sexta-feira, 17 de outubro de 2014

16h47

Certa vez, mamãe conseguiu fazer com que eu entrasse num cassino. Estávamos de férias, a
caminho de Crater Lake, quando paramos num resort em uma reserva indígena para
almoçarmos num restaurante. Mamãe decidiu jogar um pouco e eu fui com ela, enquanto papai
ficou com Teddy, que estava dormindo no carrinho de bebê. Mamãe sentou-se à mesa de
blackjack. O carteador olhou para mim, depois para a mamãe, que retribuiu ao olhar suspeito
dele com um olhar suficientemente afiado para cortar um diamante, seguido de um sorriso
mais brilhante do que qualquer gema preciosa. De um jeito tímido, o carteador retribuiu ao
sorriso e não disse uma palavra sequer. Sentindo-me hipnotizada, observei mamãe enquanto
ela jogava. Parecia que estávamos ali há apenas poucos minutos, mas na verdade já fazia
algum tempo, foi quando o papai e Teddy vieram à nossa procura, os dois reclamando. No
final das contas, acabamos ficando lá por mais de uma hora.
Na UTI, é quase igual. Não se sabe ao certo que horas são nem quanto tempo se passou.
Não há luz natural. E há um barulho constante, mas não os dos bipes eletrônicos das máquinas
caça-níqueis e do retinir das moedas, posso ouvir o zumbido de todos os equipamentos
médicos, o som interminável e abafado das páginas reviradas pelos médicos auxiliares, e a
conversa constante dos enfermeiros.
Não tenho muita certeza de quanto tempo estou aqui. Há pouco, a enfermeira que tem aquela
voz agradável e de quem eu gosto, disse que estava indo para casa.
— Volto amanhã, mas quero vê-la aqui, docinho — disse ela.
A princípio, achei isso estranho. Ela não deveria desejar que eu fosse para casa, ou mesmo
removida para outra parte do hospital? Foi então que me dei conta de que o que ela queria era
me ver aqui, viva, e não morta.
Os médicos continuam circulando, levantando as minhas pálpebras e examinando-as com a
luz de uma lanterna. São sempre rudes e apressados, como se não considerassem as pálpebras
dignas de delicadeza, e isso me faz perceber as pouquíssimas vezes em que tocamos as
pálpebras de alguém durante a nossa vida. Talvez um pai ou uma mãe levante as pálpebras do
filho para tirar algum grão de poeira dos seus olhos, ou talvez o namorado beije as pálpebras
da namorada com tanta delicadeza quanto o bater de asas de uma borboleta antes de sua amada
cair no sono. Mas as pálpebras não são como cotovelos, joelhos ou ombros que estão
acostumados com empurrões e batidas.
A assistente social está ao lado da minha cama agora. Ela olha o meu prontuário e conversa
com uma das enfermeiras que normalmente se senta à mesa grande que fica bem no meio da
sala. É incrível a maneira como se é observado aqui. Quando não estão vasculhando por
debaixo das suas pálpebras com as lanternas, nem lendo os relatórios que não param de sair
das impressoras ao pé da cama, estão acompanhando os seus sinais vitais por meio do monitor
de um computador central. Ao menor sinal de alteração, um dos monitores começa a apitar.
Sempre há um alarme tocando em algum lugar. No começo, isso me assustava, mas agora
percebo que na metade do tempo, quando os alarmes disparam, é por conta de algum problema
com as máquinas, e não com as pessoas.
A assistente social parece exausta, como se não ligasse se pudesse se jogar num desses
leitos vazios. Eu não sou a única doente que ela acompanha. Ela passou a tarde inteira indo e
vindo, acompanhando pacientes e familiares. É a ponte entre os médicos e as pessoas, e é
visível a tensão que há para se estabelecer o equilíbrio entre esses dois mundos.
Depois de ler o meu prontuário e conversar com as enfermeiras, a assistente social volta ao
andar debaixo para conversar com a minha família, que parou com as conversas sussurradas e
agora se ocupa com atividades solitárias. A vovó está fazendo tricô. O vovô finge tirar uma
soneca. A tia Diane está jogando sudoku. Meus primos se revezam num minigame, mas com o
som no mudo.
Kim saiu. Quando voltou à sala de espera, depois da visita à capela, ela se deparou com a
sra. Schein se debulhando em lágrimas. Kim pareceu extremamente constrangida e apressou-se
para tirar a mãe dali. Para falar a verdade, acho que ter a sra. Schein ali provavelmente
ajudou. Confortá-la fez com que todos se ocupassem com outra coisa, uma maneira de se
sentirem úteis. Agora, todos voltaram a se sentir impotentes, na interminável espera.
Quando a assistente social entrou, todos se levantam como se estivessem saudando um
membro da realeza. Ela esboça um sorriso discreto, o qual, só hoje, eu já vi muitas vezes.
Acho que é o jeito de ela dizer que está tudo bem, ou apenas uma forma de manter a postura, e
ela está aqui apenas para trazer as notícias atualizadas, não para lançar uma bomba.
— Mia continua inconsciente, mas seus sinais vitais estão melhorando — anuncia a
assistente social aos meus familiares, que abandonaram suas distrações casuais sobre as
cadeiras. — Ela está com os fisioterapeutas agora. Eles estão realizando testes para averiguar
o quanto os pulmões estão funcionando e se ela conseguirá respirar sem a ajuda dos aparelhos.
— Então, isso é uma boa notícia? — questiona tia Diane. — Se ela puder conseguir
respirar sem a ajuda dos aparelhos, isso significa que vai acordar logo?
A assistente social balança a cabeça de um jeito solidário e compreensivo.
— Se ela conseguir respirar sozinha, isso vai ser um ótimo sinal. Significa que os pulmões
estão se recuperando e que as contusões internas estão se estabilizando. O ponto de
interrogação continua sendo as lesões cerebrais.
— O que é isso? — indaga Heather, minha prima.
— Não sabemos quando ela vai acordar ou o quanto o seu cérebro está comprometido.
Estas primeiras vinte e quatro horas são as mais críticas e Mia está recebendo todos os
cuidados possíveis.
— Podemos vê-la? — pergunta vovô.
A assistente social fez que sim com a cabeça.
— É por isso que estou aqui. Acho que vai fazer bem para a Mia receber uma visita. Uma
ou duas pessoas no máximo.
— Nós vamos — intervém vovó, dando um passo adiante. O vovô está bem ao lado dela.
— Sim, foi isso que pensei — afirma a assistente social. — Não vamos demorar — avisa
ela ao restante da família.
Em silêncio, os três caminham pelo corredor. No elevador, a assistente social
aparentemente tenta preparar os meus avós para o encontro comigo, explicando a intensidade
dos meus ferimentos externos, que parecem horríveis, mas são passíveis de tratamento. A
preocupação dos médicos é com os meus ferimentos internos, ela acrescenta.
Ela age como se os meus avós fossem crianças. Mas eles são mais fortes do que aparentam.
Vovô foi médico na Coreia. E quanto à vovó, ela está sempre salvando alguma coisa: pássaros
com asas quebradas, um castor doente, um cervo atropelado por um carro. O cervo,
especialmente, foi enviado para um santuário ecológico, o que é engraçado porque a vovó
sempre odiou cervos; eles comem a grama do jardim. “Ratos bonitos”, é como ela os chama.
“Ratos saborosos”, é como o vovô se refere a eles quando assa a carne do bicho. Mas aquele
cervo em especial, vovó não suportou ver sofrendo, então o salvou. Uma parte de mim
desconfia que ela achou que o animal fosse um dos seus anjos.
Mesmo assim, quando atravessam a porta automática e entram na UTI, tanto vovô quanto
vovó param, como se tivessem sido impedidos por uma barreira invisível. Vovó segura a mão
do vovô e tento me lembrar se alguma vez os vi de mãos dadas. Vovó procura pela cama onde
estou, mas bem no momento em que a assistente social começa a apontar em minha direção,
vovô me vê e caminha a passos largos até a minha cama.
— Olá, pequena patinha — diz ele. Há muito tempo vovô não me chamava assim, a última
vez foi quando eu era ainda menor que Teddy. Vovó caminha devagar na minha direção, com a
respiração entrecortada à medida que se aproxima. Talvez, no final das contas, todos aqueles
animais feridos não a tenham preparado efetivamente.
A assistente social puxa duas cadeiras e as coloca ao pé da minha cama.
— Mia, seus avós estão aqui. — Ela gesticula pedindo a eles que se sentem. — Vou deixar
você com eles agora.
— Ela pode nos ouvir? — pergunta a vovó. — Se falarmos, ela vai entender?
— Pra ser sincera, eu não sei — responde a assistente social. — Mas a presença dos
senhores pode ser reconfortante desde que o que disserem realmente possa ajudá-la.
Então, a mulher olha para os meus avós como se quisesse aconselhá-los a não dizer nada de
ruim que pudesse me abalar. Sei que é esse o seu trabalho, alertar as pessoas sobre coisas
desse tipo, e que ela está ocupada com milhares de coisas e nem sempre pode ser sensível,
mas naquele segundo, eu a odiei.
Depois que a assistente social sai, eles ficam sentados ali, em silêncio. Então a vovó
começa a tagarelar sobre as orquídeas que ela plantou na estufa. Percebo que ela trocou de
roupa, tirou o avental de jardinagem e está vestindo uma calça de veludo e um suéter. Alguém
deve ter ido à casa deles para trazer roupa limpa. Vovô fica ali sentado, imóvel, mas com as
mãos tremendo. Ele nunca foi de falar muito, então deve ser difícil para ele ter de conversar
comigo agora.
Outra enfermeira passa. Tem o cabelo escuro e os olhos também escuros que brilham pela
maquiagem cintilante. Suas unhas são postiças e têm decalques em formato de coração. Ela
deve ter muito trabalho para manter as unhas assim, tão bonitas. Admiro isso.
Não é ela a enfermeira que cuida de mim, mas mesmo assim ela se aproxima do vovô e da
vovó.
— Não duvidem nem por um minuto que ela consegue ouvi-los — diz ela. — Ela tem
consciência de tudo o que está acontecendo.
A enfermeira fica ali parada, com as mãos na cintura. Quase posso vê-la mascando um
chiclete. A vovó e o vovô ficam olhando para a mulher, absorvendo o que acabou de dizer.
— Vocês podem achar que são os médicos ou as enfermeiras ou todos estes equipamentos
que controlam o show — diz ela, gesticulando na direção dos aparelhos. — Nã-não. É ela
quem controla o show. Talvez, ela esteja só esperando a hora certa. Por isso, conversem com
ela. Digam que pode usar o tempo que for necessário, mas que volte, porque estão esperando
por ela.

***

Mamãe e papai jamais diriam que Teddy e eu fomos algum tipo de erro. Nem de acidente.
Muito menos de surpresa. Nem qualquer outro desses eufemismos estúpidos. Mas nenhum de
nós foi planejado e meus pais nunca tentaram esconder isso.
Mamãe engravidou de mim quando ainda era jovem. Não uma adolescente, mas era nova,
tinha vinte e três anos e já estava casada com papai há um ano.
De um jeito engraçado, papai sempre foi um adepto da gravata-borboleta e sempre um
pouco mais tradicional do que se pode imaginar. Porque embora ele tivesse cabelo tingido de
azul, tatuagens, vestisse jaquetas de couro e trabalhasse numa loja de discos, ele quis casar
com a minha mãe num momento em que o resto dos seus amigos queriam apenas ficar com as
garotas por uma noite depois de encherem a cara.
— Namorada é uma palavra idiota — disse ele. — Não suportava chamá-la assim. Então,
tivemos de casar para que eu pudesse chamá-la de “esposa”.
Mamãe, por sua vez, tinha uma família complicada. Ela nunca me contou detalhes, mas sei
que o seu pai abandonou a família e que ela ficou sem falar com a mãe por um tempo, apesar
de agora visitarmos nossa avó e o pai Richard (que é como a minha mãe chama o seu
padrasto) algumas vezes durante o ano.
Assim, mamãe não foi apenas conquistada pelo papai, mas por toda a sua imensa família,
uma família normal em comparação à família dela. Ela concordou em se casar com papai
embora eles estivessem juntos há apenas um ano. É claro que fizeram as coisas do jeito deles.
O casamento foi feito por uma juíza lésbica enquanto os amigos deles tocavam uma versão
heavy metal da “Marcha Nupcial”. A noiva usou um vestido de franjas branco e um coturno
preto com tachinhas. O noivo usou um traje de couro.
Meus pais engravidaram de mim por causa do casamento de outra pessoa. Um dos integrantes
da banda do meu pai tinha se mudado para Seattle e engravidado a namorada, então tiveram de
fazer tudo às pressas. Mamãe e papai foram ao casamento e, durante a recepção, beberam
mais do que deveriam e ao voltarem para o hotel, não tomaram o cuidado de sempre. Três
meses depois, lá estava eu na tirinha azul do teste de gravidez.
Pelo que contaram, nenhum dos dois estava pronto para ter um filho. E nenhum deles se
sentia adulto ainda. Mas não houve a menor dúvida de que me teriam. Minha mãe era
absolutamente a favor do aborto. Tinha até mesmo um adesivo no vidro do carro onde se lia:
Se você não pode confiar no meu poder de escolha, como pode confiar em mim com um
filho? Mas no caso dela, a escolha foi de levar a gravidez adiante.
Papai estava mais receoso. Mais assustado. Até o momento em que o médico me tirou do
ventre e ele começou a chorar.
— Conversa fiada! — dizia ele quando a mamãe contava essa história. — Eu não fiz nada
disso.
— Então você não chorou? — perguntava a mamãe com sarcasmo.
— Lacrimejei. Mas não chorei. — Então, papai piscava para mim e começava a imitar o
choro de um bebê.
Como eu era a única criança entre o grupo de amigos deles, era tudo novidade. Fui criada
em meio à comunidade musical, com uma dúzia de tios e tias que me tratavam como se eu
fosse filha deles também, mesmo depois que comecei a demonstrar a minha estranha
preferência por música clássica. Mas também não me faltou uma família biológica, de
verdade. A Vovó e o vovô moravam próximo a nós, e ficavam muitos felizes quando meus
pais me deixavam com eles para aproveitarem um fim de semana sozinhos e ficar acordados
até tarde durante os shows do papai.
Lá pelos meus quatro anos, acho que meus pais se deram conta do que estavam de fato
fazendo — educando uma criança —, embora não fossem ricos, nem tivessem empregos “de
verdade”. Tínhamos uma casa legal, cujo aluguel era barato. Eu tinha o que vestir (mesmo que
fossem as roupas repassadas pelos meus primos) e estava crescendo, feliz e saudável.
— Você foi como um experimento — disse papai. — Surpreendentemente bem-sucedido.
Achamos que você foi um acaso, mas um acaso feliz, então precisávamos de outro bebê para
funcionar como um grupo de controle.
Meus pais tentaram por quatro anos. Mamãe engravidou duas vezes e sofreu dois abortos
espontâneos. Meus pais ficaram tristes por isso, mas não tinham dinheiro para fazer o
tratamento de fertilização que as pessoas fazem. Quando eu tinha nove anos, eles decidiram
que talvez o melhor fosse que as coisas permanecessem como estavam. Comecei a me tornar
independente. E eles, pararam de tentar.
Como uma forma de convencer a si mesmos do quanto foi bom não ter tido outro filho,
mamãe e papai compraram passagens para passarmos uma semana em Nova York. Faríamos
uma espécie de peregrinação musical. Iríamos ao CBGB e ao Carnegie Hall. Foi então que,
para sua surpresa, mamãe descobriu que estava grávida e, para surpresa ainda maior, ela
conseguiu manter a gravidez pelos três meses iniciais. Desse modo, tivemos de cancelar a
nossa viagem. Mamãe vivia muito cansada, enjoada e mal-humorada e o papai brincou que ela
provavelmente assustaria os nova-iorquinos. Além disso, ter um bebê sai caro e precisávamos
economizar.
Não fiquei chateada. Estava entusiasmada com o bebê. E sabia que Carnegie Hall não sairia
do lugar. Algum dia eu iria até lá.

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