sábado, 18 de outubro de 2014

14- As Luzes de Bonvangar

    O fato de os gípcios não terem notícias da Sra.Coulter preocupava Farder Coram e John Faa muito mais do que deixavam Lyra perceber; mas não imaginavam que ela também estivesse preocupada. Lyra tinha medo da Sra. Coulter e pensava nela com freqüência. E embora Lorde Asriel agora fosse
"papai", a Sra.Coulter nunca foi "mamãe". O motivo disso era o daemon da Sra.Coulter, o macaco dourado, que tinha despertado uma profunda aversão em Pantalaimon e que, como Lyra suspeitava, havia se intrometido nos segredos dela, particularmente no segredo do aletômetro.
   E certamente estariam atrás dela; era tolice pensar o contrário. A mosca-espiã provava isso.
   Mas, quando um inimigo realmente atacou, não foi a Sra.Coulter. Os gípcios
tinham planejado parar para descansar os cachorros, consertar dois trenós e preparar
todas as armas para o ataque a Bolvangar. John Faa esperava que Lee Scoresby
conseguisse encontrar algum gás de solo para encher o balão menor (pois ele possuía
dois, aparentemente) e subir para espionar o terreno. No entanto o aeróstata entendia
das condições meteorológicas como um marinheiro e avisou que ia haver neblina; e
assim que eles fizeram alto, a névoa espessa desceu. Lee Scoresby sabia que nada
veria do céu, de modo que se contentou em verificar o equipamento, embora estivesse
tudo meticulosamente em ordem. Então, sem qualquer aviso, uma rajada de flechas
caiu da escuridão.
    Três gípcios caíram na mesma hora e morreram tão silenciosamente que ninguém
ouviu; só quando eles caíram por cima das rédeas ou ficaram imóveis inesperadamente
foi que os homens mais próximos perceberam o que estava acontecendo, e então já
era tarde demais, porque mais flechas caíam sobre eles. Alguns homens olharam para
cima, perplexos com o ruído irregular e rápido de batidas que vinha da fila de trenós,
produzido pelas flechas alvejando madeira ou lona congelada.
O primeiro a reagir foi John Faa, que, no centro da fila, gritava ordens. Mãos frias
e pernas rígidas movimentaram-se para obedecer enquanto mais flechas caíam como
chuva – uma chuva mortal.
    Lyra estava em terreno aberto, e as flechas passavam por cima da sua cabeça.
Pantalaimon ouviu antes que ela e tornou-se um leopardo e derrubou-a, tornando-a um
alvo menor. Limpando a neve dos olhos, ela rolou para tentar ver o que estava
acontecendo, pois a semi-escuridão parecia transbordar de barulho e confusão. Ela
escutou um rugido poderoso e os ruídos da armadura de Iorek Byrnison quando ele
saltou por cima dos trenós e mergulhou na neblina, e isto foi seguido por gritos,
rosnados, ruídos de coisas rasgadas e esmagadas, gritos de terror e rugidos de fúria
animal, enquanto o urso os dizimava.
    Mas quem eram eles? Lyra ainda não tinha avistado o inimigo. Os gípcios corriam
para defender os trenós, mas isto (como até Lyra enxergava) fazia deles alvos mais
fáceis; e não era fácil disparar suas espingardas usando luvas grossas; ela ouvira
apenas quatro ou cinco tiros contra uma tempestade incessante de flechas. E a cada
minuto tombavam mais homens.
    Ela pensou, angustiada: ah, John Faa, você não previu isto, e eu não o ajudei!
Mas ela não teve mais que um segundo para pensar isto, pois Pantalaimon soltou um
rosnado poderoso e alguma coisa – outro daemon – lançou-se sobre ele e derrubou-o,
tirando o fôlego de Lyra; e então mãos a agarraram, a levantaram, abafaram seus
gritos com luvas fedorentas, jogando-a pelo ar de um para o outro e depois deixando-a
cair com força na neve, de modo que ela estava ao mesmo tempo tonta, sem fôlego e
machucada. Seus braços foram puxados para trás até seus ombros estalarem e
alguém amarrou seus pulsos, depois colocaram um capuz cobrindo toda a sua cabeça
para abafar seus gritos, pois ela gritou muito, e com força:
– Iorek! Iorek Byrnison! Socorro!
     Mas será que ele podia ouvir? Ela não sabia; foi jogada de um lado para outro e
finalmente caiu sobre uma superfície dura que então começou a sacudir-se como um
trenó. Os sons que chegavam até ela eram ferozes e confusos. Lyra julgou ter ouvido o
rugido de Iorek Byrnison, mas muito longe; ela estava sendo levada aos solavancos por
um terreno acidentado, os braços presos, a boca tapada, soluçando de raiva e medo.
E vozes estranhas falavam ao seu redor.
– Pantalaimon! – ela sussurrou.
– Estou aqui, psiu, vou ajudar você a respirar. Fique imóvel...
As patinhas de rato de Pantalaimon puxaram o capuz até que ela ficou com a
boca livre e pôde respirar o ar gelado.
– Quem são eles? – ela sussurrou.
– Parecem tártaros. Acho que atingiram John Faa.
– Não...
– Vi quando ele caiu. Mas ele devia estar preparado para este tipo de ataque.
Nós sabemos disto.
– Mas devíamos ter ajudado! Devíamos ter consultado o aletômetro!
– Psiu. Finja que está desmaiada.
Ouviu-se o estalar de um chicote e o uivo de cães de corrida.
Pelo modo como ela estava sendo jogada de um lado para outro, Lyra sabia que
estavam indo muito depressa; e embora se esforçasse para ouvir os sons do combate,
tudo que conseguiu distinguir foi uma desesperada saraivada de disparos abafados
pela distância.
– Vão nos levar para os Papões – ela cochichou.
Ambos pensaram na palavra "intercisão". Um medo terrível apossou-se de Lyra, e
Pantalaimon aninhou-se mais perto dela.
– Eu vou lutar – ele disse.
– Eu também. Vou matar todos eles.
–I orek também vai matar todos eles quando descobrir. Vai esmagar um por um.
– Será que estamos muito longe de Bolvangar?
Ele não sabia, mas ambos calculavam que fosse menos de um dia de viagem.
Depois de viajarem durante tanto tempo que ela se viu atormentada pelas cãibras no
corpo, a velocidade diminuiu um pouco, e alguém puxou com brutalidade o capuz.
     Ela deparou com um rosto asiático largo sob um capuz de carcaju iluminado por
uma lamparina trêmula. Ele tinha olhos negros que mostraram uma centelha de
satisfação, especialmente quando Pantalaimon deslizou para fora do casaco de Lyra e
mostrou os dentes brancos de arminho com um rosnado. O daemon do homem, um
carcaju grande e pesado, rosnou de volta, mas Pantalaimon não se intimidou.
     O homem colocou Lyra em posição sentada, apoiando-a na lateral do trenó. Ela
caiu de costas, pois tinha as mãos ainda amarradas por trás, de modo que ele
amarrou-lhe os pés e soltou-lhe as mãos.
    Através da neve que caía e da neblina espessa, ela percebeu que o homem era
muito forte, assim como o que dirigia o trenó; ambos se sentiam muito à vontade
naquela terra, ao contrário dos gípcios.
    O homem falou, mas naturalmente ela não entendeu. Ele tentou outra língua, com
o mesmo resultado. Então tentou falar inglês.
– Seu nome?
Pantalaimon arrepiou-se todo, e ela entendeu de imediato o que ele queria dizer.
Então aquela gente não sabia quem ela era!
Ela não tinha sido sequestrada por causa da sua ligação com a Sra.Coulter; então
talvez não estivessem trabalhando para os Papões.
– Lizzie Brooks – respondeu.
– Lizzie Broogs – ele repetiu. – Nós levamos você para lugar bom. Gentes boas.
– Quem são vocês?
– Samoiedes. Caçadores.
– Para onde vai me levar?
– Lugar bom. Gentes boas. Você tem panserbjorne?
– Para me proteger.
– Não adianta! Ra, ra, urso não adianta! Pegamos você assim mesmo!
Ele riu com vontade; Lyra controlou-se e nada respondeu.
– Quem é aquela gente? – o homem perguntou em seguida, apontando para trás.
– Mercadores.
– Mercadores... De quê?
– Peles, bebida, folhas de fumar.
– Vendem folhas de fumar, compram peles?
– É.
Ele disse alguma coisa ao companheiro, que deu uma resposta curta. Durante
todo o tempo, o trenó ia em alta velocidade, e Lyra ajeitou-se para tentar ver para onde
iam; mas estava nevando forte, o céu estava escuro, e finalmente ela sentiu frio demais
e se deitou. Ela e Pantalaimon sentiam os pensamentos um do outro, e tentaram ficar
calmos, mas a idéia de John Faa morto... E o que teria acontecido a Farder Coram?
Iorek conseguiria matar os outros samoiedes? E alguém conseguiria encontrar o
paradeiro dela?
Pela primeira vez, ela começou a sentir uma certa pena de si mesma.
Depois de muito tempo, o homem sacudiu-a pelo ombro e entregou-lhe um
pedaço de carne-seca de rena para mascar. Era fedorenta e dura, mas ela estava com
fome e aquilo era alimento.
Depois de comer tudo, ela se sentiu um pouco melhor. Enfiou a mão lentamente
dentro do casaco até ter certeza de que o aletômetro ainda estava ali, e então retirou
cuidadosamente a lata com a mosca-espiã e enfiou-a dentro da bota de peles.
Pantalaimon entrou na bota em forma de um rato e empurrou a lata bem para o fundo,
prendendo-a sob a perneira de couro de rena.
Depois disto, ela fechou os olhos. Estava exausta de medo, e logo caiu num sono
inquieto.
Acordou quando o movimento do trenó mudou, ficando mais suave de repente.
Quando ela abriu os olhos, viu luzes passando acima, tão brilhantes que ela teve que
puxar mais o capuz sobre a cabeça antes de olhar outra vez. Sentia-se muito mal, com
frio e cãibras, mas conseguiu sentar-se suficientemente ereta para ver que o trenó
passava entre duas filas de postes altos, cada um com uma brilhante lâmpada
anbárica. Enquanto observava as redondezas, o trenó passou por um portão de metal
no final da avenida de luzes, entrando num grande espaço aberto que parecia uma
praça deserta ou uma arena para algum tipo de esporte. Era perfeitamente lisa, regular
e branca, com cerca de 100 metros de extensão, rodeada por uma cerca alta de metal.
O trenó parou no extremo oposto dessa arena. Estavam diante de uma
construção baixa ou uma série de construções baixas sob uma grossa camada de
neve. Era difícil dizer, pois ela teve a impressão de que havia túneis ligando as diversas
partes das construções – túneis cobertos de neve. De um lado, um grosso mastro de
metal tinha uma aparência familiar, embora ela não conseguisse se lembrar do que era.
Antes que ela pudesse ver mais coisas, o homem no trenó cortou a corda que a
prendia e jogou-a na neve com brutalidade, enquanto o que dirigia gritava com os cães
para que ficassem parados. Uma porta se abriu no prédio a poucos metros de distância
e uma luz anbárica apareceu, movendo-se para procurá-los, como um holofote.
O raptor de Lyra empurrou-a para a frente sem soltá-la, como se estivesse
exibindo um troféu, e disse alguma coisa. A figura, que usava um casaco acolchoado
feito de seda carbonífera, respondeu na mesma língua, e Lyra viu seu rosto. Não era
um samoiede, nem um tártaro: parecia um Catedrático da Jordan.
Ele olhou para ela e particularmente para Pantalaimon.
O samoiede tornou a falar, e o homem de Bolvangar perguntou a Lyra:
– Você fala inglês?
– Sim – ela respondeu.
– O seu daemon sempre tem esta forma?
Que pergunta mais inesperada! Lyra não soube o que responder. Mas
Pantalaimon respondeu por si mesmo, tornando-se um falcão e lançando-se sobre o
daemon do homem, uma grande marmota que tentou atingir Pantalaimon com um
movimento rápido e cuspiu enquanto ele voava em volta dela.
– Entendo – disse o homem em tom satisfeito, enquanto Pantalaimon voltava para
o ombro de Lyra.
Os samoiedes pareciam esperar alguma coisa; o homem de Bolvangar assentiu e
tirou uma luva para enfiar a mão no bolso, de onde tirou um saco fechado por um
cordão. Colocou uma dúzia de pesadas moedas na mão do caçador.
Os dois homens contaram o dinheiro antes de guardá-lo com cuidado, cada um
ficando com a metade. Sem olhar para trás, eles entraram no trenó, e o que dirigia
estalou o chicote e gritou para os cães; e o trenó atravessou a praça ampla e entrou na
avenida de luzes, aumentando a velocidade até desaparecer na escuridão.
O homem tornou a abrir a porta.
– Entre depressa – disse. – Lá dentro está quentinho e confortável. Não fique aí
fora no frio. Como é o seu nome?
A voz era de um inglês, sem qualquer sotaque que Lyra pudesse identificar. Ele
parecia o tipo de pessoa que ela havia conhecido na casa da Sra. Coulter: culto,
educado e importante.
– Lizzie Brooks – ela disse.
– Entre, Lizzie. Vamos cuidar de você, não se preocupe.
    Ele estava sentindo mais frio do que ela, mesmo estando ao ar livre por menos
tempo, e estava impaciente para entrar. Ela resolveu bancar a boba, relutando,
arrastando os pés ao entrar na casa.
    Havia duas portas e um grande espaço entre elas, de modo que o ar quente não
escapasse. Depois que eles entraram pela segunda porta Lyra sentiu um calor
insuportável e teve que abrir o casaco e jogar o capuz para trás.
    Estavam num espaço de uns três metros quadrados com corredores à direita e à
esquerda; na frente dela, havia uma espécie de balcão de recepção como o de um
hospital. Tudo estava brilhantemente iluminado, com superfícies brancas e aço
inoxidável. Havia no ar o cheiro de comida – toicinho e café - e sob ele um leve cheiro
de hospital; das paredes vinha um murmúrio baixo, quase baixo demais para ser ouvido
– o tipo de ruído com que a pessoa tem que se acostumar para não enlouquecer.
Pantalaimon, agora um pintassilgo, cochichou no ouvido dela:
– Seja lerda e burra. Muito burra.
Alguns adultos a observavam: o homem que a trouxera, outro usando um jaleco
branco, uma mulher de uniforme de enfermeira.
– Inglesa - dizia o primeiro homem. - Mercadores, aparentemente.
– Os caçadores de sempre? A história de sempre?
– A mesma tribo, pelo que eu pude perceber. Enfermeira Clara, podia levar a
pequena... hum... e cuidar dela?
– Claro, Doutor. Venha comigo, querida - disse a enfermeira. Lyra acompanhou-a
obedientemente.
     Seguiram por um corredor curto com portas à direita e uma cantina à esquerda,
de onde vinha o ruído de talheres e vozes, e cheiro de comida. Lyra calculou que a
enfermeira tinha mais ou menos a idade da Sra. Coulter, e um ar de neutralidade,
eficiência e sensatez; ela teria capacidade de dar pontos num ferimento ou trocar um
curativo, mas nunca de contar uma história. Lyra teve um momento de angústia quando
percebeu que o daemon da enfermeira era um cachorrinho branco, e não conseguiu
entender por que ficou angustiada com isso.
– Qual é o seu nome, querida? - perguntou a enfermeira, abrindo uma porta
pesada.
– Lizzie.
– Só Lizzie?
– Lizzie Brooks.
– E quantos anos você tem?
–Onze.
    Lyra tinha ouvido dizer que ela era pequena para sua idade; isto não tinha afetado
a idéia que tinha da sua própria importância, mas ela percebeu que agora podia usar
isso para fazer de Lizzie uma pessoa tímida, nervosa e insignificante.
Estava esperando que lhe perguntassem de onde vinha e como tinha chegado, e
preparava suas respostas; mas não era só imaginação que faltava à enfermeira, mas
também curiosidade; pelo interesse que a Enfermeira Clara parecia demonstrar,
Bolvangar podia estar situada nos subúrbios de Londres, com crianças aparecendo a
todo momento. O daemon da enfermeira trotava junto a seus pés com o mesmo jeito
eficiente e neutro.
     No quarto onde entraram, havia um sofá, uma mesa, duas cadeiras e um arquivo,
um armário de vidro com remédios e curativos, e uma pia. Assim que entraram a
enfermeira tirou o casacão de Lyra,e deixou-o cair no chão.
– Tire o resto da roupa, querida - disse. - Vamos dar uma olhada para ver se
você está bem, sem resfriado ou queimaduras de frio, e depois vamos arranjar roupas
limpas. Vamos lhe dar um banho de chuveiro, também - acrescentou, pois Lyra não
tomava banho nem mudava de roupa havia alguns dias, e no ambiente aquecido este
fato ficava cada vez mais evidente. Pantalaimon remexeu-se protestando, mas Lyra
calou-o com um gesto. Ele se acomodou no sofá enquanto Lyra tirava as roupas, peça
por peça, sentindo raiva e vergonha, mas ainda com suficiente presença de espírito
para fingir-se de boba e obediente.
– E a sua bolsa de dinheiro também, Lizzie - disse a enfermeira. Ela própria
desamarrou com seus dedos fortes o cinto com a sacola e foi colocá-lo na pilha de
roupas de Lyra, mas estacou ao palpar o aletômetro.
– Que é isso? - perguntou, desabotoando a bolsa de lona.
– É um brinquedo - disse Lyra. - É meu.
– Está bem, nós não vamos tirar o seu brinquedo, minha querida - disse a
Enfermeira Clara, abrindo o embrulho de veludo negro. - Que bonitinho, parece uma bússola!
Agora, para o chuveiro - continuou, largando o aletômetro e abrindo uma cortina
de seda carbonífera num canto do aposento.
    Com relutância Lyra entrou debaixo da água morna e ensaboou-se, enquanto
Pantalaimon empoleirava-se na vara da cortina. Ambos tinham consciência de que ele
não podia se mostrar muito esperto, pois os daemons das pessoas lerdas eram lerdos
também. Depois que ela se enxugou, a enfermeira tomou sua temperatura e examinou
seus olhos, ouvidos e garganta, depois mediu sua estatura e pesou-a numa balança,
antes de fazer anotações numa prancheta. Depois deu a Lyra pijama e um roupão.
    Eram roupas limpas e de boa qualidade, como o casaco de Tony Makarios, mas
também nelas havia um ar de roupa de segunda mão. Lyra sentiu medo.
– Isso não é meu - disse.
– Não, minha querida. As suas roupas precisam de uma boa lavagem.
– Vou ter as minhas roupas de volta?
– Imagino que sim. Claro que sim.
– Que lugar é este?
– O nome é Estação Experimental.
Isto não era uma resposta; porém, embora como Lyra ela teria dito isto e pedido
mais informações, sabia que Lizzie Brooks não agiria assim. Portanto, concordou com a
cabeça e ficou quieta.
Depois de vestida, falou, em tom de queixa:
– Eu quero o meu brinquedo.
– Pode pegar, querida - disse a enfermeira. - Mas será que não preferia um belo
ursinho? Ou uma linda boneca? Ela abriu uma gaveta cheia de brinquedos que
pareciam coisas mortas. Lyra obrigou- se a levantar e fingir estar pensando antes de
escolher uma boneca de trapos de olhos grandes e sem expressão. Nunca tinha tido
uma boneca, mas sabia como agir: apertou-a distraidamente contra o peito.
– E a minha bolsa de dinheiro? Gosto de guardar o meu brinquedo lá dentro.
– Pode pegar, minha querida – disse a Enfermeira Clara, que estava preenchendo
um formulário cor-de-rosa.
Lyra levantou o paletó do pijama e prendeu o cinto com a sacola em volta da
cintura.
– E o meu casaco, e as minhas botas? - ela insistiu. – E as minhas luvas e as
minhas coisas?
– Vamos mandar limpar para você - disse a enfermeira automaticamente.
Então um telefone tocou, e enquanto a enfermeira atendia, Lyra abaixou-se
depressa para pegar a outra lata, que continha a mosca-espiã, e colocou-a na sacola
com o aletômetro.
– Vamos, Lizzie - chamou a enfermeira, desligando o telefone. - Vamos arranjar
alguma coisa para você comer. Imagino que esteja com fome.
    Ela seguiu a Enfermeira Clara até a cantina, onde havia uma dúzia de mesas
brancas cobertas de migalhas e de círculos molhados e pegajosos feitos por copos
sujos. Pratos e talheres sujos estavam empilhados num carrinho de aço. Não havia
janelas, e para dar ilusão de luz e espaço uma das paredes era coberta por um
gigantesco fotograma mostrando uma praia tropical, com um céu azul brilhante, areias
brancas e coqueiros.
O homem que levara Lyra para dentro da casa estava pegando uma bandeja.
– Pode comer à vontade.
    Não havia utilidade em passar fome, de modo que ela comeu com satisfação o
picadinho com purê de batatas. Havia uma terrina de pêssegos em calda e, além disto,
sorvete. Enquanto ela comia, o homem e a enfermeira conversavam em voz baixa na
outra mesa; quando ela terminou, a enfermeira trouxe-lhe um copo de leite quente e
levou a bandeja.
O homem veio sentar-se defronte a ela. O daemon dele, a marmota, não era
neutro e alheio como o daemon da enfermeira, mas sentou-se polidamente no ombro
dele e ficou prestando atenção.
– Bem, Lizzie, você comeu o bastante?
– Comi, sim, obrigada.
– Quero que me diga de onde veio. Sabe me responder?
– De Londres - ela disse.
– Que é que está fazendo tão longe?
–Com meu pai - ela resmungou. Mantinha os olhos baixos, evitando o olhar da
marmota e tentando parecer à beira das lágrimas.
– Com o seu pai? Entendo. E que é que seu pai veio fazer nesta parte do mundo?
–Comércio. Viemos com uma carga de folhas de fumar da Nova Dinamarca e
estávamos comprando peles.
– E o seu pai estava sozinho?
– Não. Com meus tios e tudo, e outros homens – ela disse, sem saber o que o
caçador samoiede tinha revelado.
– Por que foi que ele trouxe você numa viagem como essa, Lizzie?
–Porque há dois anos ele trouxe o meu irmão e disse que depois ia me trazer e
nunca trazia, e eu fiquei pedindo muito e ele trouxe.
– E quantos anos você tem?
–Onze.
– Bom, bom. Lizzie, você é uma garota de sorte. Aqueles caçadores que
encontraram você vieram para o melhor lugar possível.
–Eles não me encontraram. Foi um ataque. Eram muitos, eles tinham flechas...
–Acho que não foi assim. Acho que você deve ter se afastado do seu pai e se
perdeu. Aqueles caçadores encontraram você perdida e trouxeram para cá. Foi isso
que aconteceu, Lizzie.
– Eu vi o ataque - ela insistiu. - Estavam jogando flechas... Eu quero o meu pai -
disse, levantando a voz e sentindo que começava a chorar.
– Bem, você está em segurança aqui até ele chegar – disse o médico.
– Mas eu vi eles atirando flechas!
–Ah, você pensa que viu. Isso acontece muitas vezes no frio intenso, Lizzie. Você
adormece, tem pesadelos e não consegue saber o que é verdade e o que não é.
Não se preocupe, não houve ataque. O seu pai está seguro e deve estar procurando
você, e logo chegará aqui, pois é o único lugar em muitas centenas de quilômetros.
Que surpresa boa ele vai ter quando encontrá-la em segurança! Agora a Enfermeira
Clara vai levar você para o dormitório, onde vai encontrar outras crianças, meninas e
meninos que se perderam na neve como você. Pode ir. Amanhã cedo vamos ter outra
conversa. Lyra levantou-se, agarrada à boneca, e Pantalaimon saltou para o ombro
dela enquanto a enfermeira abria a porta.
     Mais corredores. Lyra a essa altura estava muito cansada, com tanto sono que
não parava de bocejar e mal conseguia levantar os pés nos chinelos de lã que lhe
deram. Pantalaimon estava exausto, e teve que se transformar em um rato e
acomodar-se dentro do bolso do roupão dela. Lyra teve um vislumbre de uma fila de
camas, rostos de crianças, um travesseiro - então adormeceu.
     Alguém  a sacudia. A primeira coisa que ela fez foi tatear na cintura e certificar- se
de que as duas latas ainda estavam lá em segurança; então tentou abrir os olhos, mas
isto era extremamente difícil, pois ela sentia um sono como nunca havia sentido.
– Acorde! Acorde!
Eram cochichos de mais de uma voz. Com um esforço enorme, como se estivesse
empurrando uma rocha enorme ladeira acima, Lyra forçou-se a despertar.
Na luz fraca de uma lâmpada anbárica de baixa potência que havia acima da
porta, ela viu três meninas ao seu redor. Não era fácil enxergar, pois seus olhos
custavam a entrar em foco, mas elas pareciam ter a idade dela, e estavam falando em
inglês.–
Ela acordou.
– Deram pílulas de dormir para ela. Deve ter sido...
– Como é o seu nome?
– Lizzie - ela balbuciou.
– Vai chegar um novo carregamento de crianças? – uma das meninas quis saber.
– Não sei. Só eu.
– Então onde pegaram você?
Lyra lutou para sentar-se. Não se lembrava de ter tomado remédio para dormir,
mas podia muito bem ter sido no leite quente. Sentia a cabeça cheia de algodão e uma
dorzinha latejando atrás dos olhos.
– Que lugar é este?
– É no meio de nada. Eles não contam.
– Geralmente trazem mais de um de cada vez...
– Que é que eles fazem? - Lyra conseguiu perguntar, reunindo os pensamentos
enquanto Pantalaimon despertava ao seu lado.
–Não sabemos- disse a menina que mais falava. Era alta e ruiva, com movimentos
rápidos e espasmódicos, e um forte sotaque londrino. - Eles medem a gente e fazem
testes e...
– Eles medem o Pó - disse outra garota, simpática, gorducha e morena.
– Você não sabe - disse a primeira.
– É isso, sim - disse a terceira, uma menina de ar tremido que ninava seu
daemon coelho.
– Eu ouvi eles falando.
–Eles levam uma por uma, é só o que a gente sabe. Ninguém volta mais - disse a
ruiva.
– Aquele garoto, ele acha...
– Não conte isso a ela! - fez a ruiva. - Ainda não.
– Tem garotos aqui também? - Lyra perguntou.
– Tem, sim. Muitos. Uns 30, eu acho.
– Tem mais. Uns 40 - corrigiu a gordinha.
–Mas eles não param de levar a gente - disse a ruiva. - Geralmente começam
trazendo uma turma, aí ficam sendo muitos, e um por um vão desaparecendo.
– São os Papões - disse a gorducha. - Você conhece os Papões. Todos nós
tínhamos medo deles até nos pegarem...
Lyra ia despertando gradualmente. Os daemons das outras garotas, com
exceção do coelho, estavam por perto, escutando junto à porta, e ninguém falava mais
alto que um cochicho. Lyra perguntou o nome delas; a ruiva era Annie, a morena
gorducha era Bella, a magra era Martha. Não sabiam o nome dos meninos, pois os
dois sexos eram mantidos separados. Não eram maltratados.
–Aqui é legal - disse Bella. - Não tem muita coisa para fazer, a não ser quando
eles nos fazem testes e nos mandam fazer exercícios e então nos medem, tiram a
nossa temperatura. É só muito monótono.
– A não ser quando a Sra.Coulter vem - disse Annie.
Lyra teve que se controlar para não soltar uma exclamação, e Pantalaimon
sacudiu as asas com tanta força que as outras garotas perceberam.
– Ele está nervoso - disse Lyra, acalmando-o. – Devem ter-nos dado remédio
para dormir, porque estamos tontos. Quem é a Sra. Coulter?
–É a mulher que pegou todos nós, ou quase todos- disse Martha. - As outras
crianças falam dela. Quando ela vem, a gente sabe que alguém vai desaparecer.
– Ela gosta de assistir quando levam a criança, gosta de ver o que eles fazem
com a gente. Esse garoto, o Simon, ele acha que eles nos matam e a Sra. Coulter fica
olhando.
– Eles nos matam? - Lyra repetiu, estremecendo.
– Deve ser. Porque ninguém volta.
– Estão sempre mexendo com os daemons, também - disse Bella. - Pesando,
medindo e tudo...
– Eles tocam nos daemons de vocês?
– Não! Que horror! Eles botam uma balança, e o nosso daemon tem que subir em
cima dela e mudar de forma, e eles tomam notas e tiram retratos. E colocam a gente
num armário e medem o Pó, o tempo todo, nunca param de medir o Pó.
– Que pó? - Lyra perguntou.
– A gente não sabe - disse Annie. – , É um negócio qualquer que vem do espaço.
Não é pó de verdade. Se a gente não tem Pó nenhum, então está tudo bem. Mas todo
mundo tem Pó no final.
–Sabe o que eu ouvi o Simon dizer? - falou Bella. – Ele disse que os tártaros
fazem um buraco no crânio para o Pó entrar.
– É, ele com certeza sabe de tudo - disse Annie em tom zombeteiro. - Acho que
vão perguntar à Sra. Coulter quando ela vier.
– Você não tem coragem! - disse Martha com admiração.
– Tenho, sim.
– Quando é que ela vem? - Lyra perguntou.
– Depois de amanhã - disse Annie.
Uma onda gelada de terror dominou Lyra, e Pantalaimon aproximou-se mais dela.
Ela só tinha um único dia para encontrar Roger e descobrir tudo que pudesse sobre
aquele lugar, e então fugir, ou ser resgatada; e se todos os gípcios tivessem sido
mortos, quem ia ajudar as crianças a sobreviver naquela imensidão gelada?
As outras meninas continuaram conversando, mas Lyra e Pantalaimon cobriram-se
e tentaram aquecer-se, sabendo que, por muitos quilômetros em volta da sua cama,
havia apenas o medo.

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