráticos na Faculdade Jordan em Oxford. Estava escalpelada e tudo.
– E quem foi que escalpelou?
– Bom, os tártaros, foi o que os Catedráticos pensaram... Mas talvez não tenha
sido.
– Pode não ter sido a cabeça de Grumman – disse Lee Scoresby. – Seu pai pode
ter enganado os Catedráticos.
– É, acho que sim – disse Lyra pensativamente. –Ele estava pedindo dinheiro a
eles.
– E quando viram a cabeça eles deram o dinheiro?
– Foi.
– Belo truque. As pessoas ficam chocadas quando vêem esse tipo de coisa. Não
fazem questão de olhar de perto.
– Especialmente Catedráticos – Lyra acrescentou.
– Bom, você deve saber melhor que eu. Mas se era mesmo a cabeça do
Grumman, aposto que não foram os tártaros que escalpelaram. Eles escalpelam os
inimigos, não os seus, e ele era um tártaro por adoção.
Enquanto seguiam viagem, Lyra ficou remoendo essas coisas. Havia fortes
correntes cheias de significado fluindo ao seu redor: os Papões e sua crueldade, o
medo que tinham do Pó, a cidade na Aurora Boreal, o pai dela em Svalbard, a mãe...
onde estaria sua mãe? O aletômetro, as bruxas voando para o norte. E o pobre coitado
do Tony Makarios; e a mosca-espiã movida a corda; e a esperteza extraordinária de
Iorek Byrnison...
Ela adormeceu. E cada hora os levava mais para perto de Bolvangar.

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