sábado, 18 de outubro de 2014

19- O Cativeiro

Os ursos levaram Lyra por uma trilha que subia até o topo do penhasco,
onde a neblina era ainda mais espessa do que na praia. Os guinchos dos
avantesmas-dos-penhascos e o fragor das ondas ficavam mais fracos à medida
que ela subia, e finalmente o único som era o incessante piar dos pássaros
marítimos. Subiram em silêncio, vencendo rochedos e geleiras, e embora Lyra não
cessasse de examinar, de olhos arregalados, a neblina cinza que os envolvia, e
forçasse os ouvidos tentando escutar o ruído da chegada de seus amigos, ela
parecia ser o único ser humano em Svalbard, e Iorek poderia muito bem estar
morto.O urso-sargento não falou com ela até atingirem terreno plano. Ali fizeram
alto. Pelo som das ondas, Lyra calculou que tinham chegado ao topo do penhasco e
não ousou sair correndo para não cair no precipício.
–Olhe para cima – disse o urso, no momento em que uma brisa afastava a
pesada cortina de névoa.
De qualquer maneira, a luz do dia era pouca, mas Lyra olhou assim mesmo, e se
viu diante de uma enorme construção de pedra. Era tão alta quanto a parte mais alta
da Faculdade Jordan, porém muito mais compacta, e toda entalhada com cenas de
batalhas mostrando os ursos vitoriosos e os escraelingues rendendo-se, tártaros
acorrentados trabalhando como escravos nas minas de fogo, zepelins chegando de
todas as partes do mundo trazendo presentes e tributos ao rei dos ursos, Iofur
Raknison.
Pelo menos foi o que o urso-sargento disse que os entalhes representavam; ela
própria não conseguia ver essas coisas, pois cada protuberância e reentrância da
fachada ornamentada estava ocupada por mergulhões e gaivotas rapineiras que
piavam, gritavam e voejavam constantemente em círculos, e cujas fezes tinham coberto
todo o prédio com espessas manchas de um branco sujo.
Os ursos pareciam não ver a sujeira; fizeram-na atravessar o enorme arco,
pisando no chão congelado, imundo com as fezes dos pássaros. Havia um pátio,
escadarias e vários portões, e em cada um deles havia ursos de armadura que exigiam
a senha para lhes dar passagem. Suas armaduras eram claras e brilhantes, e todos
usavam plumas nos elmos. Lyra não conseguia deixar de comparar cada urso que via
com Iorek Byrnison, e ele sempre se saía melhor; era mais forte, mais gracioso, e sua
armadura era de verdade, com cor de ferrugem, manchas de sangue e marcas de luta,
e não uma armadura elegante, polida e decorativa como a maioria das que ela via
agora.A medida que penetravam no prédio, a temperatura aumentava, e outra coisa
também aumentava: o cheiro no palácio de Iofur era insuportável – gordura de foca
rançosa, sangue, dejetos de todo tipo. Lyra baixou o capuz para sentir menos calor,
mas não conseguiu deixar de franzir o nariz; esperava que os ursos não entendessem
as expressões do rosto humano. A cada poucos metros, havia alças de ferro
prendendo lamparinas a gordura de peixe, e naquela luz fraca nem sempre era fácil
enxergar onde ela estava pisando.
Finalmente pararam diante de uma pesada porta de ferro.
Um urso-guarda puxou a enorme tranca, e o sargento de repente virou a cabeça,
empurrando Lyra pelas costas, jogando-a através da porta e desequilibrando-a. Antes
que ela conseguisse ficar de pé, ouviu a porta sendo trancada atrás de si. A escuridão
era total, mas Pantalaimon tornou-se um vagalume e lançou um brilho minúsculo em
volta deles.
Estavam numa cela estreita com paredes de onde pingava umidade, e a mobília
era apenas um banco de pedra; no canto mais distante, havia uma pilha de andrajos
que ela imaginou ser a cama. Isto era tudo que ela conseguia ver.
Lyra sentou-se, com Pantalaimon no ombro, e tateou nas roupas em busca do
aletômetro.
–Ele tem levado muita pancada, Pan. Espero que ainda funcione – cochichou.
Pantalaimon voou para o pulso dela e ficou ali brilhando enquanto Lyra preparava a
mente. Uma parte dos seus pensamentos achava incrível que ela pudesse estar em
terrível perigo e mesmo assim mergulhar na calma necessária para ler o aletômetro; no
entanto, aquilo agora fazia parte dela de tal maneira que as perguntas mais
complicadas destacavam-se com seus símbolos com a mesma naturalidade com que
seus músculos moviam seus braços; mal precisava pensar neles.
Ela moveu os ponteiros e pensou:
"Onde está Iorek?"
A resposta foi imediata:
"A um dia de distância, levado pelo balão depois da queda; mas está vindo
depressa."
"E Roger?"
"Com Iorek."
"Que é que Iorek Byrnison vai fazer?"
"Ele pretende forçar a entrada do palácio e libertá-la, apesar de todas as
dificuldades."
Ela guardou o aletômetro, ainda mais ansiosa do que antes.
–Eles não vão permitir, não é mesmo? São muitos. Eu queria ser uma bruxa, Pan,
aí você poderia ir até ele, levar e trazer recados, e a gente poderia fazer um bom
plano...
Então ela levou o maior susto de sua vida, quando uma voz masculina perguntou,
a poucos passos dela:
– Quem é você?
Ela deu um salto e um grito de medo. Pantalaimon imediatamente virou morcego,
guinchando, e voou em volta da cabeça dela enquanto ela recuava até a parede.
– Hein? Quem está aí? – insistiu o homem. – Fale! Fale!
– Vire vaga-lume de novo, Pan. Mas não chegue perto demais- ela pediu, com voz
trêmula.
O pontinho de luz dançou pelo ar e voejou em volta da cabeça do homem. Afinal,
não era uma pilha de andrajos: era um homem de barba grisalha acorrentado à parede,
com olhos que cintilavam à luz de Pantalaimon e cabelos sujos que lhe chegavam aos
ombros. Seu daemon, uma serpente de aparência exausta, estava deitado no colo dele
e ocasionalmente dardejava a língua para Pantalaimon.
– Qual é o seu nome? – ela perguntou.
– Jotham Santelia – ele respondeu. – Sou Professor Regius{18} de Cosmologia na
Universidade de Glouscester. Quem é você?
– Lyra Belacqua. Por que está preso?
– Maldade e inveja... De onde você vem? Hein?
– Da Faculdade Jordan.
– O quê? De Oxford?
– É.
– Aquele safado do Trelawney ainda está lá? Hein?
– O professor de palmeriano? Está sim – ela disse.
– Está mesmo? Hein? Deviam ter forçado a demissão dele há muito tempo.
Plagiador pérfido! Moleque!
Lyra fez um som neutro.
– Ele já publicou seu trabalho sobre os fótons de raio gama? – perguntou o
Professor, erguendo o rosto para Lyra.
Ela recuou.
– Não sei – disse. Então, por puro hábito, começou a inventar. – Não, agora me
lembro. Ele disse que ainda precisava verificar certos cálculos. E... disse que ia
escrever sobre o Pó também. É isso.
– Safado! Ladrão! Traidor! Vigarista! – bradou o velho.
Ele tremia com tanta violência que Lyra achou que ele ia ter um ataque. Seu
daemon deslizou lentamente do colo do Professor, que dava murros nas pernas,
cuspindo uma chuva de saliva.
– É, eu sempre achei que ele era ladrão. E vigarista, e tudo mais – disse Lyra.
Se era improvável que surgisse em sua cela uma garotinha que conhecia o próprio
homem que era a sua obsessão, o Professor Regius não percebeu. Ele estava mesmo
louco – o que não era de estranhar, coitado; mas podia ter alguma informação útil para
Lyra.
Ela sentou-se ao lado dele cautelosamente, não suficientemente perto para que
ele a tocasse, mas o bastante para que a minúscula luz de Pantalaimon o iluminasse
claramente.
– Uma coisa que o Professor Trelawney dizia para se gabar era que conhecia
muito bem o rei dos ursos...
– Para se gabar? Hein? Ele é mesmo um gabola! Um fanfarrão! E um mandrião!
Nem uma única linha de pesquisa ele fez! Foi tudo pirateado de homens melhores que
ele!
– É, tem razão – disse Lyra em tom veemente. –E quando ele faz alguma
pesquisa, faz tudo errado.
– Sim! Sim! Perfeitamente! Não tem talento nem imaginação, é uma fraude do
princípio ao fim!
– Por exemplo, aposto que o senhor sabe mais que ele sobre os ursos – disse
Lyra.
– Ursos! Ra! Eu poderia escrever um tratado sobre eles! Foi por isso que me
prenderam, sabia?
– Por quê?
– Porque sei demais sobre eles, e eles não ousam me matar. Não têm coragem,
por mais que tenham vontade. Eu sei, entende? Tenho amigos. Sim, amigos poderosos!
– É, e aposto que o senhor é um professor maravilhoso, tendo tanto
conhecimento e com tanta experiência de ensinar...
Mesmo nas profundezas da loucura dele, ainda brilhava uma centelha de bom
senso, de modo que ele olhou para a menina com atenção, quase como se suspeitasse
de sarcasmo por parte dela. Mas ela havia passado a vida inteira lidando com
professores idosos e desconfiados e retribuiu o olhar dele com um olhar de admiração
que o convenceu e acalmou.
– Professor... – fez ele. – Ensinar... É, eu poderia ensinar. Se eu tivesse um bom
aluno, acenderia uma fogueira na mente dele!
– Porque o seu conhecimento não deveria simplesmente desaparecer – Lyra
continuou, em tom encorajador. –Devia ser passado adiante, para que as pessoas se
lembrem do senhor.
– É, sim – fez ele, assentindo com seriedade. – Você é muito perspicaz, garota.
Qual é o seu nome?
– Lyra- ela tornou a dizer. – Pode me ensinar sobre os ursos?
– Os ursos... – ele ecoou, em tom de dúvida.
– Eu realmente gostaria de aprender sobre cosmologia, o Pó e tudo mais, mas
não sou suficientemente inteligente para isso. E podíamos começar com os ursos e
progredir até o Pó, quem sabe?
Ele assentiu outra vez.
– É, acho que tem razão. Existe uma correspondência entre o microcosmo e o
macrocosmo! As estrelas estão vivas, menina. Sabia disso? Tudo lá em cima é vivo, e
existem grandes propósitos lá fora! O universo está cheio de intenções, entende? Tudo
acontece com um propósito. O seu é me recordar isto. Muito bom, muito bom; no meu
desespero eu tinha esquecido. Ótimo! Excelente, minha menina!
– Então: já viu o Rei Iofur Raknison?
– Ah, se vi! Vim para cá a convite dele, sabia? Ele ia me fazer Vice-chanceler.
Seria um tapa de luva no Régio Instituto do Pólo Ártico hein? Hein? E naquele safado
do Trelawney! Ah!
– Que foi que aconteceu?
– Fui traído por homens indignos. Entre eles Trelawney, é claro. Ele estava aqui,
sabia? Em Svalbard. Espalhou mentiras e calúnias sobre a minha qualificação.
Calúnias! Invenções! Quem foi que descobriu a prova definitiva da hipótese de Barnard-
Stokes, hein? Hein? Sim, o velho Santelia. Trelawney não conseguiu aceitar isso.
Mentiu do princípio ao fim. Iofur Raknison mandou me jogar aqui. Um dia vou sair, você
vai ver. Vou ser Vice-chanceler, ora se vou. E Trelawney vai me procurar, implorando
piedade! Quero ver o Régio Instituto do Pólo Ártico recusar meus textos! Ah! Vou
denunciar todos eles!
– Acho que Iorek Byrnison vai acreditar no senhor, quando ele voltar... – disse
Lyra.
– Iorek Byrnison? Não adianta esperar por isso. Aquele lá nunca vai voltar.
– Ele está vindo.
– Então vai ser morto. Ele não é urso, entende? É um renegado. Como eu. Um
degredado, entende? Sem direito a qualquer um dos privilégios de um urso.
– Se Iorek Byrnison voltasse e desafiasse Iofur Raknison para uma luta...
– Ah, não iam permitir isso – disse o Professor em tom decidido. – Iofur nunca irá
se rebaixar reconhecendo o direito de Iorek Byrnison de lutar com ele. Iorek não tem
mesmo esse direito; ele pode ser uma foca, ou um leão-marinho, mas não um urso.
Seria morto com lançadores de fogo antes de chegar perto. Não há esperança. Não
existe piedade.
– Ah... – suspirou Lyra, com o desespero pesando no peito. – E os outros
prisioneiros dos ursos, sabe onde ficam?
– Outros prisioneiros?
– Assim como... Lorde Asriel.
De repente o Professor mudou inteiramente; encolheu-se contra a parede e
sacudiu a cabeça com nervosismo.
– Psiu! Fale baixo! Podem ouvir!
– Por que não podemos falar no Lorde Asriel?
– Proibido! Muito perigoso! Iofur Raknison não permite que o nome dele seja
mencionado!
– Por quê? – Lyra perguntou, aproximando-se e cochichando também, para não
assustá-lo.
– Manter Lorde Asriel prisioneiro é uma tarefa especial dada a Iofur pelo
Conselho de Oblação – cochichou de volta o velho. – A Sra. Coulter em pessoa veio
visitar Iofur e lhe ofereceu todo tipo de recompensas para ele manter Lorde Asriel fora
do caminho. Sei disso porque na época, entende, eu ainda tinha a confiança de Iofur.
Conheci a Sra. Coulter! É verdade. Tivemos uma longa conversa. Iofur estava
encantado com ela. Não parava de falar nela. Faria qualquer coisa por ela. Se ela quer
que Lorde Asriel fique preso a mil quilômetros de distância, assim será. Qualquer coisa
pela Sra. Coulter, qualquer coisa. Ele vai dar o nome dela à capital do seu país, sabia
disso?
– Então ele não deixa ninguém visitar Lorde Asriel?
– Não! Nunca! Mas ele também tem medo de Lorde Asriel, entende? Iofur está
jogando uma partida difícil: está mantendo Lorde Asriel em confinamento para agradar
à Sra. Coulter, mas deixa Lorde Asriel ter todo o equipamento que quiser, para agradálo.
Este jogo não pode durar muito. É um equilíbrio instável. Agradar aos dois lados.
Hein? A estrutura desta situação vai desmontar logo, logo. Sei disso de fonte segura.
– É mesmo? – fez Lyra, distraída, pensando furiosamente sobre o que ele
acabara de dizer.
– É, sim. A língua do meu daemon sente o sabor da probabilidade, entende?
– É, a minha também. Quando é que nos alimentam, Professor?
– Nos alimentam?
– Devem colocar comida, senão morreríamos de fome. E o chão está cheio de
ossos. Imagino que sejam de foca, não são?
– Foca... Não sei. Pode ser.
Lyra levantou-se e tateou até a porta. Não havia maçaneta, naturalmente, nem
fechadura, e não havia uma só fresta por onde passasse a luz. Ela encostou o ouvido,
mas nada escutou. Depois ouviu o ruído das correntes do ancião quando ele virou-se
para o outro lado, finalmente pondo-se a roncar.
Ela tateou de volta ao banco. Pantalaimon, cansado de emitir luz, tornara-se um
morcego, o que para ele era ótimo; ficou voejando, guinchando baixinho, enquanto Lyra,
sentada, roía as unhas.
De repente, sem o menor aviso, ela recordou o que tinha ouvido o Catedrático de
palmeriano dizer na Sala Privativa tanto tempo antes. Alguma coisa vinha cutucando sua
mente desde que Iorek Byrnison mencionara pela primeira vez o nome de Iofur, e agora
ela se lembrava: o Professor Trelawney tinha dito que aquilo que Iofur Raknison queria
mais que tudo era um daemon.
É claro que na hora ela não havia entendido o que ele queria dizer; ele tinha falado
em "panserbjornes" em vez de usar a palavra inglesa, de modo que ela não sabia que
estavam falando de ursos e não podia imaginar que Iofur Raknison não era um homem.
E um homem naturalmente teria seu daemon, de modo que aquilo não fazia sentido.
Mas agora era óbvio. Somando tudo que ela havia ouvido sobre o urso-rei, o
resultado era: o poderoso Iofur Raknison desejava mais que tudo ser um humano e ter
seu próprio daemon.
E ao pensar isto veio-lhe um plano: um modo de fazer o que Iofur Raknison
normalmente jamais teria feito; um modo de conduzir Iorek Byrnison ao trono a que
tinha direito; um modo, em suma, de chegar ao lugar onde tinham aprisionado Lorde
Asriel e entregar-lhe o aletômetro.
Essa idéia esvoaçou e brilhou delicadamente, como uma bolha de sabão, e ela
temia encará-la de frente, para não destruí-la.
Mas estava familiarizada com todo tipo de idéias, e deixou-a rebrilhar, olhando
para outro lado e pensando em outra coisa.
Estava quase dormindo quando os ferrolhos foram corridos ruidosamente, e a
porta foi aberta. A luz jorrou para dentro, e ela se pôs de pé no mesmo instante, com
Pantalaimon escondido rapidamente no bolso.
Assim que o urso-guarda baixou a cabeça para levantar a posta de carne de foca
e jogá-la para dentro, ela estava ao lado dele, dizendo:
–Me leve a Iofur Raknison. Vai ter problemas se não fizer isso. É urgente.
Ele deixou a carne cair da boca e ergueu os olhos. Não era fácil ler a expressão
de um urso, mas ele parecia zangado.
–É sobre Iorek Byrnison – ela falou depressa. – Sei de uma coisa sobre ele, e o
rei precisa saber.
–Diga o que é e eu mando avisar- disse o urso.
–Isso não seria certo. Ninguém pode saber antes do rei – ela disse. – Sinto muito,
não quero ser grosseira, mas você sabe, a lei diz que o rei tem que ficar sabendo
primeiro.
Talvez ele fosse burro; de qualquer maneira, fez uma pausa e depois jogou a
carne dentro da cela antes de dizer:
– Está bem. Vem comigo.
Levou-a para o ar livre, o que a agradou muito. A névoa se dissipara, e estrelas
brilhavam acima do pátio cercado de muros altos. O guarda conferenciou com outro
urso, que veio falar com ela.
– Não pode falar com Iofur Raknison quando bem entender – disse. – Vai ter que
esperar até ele querer falar com você.
– Mas é urgente o que eu tenho para dizer a ele – ela argumentou. – É sobre
Iorek Byrnison. Tenho certeza de que Sua Majestade ia querer saber, mas ao mesmo
tempo não posso contar a outra pessoa, entende? Não seria apropriado. Ele ia ficar
furioso se soubesse que nós não agimos dentro da etiqueta. Aquilo tudo parecia fazer
sentido, ou então deixou o urso suficientemente confuso para obrigá-lo a raciocinar.
Lyra tinha certeza de que sua interpretação estava correta: Iofur Raknison estava
introduzindo tantas mudanças que nenhum dos ursos sabia como proceder, e ela
poderia explorar essa insegurança para chegar a Iofur.
Assim, o urso foi consultar o urso acima dele, e não demorou para que Lyra fosse
novamente levada para dentro do Palácio, mas desta vez para os aposentos reais.
Aquela parte era tão suja quanto a outra, e o ar era até mais irrespirável do que o da
cela, porque todos os fedores naturais estavam misturados a uma camada pesada de
perfume adocicado. Mandaram que ela esperasse no corredor, depois na ante-sala,
depois junto a uma porta enorme, enquanto ursos discutiam, debatiam e iam
apressados de um lado para outro. E ela teve tempo para olhar em volta e contemplar
a ridícula decoração: as paredes eram cobertas de trabalhos em gesso dourado,
algumas partes já descascando ou desmanchando-se por causa da umidade, e os
tapetes floridos estavam imundos.
Finalmente a porta enorme foi aberta por dentro. Um clarão de luz de meia dúzia
de candelabros, um tapete roxo e mais perfume adocicado pairando no ar; e as caras
de uma dezena de ursos, todos olhando para ela, nenhum deles de armadura, mas
todos com o mesmo tipo de enfeites: colar dourado, cocar de plumas roxas, uma faixa
carmim na cintura. Curiosamente, havia também pássaros no aposento: andorinhas-domar
e gaivotas rapineiras empoleiravam-se na sanca de gesso e mergulhavam para
bicar os pedaços de peixe que caíam do ninho dos outros pássaros nos candelabros. E
num tablado no extremo oposto do aposento, erguia-se um trono enorme. Era feito de
granito, para ser forte e maciço, mas como todas as coisas no palácio de Iofur , ele
era decorado com arabescos e festões dourados que pareciam purpurina numa
montanha.
Sentado no trono estava o maior urso que ela já vira. Iofur Raknison era mais alto
e mais corpulento até que Iorek, e sua cara era muito mais dinâmica e expressiva, com
uma espécie de humanidade que ela nunca tinha visto em Iorek. Quando Iofur olhou
para ela, era como se ela visse um homem olhando de dentro dos olhos dele, o tipo de
homem que ela conhecera na casa da Sra. Coulter – um político sutil, acostumado ao
poder.
Ele usava uma pesada corrente de ouro em volta do pescoço e nela um
penduricalho chamativo, e suas garras – com uns bons 20 centímetros cada uma –
eram folheadas a ouro. O efeito era de enorme força, energia e esperteza; ele era
suficientemente corpulento para carregar aquelas jóias de tamanho absurdo; nele elas
não pareciam ridículas, e sim bárbaras e magníficas.
Ela vacilou. De repente, sua idéia parecia tola demais.
Mas adiantou-se, pois era obrigada a isto, e então viu que Iofur segurava algo no
colo, como um ser humano seguraria um gato – ou o seu daemon.
Era uma grande boneca estufada, um manequim com rosto humano parado e
morto. Estava vestida como a Sra. Coulter gostava de se vestir, e se parecia um pouco
com ela. Iofur estava fingindo que tinha um daemon! Então Lyra viu que estava salva.
Ela se aproximou do trono e fez uma profunda mesura, com Pantalaimon quieto e
imóvel em seu bolso.
– Nossas saudações, grande Rei – ela disse em voz baixa.
– Quer dizer, minhas saudações, não as dele.
– Não as de quem? – Iofur perguntou.
Tinha a voz mais fina do que ela imaginara, mas cheia de sutilezas e tons
expressivos. Enquanto falava, ele balançava a mão diante da boca para espantar as
moscas que se juntavam ali.
– De Iorek Byrnison, Majestade. Tenho Uma coisa muito importante e secreta
para lhe contar, e acho que, na verdade, devia fazer isso em particular.
– É alguma coisa sobre Iorek Byrnison?
Ela se aproximou, pisando cuidadosamente no chão coberto de sujeira de
pássaros, e afastou as moscas que zumbiam junto ao seu rosto.
– Alguma coisa sobre daemons- disse, para que apenas ele ouvisse.
A cara dele mudou de expressão. Ela não conseguiu decifrar a nova expressão,
mas não havia dúvida de que ele estava imensamente interessado. De repente, ele
inclinou- se para a frente, fazendo com que ela saltasse de lado, e rugiu uma ordem
para os outros ursos. Todos eles fizeram uma mesura e recuaram em direção à porta.
Os pássaros, que tinham se alvoroçado com o rugido, piavam e voavam baixo antes de
se acomodarem novamente em seus ninhos.
Quando só ficaram Iofur Raknison e Lyra na sala do trono, ele voltou-se
ansiosamente para ela.
– Então? Diga quem é você. Que história é essa de daemons?
– Eu sou um daemon, Majestade – ela disse.
Ele ficou imóvel.
– De quem? – quis saber.
– De Iorek Byrnison.
Foi a coisa mais perigosa que ela já falara na vida. Via claramente que só o
espanto dele o impedia de matá-la ali mesmo. Então apressou-se a continuar.
– Por favor, Majestade, deixe-me contar tudo primeiro, antes de me matar. Vim
até aqui correndo perigo, como o senhor bem sabe, e nada do que eu tenho a dizer
poderia prejudicá-lo. Aliás, eu quero é ajudar, e foi por isso que vim. Iorek Byrnison foi
o primeiro urso a conseguir um daemon, mas devia ter sido o senhor. Eu prefiro muito
mais ser seu daemon do que dele, por isso eu vim.
– Como? – ele perguntou ofegante. – Como é que um urso consegue um
daemon? E por que ele? E como é que você consegue ficar tão longe dele?
As moscas caíam da boca do urso como minúsculas palavras.
– Isto é fácil. Eu posso me afastar dele porque sou como os daemons das
bruxas. Sabe que eles podem se afastar centenas de quilômetros de seus humanos?
Pois é a mesma coisa. E ele me conseguiu em Bolvangar. O senhor já deve ter ouvido
falar em Bolvangar, porque a Sra. Coulter deve ter-lhe falado disso, mas ela
provavelmente não lhe contou tudo que eles faziam lá.
– Cortavam...
– Sim, a intercisão; isso é uma parte. Mas eles faziam muitas outras coisas lá,
como por exemplo implantes de daemons. E experiências com animais. Quando Iorek
Byrnison soube disso, ofereceu-se para uma experiência, para ver se conseguiam fazer
um daemon para ele. Eles conseguiram, e o daemon sou eu. Meu nome é Lyra. Os
daemons dos humanos têm forma de animais, portanto, o daemon de um urso tem
forma humana. E eu sou o daemon dele. Posso ler a mente dele e saber exatamente o
que ele está fazendo, onde está e...
– Onde é que ele está?
– Em Svalbard. Está vindo para cá o mais rápido possível.
– Por quê? Que é que ele quer? Deve estar louco! Vão acabar com ele.
– Ele quer a mim, está vindo me buscar. Mas não quero ser daemon dele, Iofur
Raknison, quero ser sua. Porque, depois que eles viram como fica poderoso um urso
com daemon, o pessoal em Bolvangar resolveu não repetir a experiência. Iorek
Byrnison é o único urso a ter daemon. Com a minha ajuda, ele poderia levantar todos
os ursos contra o senhor. É para isso que ele vem a Svalbard.
O urso-rei rugiu de ódio. O rugido foi tão alto que os lustres de cristal tilintaram,
todos os pássaros no grande salão piaram e os ouvidos de Lyra zumbiram.
Mas ela conseguiu se sair bem.
– É por isso que gosto mais do senhor – disse a Iofur Raknison. – Porque o
senhor é entusiasmado, forte e inteligente também. Eu tinha que abandonar Iorek
Byrnison e vir lhe contar, porque não quero que ele governe os ursos. Tem que ser o
senhor. E existe um modo de me tirar dele e me fazer seu daemon, mas o senhor não
sabe disso e, se não for avisado, pode fazer com ele o que costuma fazer com ursos
renegados; quer dizer, não lutar com ele, mas matar com lançadores de fogo ou coisa
assim. E se fizesse isso, eu ia apagar como uma luz, e morreria com ele.
– Mas você... Como é que...
– Eu posso realmente me tornar seu daemon, mas só se o senhor derrotar Iorek
Byrnison numa luta dos dois. Então a força dele vai passar para o senhor, e a minha
mente vai fluir para dentro da sua, e seremos como uma pessoa, pensando os
pensamentos um do outro; e o senhor vai poder me mandar a qualquer lugar E eu ia
ajudar a chefiar os ursos para capturar Bolvangar, se o senhor quiser, e obrigar que
eles façam mais daemons para os seus ursos favoritos; ou, se preferir ser o único urso
com daemon, poderíamos destruir Bolvangar para sempre. Nós dois juntos, Iofur
Raknison, poderíamos fazer qualquer coisa!
Durante todo o tempo, ela segurava Pantalaimon no bolso com a mão trêmula, e
ele estava o mais imóvel possível na menor forma de rato que conseguia assumir.
Iofur Raknison andava de um lado para outro com ar de explosiva excitação.
– Uma luta de nós dois? – dizia. – Eu tenho que lutar com Iorek Byrnison?
Impossível! Ele é um renegado! Como pode ser isso? Como é que posso lutar com
ele? É a única maneira?
– É a única maneira – Lyra ecoou.
Ela queria que não fosse, porque Iofur Raknison parecia maior e mais feroz a
cada minuto. Por maior que fosse o seu afeto por Iorek e por mais forte que fosse sua
confiança nele, ela não conseguia acreditar que ele derrotasse este gigante entre
gigantes.
Mas era a única esperança que eles tinham; ser destruído à distância por
lançadores de fogo não era uma esperança.
Iofur Raknison virou-se de repente.
– Então prove! Prove que você é uma daemon!
– Está bem – disse ela. – Posso fazer isso, é fácil. Posso descobrir alguma coisa
que o senhor sabe e ninguém mais; qualquer coisa que só um daemon conseguiria
descobrir.
– Então me diga qual foi a primeira criatura que matei.
– Para isso vou ter que ficar sozinha. Quando eu for seu daemon, o senhor vai
poder ver como é que faço isso, mas até lá tem que ser segredo.
– Vá para a sala atrás desta aqui e volte quando souber a resposta.
Lyra abriu a porta e entrou num aposento iluminado por uma tocha e contendo
apenas um armário de mogno com enfeites de prata sujos. Ela tirou o aletômetro e
perguntou:
"Onde está Iorek agora?"
"A quatro horas de distância, e correndo mais ainda."
"Como é que posso dizer a ele o que eu fiz?"
"Tem que ter confiança nele."
Ela pensou ansiosamente no cansaço que ele certamente teria. Mas então refletiu
que não estava fazendo aquilo que o aletômetro acabava de lhe dizer: confiar nele.
Deixou de lado este pensamento e fez a pergunta que Iofur Raknison queria. Qual era a
primeira criatura que ele havia matado?
Veio a resposta: o próprio pai dele.
Ela fez outras perguntas e descobriu que quando jovem, em sua primeira
expedição de caça, Iofur estava sozinho no gelo quando encontrou um urso solitário. Os
dois discutiram e lutaram, e Iofur matou o outro. Mais tarde, quando soube que se
tratava de seu próprio pai (pois os ursos eram criados pelas mães e raramente viam os
pais), ele escondeu a verdade, portanto ninguém sabia disto além do próprio Iofur
Raknison.
Ela guardou o aletômetro, pensando em como lhe dizer isto.
– Com lisonja! – sussurrou Pantalaimon. – É só o que ele quer.
De modo que Lyra abriu a porta e encontrou Iofur Raknison esperando, com
expressão de triunfo, esperteza, apreensão e cobiça.
– E aí?
Ela ajoelhou-se diante dele e encostou a cabeça na pata dianteira esquerda dele,
pois todos os ursos eram canhotos.
– Peço o seu perdão, Iofur Raknison! Não sabia que era tão forte e grandioso!
– Que é isso? Responda a minha pergunta!
– A primeira criatura que o senhor matou foi o seu próprio pai. Acho que o senhor
é um novo deus, Iofur Raknison. Só pode ser. Só um deus teria poder para fazer isso.
– Você sabe! Consegue ver!
– Sim, porque eu sou um daemon.
– Diga-me mais uma coisa. Que foi que Lady Coulter me prometeu quando esteve
aqui?
Mais uma vez Lyra foi para a outra sala e consultou o aletômetro antes de voltar
com uma resposta.
– Ela lhe prometeu que ia fazer o Magisterium em Gênova concordar que o
senhor fosse batizado como cristão, mesmo não tendo daemon. Bem, infelizmente ela
não fez isso, Iofur Raknison, e para ser sincera acho que eles nunca concordarão se o
senhor não tiver daemon; acho que ela sabia disso e não lhe contou a verdade. Mas,
de qualquer maneira, quando o senhor me tiver como daemon, poderá ser batizado se
quiser, pois ninguém poderá ser contra. O senhor poderá exigir isso, e eles não vão
poder recusar.
– Sim... É verdade. Ela disse isso mesmo. É tudo verdade. E ela me enganou? Eu
confiei nela, e ela me enganou?
– Foi, sim. Mas ela não tem mais importância. Com sua licença, Iofur Raknison,
espero que não fique zangado por eu dizer isso, mas Iorek Byrnison está a quatro
horas daqui, e talvez fosse melhor o senhor dar ordens aos guardas para que não
ataquem ele. Se pretende lutar com ele, ele vai ter que chegar até o Palácio.
– É...
– E quando ele chegar, talvez seja melhor eu fingir que ainda pertenço a ele e que
me perdi. Ele não vai descobrir. Eu vou fingir. O senhor vai contar aos outros ursos que
eu sou daemon de Iorek e que vou pertencer ao senhor quando o senhor lutar com ele
e vencer?
– Não sei... Que é que devo fazer?
– Acho melhor não contar. Quando estivermos unidos, o senhor e eu, poderemos
pensar no que é melhor, e então chegar a uma decisão. Agora o que o senhor precisa
fazer é explicar a todos os outros ursos por que vai lutar com Iorek como se ele fosse
um urso comum, mesmo sendo um renegado. Porque eles não vão entender e temos
que inventar um motivo para isso. De qualquer maneira, eles vão obedecer, mas se
tiverem um motivo, vão admirar o senhor ainda mais.
– É. Que é que devemos dizer a eles?
– Diga...Diga a eles que para tornar seu reino inteiramente seguro o senhor
mesmo chamou Iorek Byrnison de volta para lutar com ele, e o vencedor vai governar
os ursos para sempre. Entenda: se disser que a idéia da vinda dele foi sua, eles vão
ficar mesmo impressionados. Vão pensar que o senhor consegue chamar Iorek de
longe. Vão pensar que o senhor consegue fazer qualquer coisa.
– É...
O grande urso estava domado; Lyra sentia o poder que tinha sobre ele quase
como uma embriaguez, e se Pantalaimon não tivesse mordiscado sua mão para
lembrar o perigo que todos corriam, ela poderia ter perdido o senso de proporção.
Mas voltou a ter bom senso e recuou um passo para observar e esperar enquanto
os ursos, sob as ordens excitadas de Iofur, preparavam o campo de combate para
Iorek Byrnison; e enquanto isso Iorek, sem saber de coisa alguma, aproximava-se
depressa daquilo que – ela gostaria de poder contar a ele – era um combate de vida ou
morte.

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