sábado, 18 de outubro de 2014

20- A Outrance

Lutas entre ursos eram comuns e ocasiões de grandes rituais. Porém era
raro um urso matar outro urso, e, quando isso acontecia, em geral era por
acidente, ou quando um urso interpretava mal os sinais de outro, como foi o caso
de Iorek Byrnison. Casos de assassinato, como aconteceu com Iofur, que matou o
próprio pai, eram ainda mais raros.
Mas ocasionalmente surgiam circunstâncias em que a única maneira de
resolver uma disputa era através de um combate mortal. E para isso havia todo um
cerimonial.
Assim que Iofur anunciou que Iorek Byrnison estava a caminho e haveria um
confronto, o campo de combate foi varrido e alisado, e fabricantes de armaduras
vieram das minas de fogo para verificar a armadura de Iofur. Cada pino foi examinado,
cada elo foi testado, e as placas foram polidas com a areia mais fina. A mesma
atenção foi dada às garras de Iofur; a folha de ouro foi raspada, e cada garra – com
quase 20 centímetros - foi afiada e afilada até se tornar uma arma mortal. Lyra
observava tudo com uma crescente sensação de náusea na boca do estômago, pois
Iorek Byrnison não receberia todos esses cuidados. Ele vinha marchando sobre o gelo
cerca de 24 horas, sem alimento ou descanso; podia ter-se ferido na queda do balão.
E ela havia preparado essa luta para ele sem que ele soubesse! Em dado momento,
depois que Iofur Raknison testou o potencial das suas garras num leão-marinho recémabatido
cortando-lhe a pele como se fosse papel, e a força de seus murros no crânio
do animal (com dois murros, ele o rachou como se fosse um ovo) , Lyra teve que
inventar uma desculpa e pedir licença a Iofur para ir chorar de medo.
Até Pantalaimon, que normalmente conseguia alegrá-la, pouco tinha a dizer de
otimista. Tudo que ela podia fazer era consultar o aletômetro, que lhe disse que Iorek
estava a uma hora de lá e repetiu que ela devia confiar nele; deu-lhe também (e isto foi
mais difícil de decifrar) uma repreensão por fazer duas vezes a mesma pergunta.
A esta altura, a notícia tinha se espalhado entre os ursos, e o campo de combate
estava apinhado. Os ursos de posição mais elevada ocupavam os melhores lugares, e
havia um local especial para as ursas – inclusive as esposas de Iofur, naturalmente.
Lyra tinha uma curiosidade enorme a respeito das ursas, pois sabia muito pouco sobre
elas, mas esta não era hora de ficar por ali fazendo perguntas. Em vez disso, ela ficou
perto de Iofur Raknison e observou os cortesãos em volta dele exibindo sua posição
acima dos ursos comuns; ela tentou adivinhar o significado das variadas plumas,
medalhas e comendas que todos pareciam usar.
Lyra percebeu que alguns dos mais graduados levavam pequenos bonecos, como
a boneca de trapos de Iofur, talvez para lisonjeá-lo imitando um hábito que ele iniciara.
A menina ficou satisfeita quando percebeu que, ao verem que Iofur não estava usando
o seu boneco, eles ficaram sem saber o que fazer com os deles. Deveriam jogar fora?
Os bonecos estavam proscritos?
Como deveriam agir?
Pois ela começava a constatar que aquele era o estado de espírito reinante na
corte: eles não tinham certeza daquilo que eram. Não eram como Iorek Byrnison,
puros, seguros e absolutos; havia uma eterna mortalha de insegurança envolvendo
todos eles, enquanto observavam uns aos outros e observavam Iofur.
E observavam Lyra, também, com evidente curiosidade. Ela permanecia
discretamente ao lado de Iofur, sem nada dizer, baixando os olhos sempre que um urso
olhava para ela.
A esta altura, a névoa se dissipara e o ar estava claro; e, por um capricho da
sorte, o breve intervalo de claridade por volta do meio-dia coincidiu com a hora que
Lyra achava que Iorek ia chegar. Tremendo, parada num montinho de neve na borda do
campo de combate, ela ergueu os olhos para a leve claridade no céu e desejou com
todo o coração avistar uma esquadrilha de vultos negros e elegantes descendo para
levá-la, ou a cidade escondida da Aurora Boreal, onde ela poderia andar em segurança
pelas largas avenidas à luz do sol, ou ainda os braços generosos de Mãe Costa, sentir
o cheiro amigo de carne e comida que envolviam Lyra na presença dela...
Quando Lyra deu por si, estava chorando, vertendo lágrimas que congelavam
quase instantaneamente e que ela arrancava do rosto dolorosamente. Estava com
muito medo. Os ursos, que não choravam, não conseguiam entender o que estava
acontecendo com ela; achavam que era um processo humano qualquer, sem
significado. E naturalmente Pantalaimon não podia consolar Lyra como costumava
fazer, embora ela mantivesse a mão no bolso segurando com firmeza o pequeno
ratinho; ele, por sua vez, acariciava os dedos dela com o focinho.
Perto dela, os ferreiros estavam fazendo os ajustes finais na armadura de Iofur
Raknison. Coberto de aço polido, as placas lisas enfeitadas com fios de ouro
incrustrados, ele parecia uma grande torre de metal brilhante; o elmo cobria a parte
superior da cabeça numa cintilante carapuça cinza-prateada, com fendas na altura dos
olhos, e a parte inferior do corpo era protegida por um saiote de malha de metal bem
ajustado. Foi quando viu isso que Lyra tomou consciência de que tinha traído Iorek
Byrnison, pois Iorek não possuía nenhuma dessas coisas: a armadura dele só protegia
as costas e os lados. Ela olhou para Iofur Raknison, tão dinâmico e poderoso, e sentiu
uma dor profunda, como uma mistura de culpa e de medo. Disse então:
– Com licença, Majestade. O senhor se lembra do que eu lhe disse antes...
Sua voz trêmula soava fina e fraca. Iofur Raknison virou a cabeça poderosa,
tirando sua atenção do alvo que três ursos estavam segurando na sua frente para que
ele o rasgasse com suas garras mortais.
– Que é? Que é?
– Lembra-se, eu disse que era melhor eu ir falar com Iorek Byrnison primeiro, e
fingir que...
Mas antes que ela conseguisse terminar a frase, houve um alvoroço dos ursos na
torre de vigia. Os outros todos, sabendo de que se tratava aquilo, manifestaram
também sua triunfante excitação.
Tinham avistado Iorek.
– Por favor? – disse Lyra em desespero. – Eu consigo enganar ele, o senhor vai
ver.
– Certo, certo. Vá. E encoraje ele!
Iofur Raknison mal conseguia falar de tanta raiva e excitação.
Lyra afastou-se dele e atravessou o campo de combate vazio e deserto, deixando
suas pequenas pegadas na neve; e os ursos do outro lado abriram caminho para que
ela passasse. A medida que os corpanzis se afastavam, o horizonte se abria, escuro na
palidez da luz do dia. Onde estava Iorek Byrnison? Ela não conseguia enxergar; mas a
torre de vigia era alta, e eles conseguiam ver coisas que ela ainda não podia ver. Tudo
que ela podia fazer era avançar caminhando pela neve.
Ele viu Lyra antes que ela o visse; com um ruído forte de metal e uma chuva de
neve, Iorek Byrnison estava ao seu lado.
– Ah, Iorek! Eu fiz uma coisa horrível! Meu amigo, você vai ter que lutar com Iofur
Raknison, e não está preparado! Está cansado e faminto, e a sua armadura...
– Que coisa horrível você fez?
– Contei a ele que você estava chegando, porque li isso no leitor de símbolos, e
ele está desesperado para ser como uma pessoa e ter um daemon, desesperado.
Então enganei ele, dizendo que sou seu daemon e que ia abandonar você para ser
dele, mas para isso acontecer ele teria que lutar com você. Porque, senão, meu
querido Iorek, eles nunca iriam deixar você lutar, iam botar fogo em você antes de você
chegar perto...
– Você enganou Iofur Raknison?
– Foi. Fiz ele concordar em lutar em vez de matar você como um renegado, e o
vencedor vai ser rei dos ursos. Tive que fazer isso, porque...
– Lyra Belacqua? Não, você é Lyra da Língua Mágica - ele declarou. – Tudo que
eu quero é lutar com ele. Vamos lá, querido daemon.
Ela contemplou Iorek Byrnison em sua armadura marcada pelo tempo, alto e
feroz, e sentiu que o coração ia explodir de orgulho.
Caminharam lado a lado em direção ao palácio de Iofur, onde o campo de
combate estendia-se no sopé da muralha. Os ursos ocupavam as ameias, rostos
pálidos enchiam todas as janelas, e os corpos pesados formavam uma densa parede
branca, marcada de pontinhos pretos de olhos e focinhos. Os mais próximos
afastaram-se para um lado, formando duas filas, entre as quais Iorek Byrnison e seu
daemon passaram. Os olhos de todos os ursos estavam fixos neles.
Iorek parou na borda do campo de combate; na borda oposta estava Iofur
Raknison. O rei desceu do monte de neve e os dois se encararam a poucos metros de
distância.
Lyra estava tão perto de Iorek que conseguia sentir um tremor dentro dele, como
um grande dínamo gerando poderosa energia anbárica. Ela tocou de leve no pescoço
dele, na borda do elmo, e disse:
– Boa luta, meu querido Iorek. Você é o verdadeiro rei, e ele não é. Ele não é
nada.
Então ela recuou.
– Ursos! – rugiu Iorek Byrnison. Das muralhas do palácio veio um eco, espantando
os pássaros de seus ninhos. – Eis os termos deste combate: se Iofur Raknison me
matar, ele será rei para sempre, livre de desafio ou disputa. Se eu matar Iofur
Raknison, serei o seu rei. Minha primeira ordem a todos vocês será derrubar este
palácio, esta casa perfumada de falsidade e purpurina, e jogar o ouro e o mármore no
mar. O metal do urso é o ferro. Não é ouro. Iofur Raknison poluiu Svalbard. Eu vim para
purificá-la. Iofur Raknison, eu desafio você!
Então Iofur aproximou-se alguns passos, como se mal conseguisse se controlar.
– Ursos! – rugiu por sua vez. – Iorek Byrnison voltou a meu convite. Eu o atraí
para cá. Sou eu quem tem que ditar os termos do combate, que são: se eu matar Iorek
Byrnison, a carne dele será retalhada e servida aos avantesmas-dos-penhascos. A
cabeça vai ficar exposta em cima do meu palácio. A memória dele será obliterada.
Será crime grave falar o nome dele...
Ele prosseguiu, e depois cada um dos dois tornou a falar.
Era uma fórmula, um ritual fielmente obedecido. Lyra olhava para os dois, tão
diferentes: Iofur tão brilhante e poderoso, imenso em sua força e saúde, em sua
armadura esplêndida, orgulhoso e fidalgo; e Iorek, menor – embora ela nunca tivesse
imaginado que ele um dia ia parecer pequeno – e mal-equipado, a armadura amassada
e enferrujada. Mas a armadura dele era a sua alma; ele a tinha fabricado, e ela lhe
servia perfeitamente. Ambos eram uma coisa só. Iofur não estava contente com a sua
armadura; ele queria também outra alma. Estava inquieto, ao passo que Iorek estava
imóvel.E ela estava consciente de que todos os outros ursos também faziam essa
comparação. Mas Iorek e Iofur eram mais do que apenas dois ursos: eram dois tipos
de vida, dois futuros, dois destinos. Iofur tinha começado a levá-los numa direção, e
Iorek iria levá-los em outra, e no mesmo instante em que um futuro morria, outro
começaria a existir.
Enquanto o ritual do combate caminhava rumo à segunda fase, os dois
começaram a dar passos inquietos na neve, aproximando-se aos poucos, balançando a
cabeça. Entre os espectadores não havia o menor movimento, mas todos os olhos
seguiam os dois.
Finalmente os combatentes ficaram imóveis e silenciosos, observando-se de
frente através da largura do campo de combate.
Então, com um rugido e uma chuva de neve, ambos os ursos avançaram no
mesmo momento. Como duas grandes massas de pedra, equilibradas em picos
vizinhos e soltas por um terremoto, que rolam as encostas reunindo velocidade,
saltando acima de abismos e reduzindo árvores a gravetos até colidirem uma com a
outra com tanta força que ambas são esmigalhadas, transformando-se em pó e lascas
de pedra – foi assim o encontro dos dois ursos. O estrondo ressoou no ar e voltou
como eco. Mas eles não foram destruídos como aconteceria com a pedra; ambos
caíram de lado, e o primeiro a levantar-se foi Iorek. Ele girou e agarrou-se a Iofur, cuja
armadura sofrera danos na colisão e que não conseguia levantar a cabeça com
facilidade. Iorek foi direto ao ponto vulnerável no pescoço do outro, passou as garras
pela pele branca e então fincou-as debaixo da borda do elmo de Iofur e puxou-o para a
frente. Sentindo o perigo, Iofur rosnou e sacudiu-se como Lyra tinha visto Iorek sacudirse
na beira d' água, enviando lençóis de água para o alto; Iorek caiu longe, e com um
horrível guinchar de metal retorcido, Iofur ficou ereto, esticando o aço das placas das
costas apenas com sua força bruta. Então, como uma avalanche, ele se jogou sobre
Iorek, que ainda tentava levantar-se.
Lyra sentiu-se sem fôlego com a força da queda. Certamente o chão estremeceu
sob ela. Como Iorek poderia sobreviver a isto? Ele estava lutando para girar o corpo e
conseguir fincar os pés no chão, mas estava com os pés para cima e Iofur tinha enfiado
os dentes em algum lugar perto da garganta de Iorek. Pingos de sangue quente
voavam pelo ar: um deles caiu no casaco de Lyra, e ela apertou-o na mão como um
sinal de amor.
Então Iorek enfiou as patas traseiras nos elos do saiote de Iofur e puxou,
rasgando-o; a frente inteira caiu, e Iofur jogou-se para um lado para examinar o
estrago, permitindo que Iorek ficasse de pé.
Por um instante os dois ursos ficaram afastados, recuperando o fôlego. Iofur
agora tinha a malha de aço para atrapalhar, pois em vez de proteção ela se
transformara num obstáculo; ainda estava presa a ele, e era arrastada pelo chão entre
as pernas dele.
No entanto Iorek estava em pior situação: sangrava muito pela ferida no pescoço
e ofegava intensamente.
Mas saltou sobre Iofur antes que o rei conseguisse se desvencilhar do saiote de
malha de aço, e derrubou-o numa cambalhota, atacando em seguida a parte nua do
pescoço onde a borda do elmo estava empenada. Iofur jogou-o longe, e então os dois
colidiram outra vez, jogando para o alto esguichos de neve que voavam em todas as
direções e às vezes tornavam difícil ver quem estava vencendo.
Lyra assistia, mal ousando respirar e apertando as mãos com tanta força que
chegavam a doer. Ela pensou ter visto Iofur abrindo um buraco na barriga de Iorek,
mas isto não devia ser real, porque logo em seguida, depois de outra explosão de
neve, os dois ursos estavam de pé nas patas traseiras como dois boxeadores, e Iorek
tentava arranhar o rosto de Iofur com suas garras poderosas, enquanto Iofur atacava
de volta com a mesma selvageria.
Lyra estremecia a cada golpe. Como se um gigante estivesse girando um martelo,
e esse martelo tivesse cinco pinos de aço... Ferro batia em ferro, dente batia em
dente, respirações ofegavam, pés trovejavam na neve revolta e suja de sangue,
formando uma espécie de lama vermelha.
A esta altura, a armadura de Iofur estava em estado lastimável, as placas
rasgadas e empenadas, as incrustações de ouro arrancadas ou cobertas de sangue, e
o capacete fora arrancado. A armadura de Iorek estava em melhores condições,
apesar de sua feiúra: amassada, porém intacta, suportando os murros possantes do
urso-rei e desviando aquelas garras brutais.
Por outro lado, Iofur era maior e mais forte que Iorek, que estava cansado e
faminto e que tinha perdido mais sangue. Ele estava ferido na barriga, em ambos os
braços e no pescoço, ao passo que Iofur sangrava somente na mandíbula. Lyra daria
tudo para ajudar seu querido amigo, mas nada podia fazer.
E as coisas agora estavam ruins para Iorek. Ele estava mancando; cada vez que
colocava a pata dianteira esquerda no chão, percebia-se que ela não agüentava o peso
dele. Nunca a usava para atacar, e os golpes de sua mão direita também eram bem
fracos, comparados aos murros poderosos que ele dera poucos minutos antes.
Iofur havia percebido isso e começou a provocar Iorek, chamando-o de mãoquebrada,
filhote desmamado, enferrujado, candidato a morto e outras coisas,
enquanto o atacava por todos os lados com socos que Iorek não conseguia evitar.
Iorek teve que recuar, um passo de cada vez, e agachar-se sob a chuva de murros do
sarcástico urso-rei.
Lyra chorava. O seu querido, o seu amigo corajoso, o seu defensor destemido
estava prestes a morrer, e ela não ia lhe fazer a traição de não assistir, pois, se ele
olhasse para ela, tinha que ver olhos brilhantes de amor e confiança, não um rosto
escondido covardemente ou costas voltadas para ele por medo.
De modo que ela ficou assistindo, mas as lágrimas não deixavam que ela
enxergasse o que estava realmente acontecendo; talvez fosse mesmo algo impossível
de ver. Iofur certamente não enxergava.
Porque Iorek estava recuando apenas para encontrar solo firme e seco e uma
rocha sobre a qual se apoiar, e o inútil braço esquerdo estava, na verdade, forte e
apto.
Não se pode enganar um urso; porém, como Lyra lhe mostrara, Iofur não queria
ser um urso, queria ser um homem, e Iorek estava conseguindo enganá-lo.
Finalmente ele encontrou o que procurava: uma pedra firmemente ancorada na
terra. Encostou-se nela, tensionando as pernas e esperando a ocasião.
Que chegou quando Iofur ergueu-se na frente dele, urrando sua vitória e virando a
cabeça, provocantemente, para o lado esquerdo de Iorek, aparentemente o lado mais
fraco.
Foi então que Iorek atacou. Como uma onda que vem aumentando sua força
através de milhares de quilômetros de oceano e que causa pouca agitação em águas
profundas, mas que, quando chega ao raso, ergue-se no ar aterrorizando as pessoas,
antes de tombar sobre a terra com força irresistível- assim Iorek Byrnison ergueu-se
contra Iofur, explodindo para o alto em cima dos pés plantados na rocha seca e
dilacerando com um feroz movimento da mão esquerda o queixo desprotegido de Iofur
Raknison.
Foi um golpe terrível, que arrancou a parte inferior da mandíbula, a qual voou pelo
ar espalhando respingos de sangue pela neve a muitos metros de distância.
A língua vermelha de Iofur ficou pendurada sobre a garganta exposta. O urso-rei,
de repente, perdera os dentes, a voz, a luta.
Iorek não precisava de mais nada; avançando, enfiou os dentes na garganta de
Iofur e sacudiu-se de um lado para outro, erguendo do solo o corpo enorme e batendo
com ele no chão como se Iofur fosse uma foca na beira d'água.
Então fez força para cima, e a vida de Iofur Raknison esvaiu-se entre seus
dentes.
Havia ainda um ritual a ser cumprido. Iorek abriu o peito desprotegido do rei
morto, arrancando a pele para expor as costelas estreitas, brancas e vermelhas, como
o arcabouço de um barco virado; enfiou a mão entre as costelas, arrancou o coração
de Iofur – vermelho, soltando vapor – e comeu-o ali mesmo, na frente dos súditos de
Iofur. Houve então aclamações, alvoroço, pandemônio, os ursos avançando em massa
para homenagear o matador de Iofur. A voz de Iorek Byrnison ergueu-se acima do
clamor:
– Ursos! Quem é o seu rei?
E o brado retornou num rugido, como se fosse todos os seixos do mundo,
açoitados pelas ondas de uma tempestade no mar.
–Iorek Byrnison!
Os ursos sabiam o que tinham a fazer; cada enfeite, medalha e faixa foi jogado
fora e pisoteado com desprezo, para logo ser esquecido. Agora eram ursos de Iorek,
ursos de verdade, não semi-humanos inseguros, conscientes apenas de uma torturante
inferioridade. Correram para o Palácio e começaram a atirar grandes blocos de
mármore do alto das torres, soltando as pedras das ameias com suas mãos poderosas
e arremessando-as por cima dos rochedos para o ancoradouro centenas de metros
abaixo.
Iorek ignorou-os e soltou as placas da armadura para cuidar dos ferimentos;
antes, porém, que começasse, Lyra estava a seu lado, batendo com os pés na neve
vermelha e gritando para os ursos pararem de destruir o Palácio, pois havia prisioneiros
lá dentro. Eles não ouviram, mas Iorek sim, e quando ele rugiu, eles pararam no
mesmo instante.
– Prisioneiros humanos? – ele quis saber.
– É, sim, que Iofur Raknison botou nas masmorras. Eles têm que sair e se abrigar
em algum lugar, senão vão morrer nas ruínas do palácio...
Iorek deu ordens rápidas e alguns ursos correram para dentro do Palácio para
soltar os prisioneiros. Lyra virou-se para Iorek.
– Deixe que eu cuido de você, quero ter certeza de que não está muito ferido,
meu querido Iorek, ah, eu queria ter uns curativos ou coisa assim! Este corte na barriga
está horrível...
Um urso colocou no chão, aos pés de Iorek, um bocado de massa verde rígida,
congelada.
– Musgo-de-sangue – Iorek explicou. – Enfie isto dentro das feridas, Lyra. Cubra
com a pele e então segure um pouco de neve em cima até a massa congelar.
Ele não deixou que os ursos cuidassem dele, apesar da ansiedade deles; as
mãos de Lyra eram hábeis, e ela estava desesperada para ajudar. Assim, a garotinha
inclinou- se sobre o grande urso-rei, enfiando o musgo-de-sangue, puxando a pele por
cima e congelando o ferimento até parar de sangrar. Quando terminou, tinha as luvas
empapadas de sangue de Iorek, mas os ferimentos estavam tratados.
E, a essa altura, os prisioneiros tinham saído, num grupo de cerca de uma dúzia
de homens tremendo e piscando muito.
Lyra achou que não havia motivo para falar com o Professor, pois ele estava
louco; ela gostaria de saber quem eram os outros homens, mas havia muitas coisas
urgentes a fazer. E não queria distrair Iorek, que dava ordens breves que enviavam
ursos correndo para todos os lados, mas ela estava preocupada com Roger, Lee
Scoresby e as bruxas, estava com fome e cansada... Achou que a melhor coisa a fazer
naquele momento era ficar fora do caminho.
Assim, enrodilhou-se num canto sossegado do campo de combate, com
Pantalaimon como filhote de lobo para aquecê-la, e empilhou neve em cima de si como
um urso faria; e adormeceu.
Alguma coisa cutucou-lhe o pé, e uma voz de urso desconhecida disse:
– Lyra da Língua Mágica, o rei quer falar com você.
Ela acordou quase congelada e não conseguiu abrir os olhos, pois as pálpebras
tinham endurecido de frio; porém Pantalaimon lambeu-as para derreter o gelo dos
cílios, e ela logo conseguiu ver à luz da lua o jovem urso que havia falado. Tentou ficar
de pé, mas caiu por duas vezes. O urso ofereceu:
– Suba em mim.
E agachou-se para oferecer as costas largas; pendurada, quase caindo, ela
conseguiu ficar montada enquanto ele a levava para um vale profundo onde muitos
ursos estavam reunidos.
E entre eles havia uma figurinha que correu para ela e cujo daemon deu um salto
para saudar Pantalaimon.
– Roger! – ela gritou.
– Iorek Byrnison me fez ficar aqui fora na neve enquanto vinha buscar você. Nós
caímos do balão, Lyra! Depois que você caiu, nós fomos carregados por muitos e
muitos quilômetros, e então o Sr. Scoresby esvaziou mais um pouco o balão e nós
batemos numa montanha e caímos por uma ladeira como nunca se viu. Não sei onde o
Sr. Scoresby foi parar, nem as bruxas. Só eu e Iorek Byrnison. Ele veio direto para cá,
procurando você. E aqui me falaram do combate...
Lyra olhou em volta. Sob a direção de um urso mais velho, os prisioneiros
humanos estavam construindo um abrigo de madeira e retalhos de lona. Pareciam
felizes em ter um trabalho a fazer. Um deles batia numa pederneira para acender o
fogo.
– Temos comida – disse o jovem urso que havia despertado Lyra. Uma foca
recém-abatida estava sobre a neve. O urso abriu-a com uma garra e mostrou a Lyra
onde encontrar os rins. Ela comeu um deles, cru: era quente, macio e mais delicioso do
que se poderia imaginar.
– Coma a gordura também – disse o urso, arrancando um pedaço para ela. Tinha
sabor de creme temperado com avelãs.
Roger hesitou, mas seguiu o exemplo dela. Os dois comeram gulosamente, e, em
poucos minutos, Lyra estava inteiramente acordada e começando a sentir calor.
Limpando a boca, ela olhou em volta, mas Iorek Byrnison não estava à vista.
– Iorek Byrnison está conversando com seus conselheiros – informou o jovem
urso. Quer falar com você depois que você tiver se alimentado. Siga-me.
Ele os levou por cima de uma elevação na neve até um lugar onde os ursos
estavam começando a construir uma parede de blocos de gelo. Iorek estava sentado
no centro de um grupo de ursos mais velhos, e levantou-se para cumprimentá-la.
– Lyra da Língua Mágica, venha ouvir o que estão me dizendo – chamou.
Não explicou a presença dela aos outros ursos, ou talvez eles já soubessem
sobre ela; mas deram-lhe um lugar e trataram-na com imensa cortesia, como se ela
fosse uma rainha. Ela sentiu um orgulho desmedido de sentar-se ao lado de seu amigo
Iorek Byrnison, sob a Aurora Boreal que cintilava graciosamente no céu polar, e juntarse
à conversa dos ursos.
O que acontecia era que o domínio de Iofur Raknison sobre eles tinha sido como
um feitiço; alguns culpavam a influência da Sra. Coulter, que visitara Iofur e lhe dera
muitos presentes, antes até do exílio de Iorek, embora este não soubesse disso. Um
dos ursos contou:
– Ela deu a Iofur Raknison uma droga para dar a Hjalmur Hjalmurson para que ele
ficasse louco.
Lyra calculou que Hjalmur Hjalmurson era o urso que Iorek tinha matado e por
causa disto sido exilado. Então a Sra.Coulter estava por trás daquilo também! E havia
mais:
– Existem leis humanas proibindo certas coisas que ela planejava fazer, mas as
leis humanas não vigoram em Svalbard. Ela queria montar aqui outra estação como
Bolvangar, só que pior, e Iofur ia permitir isso, contra todos os costumes dos ursos;
pois já tivemos humanos nos visitando, ou prisioneiros, mas nunca morando ou
trabalhando aqui. Aos poucos, ela ia aumentar seu poder sobre Iofur Raknison e o dele
sobre nós, até virarmos escravos dela, fazendo tudo que ela ordenasse, e nosso único
dever ia ser tomar conta da abominação que ela ia criar...
Quem falava era um urso velho. Seu nome era Soren Eisarson, e ele era um
conselheiro que tinha sofrido muito sob as ordens de Iofur Raknison.
– Que é que ela está fazendo agora, Lyra? –Iorek Byrnison perguntou. – Quando
souber da morte de Iofur, quais serão os planos dela?
Lyra pegou o aletômetro. Estava escuro demais para enxergar, e Iorek pediu que
trouxessem luz.
– Que foi que aconteceu com o Sr. Scoresby e as bruxas?
– Lyra perguntou, enquanto esperavam.
– As bruxas foram atacadas por bruxas de outro clã. Não sei se eram aliadas dos
mutiladores de crianças, mas estavam patrulhando nossos céus em grande número e
atacaram durante a tempestade. Não vi o que aconteceu a Serafina Pekkala. Quanto a
Lee Scoresby, o balão tornou a subir depois que eu caí com o menino, e ele foi dentro.
Mas o seu leitor de símbolos vai lhe contar o destino deles.
Um urso chegou puxando um trenó no qual havia um tabuleiro cheio de carvão em
brasa, e jogou um galho resinoso dentro dele. O galho pegou fogo no mesmo instante,
e nesta luz Lyra girou os ponteiros do aletômetro e perguntou sobre Lee Scoresby.
Pela resposta, ele ainda estava no ar, levado pelos ventos em direção a Nova
Zembla, escapara ileso dos avantesmas-dos-penhascos e tinha lutado contra as bruxas
do outro clã. Lyra contou a Iorek, que assentiu, satisfeito.
– Se está no ar, está em segurança – disse. – E quanto à Sra. Coulter?
A resposta foi complicada, com o ponteiro indo de um símbolo a outro numa
seqüência que deixou Lyra pensando durante muito tempo. Os ursos estavam curiosos,
mas reprimidos pelo respeito por Iorek Byrnison e o dele por Lyra, enquanto ela os
esquecia e mergulhava no transe aletométrico.
A mensagem dos símbolos era desalentadora.
– Está dizendo que ela... Ela soube que estávamos voando para cá e conseguiu
um zepelim de transporte armado com metralhadoras, acho que é isto, e está voando
para Svalbard agora mesmo. Ela ainda não sabe que Iofur Raknison foi derrotado, é
claro, mas logo saberá, porque... Ah, sim, porque algumas bruxas vão ficar sabendo
pelos avantesmas-dos-penhascos e vão contar a ela. De modo que acho que há
espiões no ar por toda parte, Iorek.
Ela vinha para... para fingir ajudar Iofur Raknison, mas, na verdade, ia tomar o
poder dele com um exército de tártaros que está vindo por mar, eles chegarão em
poucos dias.
Ela fez uma pausa mas logo prosseguiu:
– E assim que puder ela vai até onde Lorde Asriel está preso e vai mandar matar
ele. Porque... Agora está ficando claro: uma coisa que eu nunca tinha entendido, Iorek!
É por isso que ela quer matar Lorde Asriel: porque ela sabe o que ele vai fazer e tem
medo, quer fazer ela mesma e obter o controle antes dele... Deve ser sobre a cidade
no céu, só pode ser! Ela está tentando chegar lá primeiro! E agora ele está dizendo
outra coisa...
Ela inclinou-se sobre o instrumento, concentrando-se furiosamente enquanto o
ponteiro ia de um lado para outro. Ele movia-se quase que depressa demais para a
vista: Roger, olhando por cima do ombro dela; nem conseguia ver o ponteiro parar, e
só percebia um diálogo rápido entre os dedos de Lyra movendo os ponteiros menores
e o ponteiro grande respondendo, uma linguagem tão extraordinária quanto a própria
Aurora Boreal.
Finalmente ela pousou o instrumento no colo e, pestanejando e suspirando, saiu
da profunda concentração.
– Sim, entendo o que ele está dizendo – afirmou. –Ela está de novo atrás de mim.
Quer alguma coisa que eu tenho, porque Lorde Asriel também quer. Precisam disso
para esse...Para essa experiência, seja lá o que for...
Ela se interrompeu para respirar profundamente. Alguma coisa a incomodava, e
ela não sabia o que era. Tinha certeza de que aquela coisa tão importante era o próprio
aletômetro, porque, afinal de contas, a Sra. Coulter tentara ficar com ele, e que mais
poderia ser? Porém, não era isso, pois o aletômetro tinha outra maneira de se referir a
si mesmo.
– Imagino que seja o aletômetro – disse, em tom de tristeza. – Foi o que eu
pensei o tempo todo. Tenho que entregar ele a Lorde Asriel antes que ela apareça. Se
ela pegar o aletômetro, todos nós morreremos. Ao dizer isto, ela se sentiu tão
cansada, tão exausta e triste, que morrer teria sido um alívio. Mas o exemplo de Iorek
Byrnison impedia que ela admitisse isto. Guardou o aletômetro e sentou-se de costas
retas.
– A que distância ela está? – Iorek perguntou.
– A poucas horas. Acho que é melhor levar o aletômetro para Lorde Asriel o mais
depressa possível.
– Vou com você – decidiu Iorek.
Ela não discutiu. Enquanto Iorek dava ordens e organizava um grupo armado para
acompanhá-los na parte final da viagem para o norte, Lyra ficou imóvel, poupando sua
energia; sentia que durante a última leitura alguma coisa se perdera nela. Fechou os
olhos e dormiu; mais tarde eles a acordaram, e puseram-se a caminho.

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