sexta-feira, 17 de outubro de 2014

15h47

    Acabaram de me levar da sala de recuperação para a Unidade de Tratamento Intensivo, ou
UTI. É uma sala em formato de ferradura, e vejo uma dúzia de camas e um grupo de
enfermeiros que não param de circular pelo espaço, lendo as impressões dos computadores
que saem de algum lugar à altura dos nossos pés e que registram os nossos sinais vitais. No
meio do quarto há ainda mais computadores e uma escrivaninha enorme, com outra enfermeira
sentada.
    Há duas enfermeiras que me observam, além de uma ronda interminável de médicos. Um
deles é um homem taciturno, rechonchudo, tem cabelo loiro e bigode e com o qual não
simpatizo muito. E a outra é uma mulher cuja pele é tão negra que chega a ser azul e ela tem a
voz muito alegre, me chama de “docinho” e não para de esticar os cobertores da minha cama,
mesmo que eu não esteja fazendo praticamente nenhum movimento com o corpo para tirá-los
do lugar.
    Há tantos tubos ligados em mim que não consigo contá-los: um ligado à minha garganta,
respirando por mim; outro no meu nariz, e que mantém o meu estômago vazio; um na minha
veia, me mantendo hidratada; um na minha bexiga, fazendo xixi por mim; muitos estão ligados
ao meu peito, registrando as batidas do meu coração; outro está ligado a meu dedo,
registrando a minha pulsação. O respirador que está cumprindo o papel da minha respiração
tem um ritmo tão suave quanto um metrônomo: inspira, expira, inspira, expira.
    Ninguém, a não ser os médicos, os enfermeiros e uma assistente social, veio me ver. É a
assistente social quem conversa com o vovô e a vovó, com a voz baixa e solidária. Ela diz a
eles que o meu estado é grave. Não tenho certeza do que isso significa — grave. Na TV, eles
dizem que o estado dos pacientes é crítico ou estável. Grave soa como algo ruim. Grave, em
inglês, significa “túmulo”. O lugar para onde você vai quando as coisas aqui não estão dando
mais certo.
— Queria que houvesse algo que pudéssemos fazer — afirma vovó. — Me sinto uma inútil
em ficar aqui parada, só esperando.
— Vou verificar se a senhora pode vê-la, nem que seja um pouquinho — oferece a
assistente social. Ela tem cabelos grisalhos e frisados e uma mancha de café em sua blusa. A
sua expressão é de gentileza. — Ela ainda está sedada devido à cirurgia e continua com o
balão de oxigênio para ajudá-la a respirar enquanto seu corpo se recupera do trauma. Mas,
para pacientes em estado de coma, ajuda muito escutar a voz de seus familiares.
O vovô reage com um gemido.
— Tem alguém para quem vocês possam ligar? — pergunta a assistente social. — Parentes
que possam ficar aqui com vocês... Sei que deve ser muito difícil, mas, quanto mais forte
vocês forem, mais poderão ajudar a Mia.
Eu me assustei quando ouvi a assistente social dizer meu nome. Soa como um alarme
estridente perceber que é sobre mim que eles estão falando. O vovô fala o nome de várias
pessoas que estão a caminho neste exato momento, tias, tios... Não ouço qualquer menção a
Adam.
É ele quem eu realmente quero ver. Queria poder saber onde ele está agora para tentar ir até
lá e encontrá-lo. Não faço a menor ideia de como Adam vai descobrir o que aconteceu
comigo. Nem a vovó nem o vovô tem o telefone dele. Eles não andam com o celular, então
Adam não vai conseguir entrar em contato com eles. E eu nem sei se passaria pela cabeça dele
ligar para os meus avós. As pessoas que normalmente poderiam dar a notícia do que
aconteceu comigo não estão mais em condições de fazer isso.
Permaneço aqui, observando esse corpo entubado e sem vida que sou eu. Minha pele está
cinza. Meus olhos fechados com uma espécie de esparadrapo. Queria que alguém viesse tirálo.
Ele provoca coceira. A enfermeira legal aparece. Ela tem pirulitos no jaleco, embora aqui
não seja a unidade de pediatria.
— Como você está, docinho? — pergunta ela, como se tivéssemos acabado de nos
encontrar, por acaso, no supermercado.

***
    As coisas não começaram tão bem entre Adam e eu. Acho que eu tinha aquela ideia de que o
amor é capaz de superar tudo. E, quando saímos do concerto de Yo-Yo Ma, tanto eu quanto
ele nos demos conta de que estávamos nos apaixonando. Pensei que essa fase era o grande
desafio. Nos livros e nos filmes, as histórias sempre acabam quando as duas pessoas
finalmente dão o beijo romântico e o “foram felizes para sempre” fica implícito, simples
assim.
Não foi bem assim com a gente. O fato de pertencermos a dois universos sociais
completamente diferentes tinha lá suas desvantagens. Continuamos a nos encontrar na ala de
música, mas nossas conversas eram muito formais, como se nenhum de nós quisesse estragar o
que tinha acontecido de bom. Mas quando nos encontrávamos em qualquer outro lugar da
escola — quando sentávamos juntos na cantina ou quando estudávamos um ao lado do outro no
pátio num dia ensolarado era como se algo estivesse errado. Adam e eu nos sentíamos
desconfortáveis um com o outro. A conversa era artificial. Quando um começava a falar sobre
determinado assunto, o outro falava também, simultaneamente, sobre outro assunto totalmente
diferente.
— Vai, fala você — disse eu.
— Não, fala você primeiro — respondeu Adam.
Toda essa gentileza era terrível. Eu queria superar isso, voltar ao brilho daquela noite no
concerto, mas não sabia ao certo o que precisava fazer para recuperar aquilo.
Adam me convidou para assistir a um ensaio da banda dele. E foi pior do que na escola. Se
eu já me sentia um peixe fora d’água na minha própria família, me senti um peixe em Marte
entre os amigos de Adam. Ele estava sempre cercado de pessoas animadas e descoladas,
garotas bonitas que tingiam o cabelo e usavam piercing, caras rebeldes que se entusiasmavam
quando o Adam começava a conversar sobre rock com eles. Eu não me encaixava no grupo. E
definitivamente não sabia como conversar sobre rock. Era uma linguagem que eu deveria ter
aprendido, já que era musicista e filha de pai também músico, mas não aprendi. É como os
falantes de mandarim, que mais ou menos conseguem entender cantonês, mas não
compreendem de fato a língua; mesmo que pessoas que não são chinesas suponham que todos
os chineses podem se comunicar entre si, o fato é que o mandarim e o cantonês são, na
verdade, dialetos diferentes.
Eu odiava ter de ir aos shows de Adam. Não por ciúmes, nada disso. Nem porque eu não
era muito fã daquele tipo de música. Eu adorava observá-lo tocando. Quando Adam estava no
palco, era como se a guitarra e ele fossem um só, o instrumento uma extensão natural do seu
corpo. E, quando descia, ele estava todo suado, mas era um tipo de suor tão limpo que parte
de mim se sentia tentada a lamber o seu rosto, como se Adam fosse um pirulito. Mas não fazia
isso.
Quando as fãs se aproximavam dele, eu me esgueirava e ficava num canto. Adam tentava me
puxar de volta, colocava o braço ao redor da minha cintura, mas eu me desvencilhava dele e
voltava para as sombras.
— Você não gosta mais de mim? — repreendeu-me Adam depois de certo show. Ele estava
brincando, mas pude sentir por trás daquela pergunta repentina que Adam estava chateado.
— Não sei se devo continuar vindo para os seus shows — falei.
— Por que está dizendo isso? — perguntou. Dessa vez, ele não se preocupou em esconder a
mágoa.
— Acho que a minha presença acaba impedindo você de curtir melhor as coisas. Não quero
ser uma preocupação pra você.
Adam disse que não se incomodava em ter de se preocupar comigo, mas posso dizer que
parte dele se importava sim.
Provavelmente, Adam e eu teríamos terminado naquelas primeiras semanas não fosse pela
minha família. Na minha casa, com a minha família, nos sentíamos em terra firme. Depois de
um mês de namoro, levei o Adam para o nosso primeiro jantar em família. Ele se sentou na
cozinha com o meu pai e os dois ficaram falando sobre rock. Fiquei observando, e mesmo sem
entender metade do que falavam, diferentemente dos shows da banda dele, não me senti
excluída.
— Você joga basquete? — perguntou meu pai. Em se tratando de assistir aos jogos, meu pai
era um fanático por beisebol, mas quando o assunto era jogar, ele preferia fazer cestas no
basquete.
— Claro — respondeu Adam. — Quer dizer, não sou muito bom...
— Você não precisa ser bom, só precisa se empenhar. Quer jogar um pouco? Você já está
com os seus tênis de basquete — disse meu pai, olhando para os tênis de cano alto de Adam.
Depois, ele se virou para mim: — Se importa?
— Nem um pouco — respondi, sorrindo. — Vou treinar um pouco enquanto vocês jogam.
Os dois foram para a quadra de uma escola primária que ficava bem perto de casa.
Retornaram quarenta minutos depois. Adam estava com a pele brilhando, suado e parecia
meio aturdido.
— O que aconteceu? — perguntei. — O coroa derrubou você?
Adam balançou a cabeça, afirmando, mas depois a balançou de novo, negando.
— Bem, sim, é mais ou menos isso. Uma abelha picou a palma da minha mão enquanto
estávamos jogando e o seu pai agarrou a minha mão e sugou o veneno.
Assenti. Esse era um truque que meu pai tinha aprendido com a vovó, e diferentemente do
que se faz com o veneno das cobras, a técnica de fato funcionava com picadas de abelhas.
Tiram-se o ferrão e o veneno, e então, resta apenas uma leve coceira.
Adam esboçou um sorriso envergonhado. Depois inclinou-se e sussurrou ao meu ouvido:
— Acho que estou me sentindo meio estranho porque estou mais íntimo do seu pai do que
de você.
Dei risada. O que ele disse não deixava de ser verdade. Nas poucas semanas em que
estávamos juntos, não havíamos feito nada muito além de nos beijar. E não que eu fosse algum
tipo de puritana. Eu era virgem, mas certamente não fazia questão de continuar assim. E com
certeza Adam não era virgem. O problema é que os nossos beijos também estavam cheios
daquela gentileza toda das nossas conversas.
— Talvez seja hora de mudarmos isso — sussurrei de volta.
Adam ergueu as sobrancelhas como se quisesse me perguntar algo. Fiquei com as
bochechas coradas. Durante todo o jantar, sorrimos um para o outro enquanto ouvíamos
Teddy, que não parava de falar sobre os ossos de dinossauro que ele aparentemente tinha
desenterrado do jardim naquela tarde. Papai havia feito sua famosa carne assada, que era o
meu prato favorito, mas eu não tinha o menor apetite, então, fiquei revirando a comida no
prato, na esperança de que ninguém notasse. Enquanto isso, uma agitação crescia dentro de
mim. Pensei no diapasão que uso para afinar o violoncelo. Quando eu o utilizava, atingia notas
de “Lá” — vibrações que aumentavam, aumentavam, até que a afinação harmônica atingia todo
o espaço. Era isso que o sorriso de Adam estava causando dentro de mim durante aquele
jantar.
Depois que jantamos, Adam deu uma olhadela no achado fóssil de Teddy. Em seguida,
subimos para o meu quarto e fechei a porta. Kim não tinha permissão para ficar sozinha em
casa com garotos (não que ela tenha tido a oportunidade). Meus pais nunca estabeleceram
nenhuma regra em relação a isso, mas tive a sensação de que eles sabiam o que estava
acontecendo entre o Adam e eu e, embora meu pai gostasse de bancar o Papai sabe tudo,
meus pais eram uns tapados quando o assunto era amor.
Adam deitou na minha cama e cruzou os braços por detrás da cabeça. Sua expressão era
puro sorriso: olhos, nariz, boca.
— Me toque — disse ele.
— O quê?
— Quero que me toque como você faz com o violoncelo.
Comecei a retrucar, dizendo que aquilo não fazia o menor sentido, mas então percebi que
fazia todo o sentido. Fui até o meu armário e peguei um dos meus arcos.
— Tire a camiseta — falei com a voz trêmula.
E Adam obedeceu. Mesmo sendo magro, ele tinha um corpo surpreendente. Eu poderia ter
ficado ali por vinte minutos, só observando os contornos do seu tórax. Mas ele queria que eu
me aproximasse mais. E eu também queria.
Sentei ao lado dele na cama, e o corpo do Adam estava ali, todo esticado bem à minha
frente. O arco tremeu quando o coloquei sobre a cama. Com a minha mão esquerda, acariciei a
cabeça de Adam como se fosse a voluta do violoncelo. Ele sorriu e fechou os olhos. Eu me
senti mais à vontade. Toquei as orelhas dele como se fossem as cravelhas, brinquei um pouco
com elas e Adam sorriu, discretamente. Coloquei dois dedos sobre as maçãs do rosto dele.
Em seguida, depois de respirar fundo para tomar coragem, fui para o tórax dele. Passei a mão
para cima e para baixo, percorrendo todo o torso, concentrando-me nos tendões musculares,
imaginando que cada um deles representava uma nota: Lá, Sol, Dó, Ré. Rocei a ponta dos
dedos sobre elas, uma por vez. Adam permaneceu em silêncio como se tivesse concentrado
em alguma coisa.
Peguei o arco e o passei na altura do quadril dele, onde imaginei que seria a ponte do
violoncelo. Comecei a tocar devagar, mas depois aumentei a velocidade e a força como se a
música que estava tocando na minha cabeça estivesse aumentando de intensidade. Adam
continuou imóvel, deixando apenas escapar alguns gemidos por entre os lábios. Olhei para o
arco, para as minhas mãos e para o rosto de Adam e fui tomada por uma explosão de amor,
desejo e por um estranho sentimento de poder. Nunca imaginei que eu pudesse fazer alguém se
sentir dessa forma.
Quando terminei, ele se sentou e me beijou, um beijo longo e profundo.
— É a minha vez — disse Adam.
Ele me colocou de pé e começou a tirar a minha camiseta e abaixar a minha calça jeans.
Depois, sentou na cama e me deitou sobre o seu colo. A princípio, Adam não fez nada, só me
abraçou. Então fechei os olhos para sentir o seu olhar sobre o meu corpo, senti-lo me olhar
como nunca ninguém jamais o fizera.
Então ele começou a tocar.
Adam dedilhou as cordas em cima do meu peito, como se elas estivessem ali, o que me fez
sentir cócegas e dar risada. Delicadamente, ele passou as mãos um pouco mais embaixo. Parei
de rir. As vibrações do diapasão começaram a ficar ainda mais fortes, e se intensificavam
toda vez que o Adam me tocava em algum lugar que não tinha tocado antes.
Depois de certo tempo, ele começou a dedilhar como num acorde espanhol, uma batida
mais concentrada e rápida. Usou a parte de cima do meu corpo como se fosse o braço do
violão, e acariciou o meu cabelo, meu rosto, meu pescoço. Tocou o meu seio e a minha
barriga, mas pude senti-lo em lugares onde a mão dele nem tinha passado perto. À medida que
me tocava, a agitação interna aumentava, o diapasão emitia vibrações enlouquecedoras,
ardentes, descontroladas, até que o meu corpo inteiro estava zunindo e eu, sem fôlego. E
quando senti que não poderia aguentar nem mais um minuto, um turbilhão de sensações se
transformou num crescendo estonteante, levando cada parte do meu corpo ao delírio, ao
estado de alerta máximo.
Abri os olhos, saboreando a calma enternecedora que percorria todo o meu corpo. Comecei
a rir. E Adam também. Nos beijamos por muito tempo até que chegou a hora de ele ir para
casa.
Eu o acompanhei até o carro e senti vontade de dizer-lhe que o amava. Mas seria algo muito
clichê depois do que tínhamos feito. Então esperei e disse que o amava no dia seguinte.
— Que alívio! Pensei que você só estava me usando como objeto sexual — brincou ele,
dando risada.
Depois disso, continuamos tendo problemas, mas a gentileza excessiva de um com o outro
certamente não era mais um deles.

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