sexta-feira, 17 de outubro de 2014

20h12

Observo-os desaparecerem no corredor. Queria segui-los, mas estou com os pés grudados no
linóleo do piso, incapaz de mover as minhas pernas fantasmas. Só depois que os dois
desaparecem virando a parede do corredor é que me levanto e os sigo, mas eles já entraram
no elevador.
A esta altura, já descobri que não tenho nenhum poder sobrenatural. Não posso atravessar
as paredes nem mergulhar pelas escadarias. Só posso fazer as coisas que eu faria na vida real,
salvo pelo fato de que o que eu faço no meu mundo é invisível para qualquer outra pessoa.
Pelo menos é o que parece porque ninguém me olha quando abro as portas nem quando aperto
o botão do elevador. Posso tocar as coisas e até mexer nas maçanetas das portas, mas não
posso sentir nada nem ninguém. É como se eu estivesse vendo tudo de um aquário, o que não
faz sentido para mim, mas nada do que aconteceu hoje faz muito sentido.
Suponho que Kim e Adam tenham ido para a sala de espera para se unirem aos meus
familiares na vigília, mas quando chego, vejo que nem eles, nem minha família estão lá. Há um
amontoado de casacos e suéteres nas cadeiras e reconheço a jaqueta laranja fluorescente da
minha prima Heather. Ela mora no interior e gosta de fazer trilha, e alega que as cores neon
são necessárias como medida de segurança, para evitar que os caçadores bêbados a
confundam com um urso.
Olho de novo para o relógio pendurado na parede. Deve estar perto da hora do jantar.
Caminho pelos corredores até chegar à lanchonete, que tem o mesmo cheiro de fritura e de
legumes cozidos que qualquer outra lanchonete tem. Deixando de lado o cheiro enjoativo, vejo
que a lanchonete está cheia. As mesas estão abarrotadas de médicos, enfermeiras e de
residentes que parecem bem aflitos em seus aventais brancos e estetoscópios, estes últimos
tão brilhantes que se parecem com brinquedos. Todos comem pizza e purê de batatas
congeladas. Demoro um tempo para localizar a minha família que está espremida ao redor de
uma mesa. Vovó conversa com Heather. Vovô está completamente absorto em seu sanduíche
de peru.
Tia Kate e tia Diane estão num canto, sussurrando uma com a outra.
— Alguns cortes e ferimentos. Mas ele já foi liberado do hospital — diz tia Kate, e por um
momento, imagino que ela esteja falando de Teddy e fico tão entusiasmada que quase choro.
Mas então ouço ela dizer que não havia álcool no sangue dele, que o nosso carro saiu da pista
e entrou na frente do caminhão desse tal cara chamado sr. Dunlap, que disse que não teve
tempo de parar e então percebo que não é sobre Teddy que elas estão falando, mas sim sobre
o outro motorista.
— A polícia disse que provavelmente tenha sido a neve ou algum cervo que entrou na pista
e fez o carro deles entrar na contramão — prossegue a tia Kate. — E parece que esse tipo de
acidente é bastante comum. Com uma das partes nada de muito sério acontece e a outra sofre
ferimentos catastróficos — conclui ela.
Não sei se eu diria que “nada de muito sério” aconteceu com o sr. Dunlap, não importa qual
seja a gravidade dos seu ferimentos. Penso em como deve ter sido para ele acordar numa
terça-feira de manhã, pegar o caminhão para ir trabalhar em algum moinho ou talvez para
abastecer o estoque de algum supermercado ou ainda simplesmente para ir a uma lanchonete
pedir ovos fritos para o café da manhã. O sr. Dunlap, que provavelmente era uma pessoa feliz
ou talvez tivesse uma vida muito difícil, um homem casado, com filhos ou um solteirão. Mas
seja lá qual fosse a sua situação ou quem ele fosse naquela manhã, o sr. Dunlap não era mais a
mesma pessoa. Sua vida também mudou radicalmente. Se o que a minha tia disse for verdade,
e se ele de fato não foi o culpado pela batida, então o sr. Dunlap foi o que Kim chamaria de
“um pobre coitado” que estava no lugar errado e na hora errada. E por causa da má sorte do
sr. Dunlap e do seu caminhão, que estava na direção leste da Route 27 naquela manhã, duas
crianças estão sem os seus pais agora e pelo menos uma delas encontra-se em estado grave.
Como é que se pode conviver com isso? Por um momento, tenho a ilusão de que vou
melhorar e sair daqui e que irei até a casa do sr. Dunlap, para aliviar-lhe o peso dos ombros,
para assegurar-lhe de que ele não foi o culpado. Talvez nós possamos até nos tornar amigos.
É claro que provavelmente as coisas não funcionariam assim. Seria uma ocasião estranha e
triste. Além disso, para começo de conversa, ainda não tenho a menor ideia do que vou
decidir, nem como poderei determinar se fico ou não. Até que eu consiga descobrir o que
fazer, tenho de deixar as coisas nas mãos do destino, ou dos médicos, ou de quem quer que o
faça quando a pessoa que deve decidir está confusa demais até para escolher entre o elevador
ou as escadas.
E preciso do Adam. Vasculho a lanchonete com o olhar pela última vez, à procura dele e de
Kim, mas eles não estão aqui, então volto para as escadas e subo em direção à UTI.


Eu os encontro escondidos na ala de traumatologia, a muitos andares de distância da UTI.
Estão tentando agir com naturalidade enquanto testam as diversas portas das divisões que
armazenam os suprimentos. Quando finalmente conseguem destrancar uma delas, entram.
Tateiam em meio à escuridão à procura de um interruptor de luz. Odeio ter de cortar o barato
deles, mas o interruptor fica bem no corredor, onde os dois estavam.
— Não sei não se essas coisas funcionam fora dos filmes — Kim diz para Adam enquanto
corre as mãos pela parede.
— Toda ficção é baseada na realidade — afirma ele.
— Você não se parece muito com um médico — opina Kim.
— Pretendo me passar por um atendente de plantão. Ou talvez por um zelador.
— E por que um zelador entraria na UTI? — indaga Kim. Ela é o tipo de pessoa
extremamente apegada aos detalhes.
— Alguma lâmpada quebrada, talvez. Não sei. Mas é assim que vamos conseguir.
— Ainda não consigo entender por que você simplesmente não vai e conversa com a
família dela — pontua Kim, pragmática como sempre. — Tenho certeza de que os avós dela
explicariam para os médicos e eles conseguiriam fazer você entrar lá para vê-la.
Adam balança a cabeça.
— Sabe, quando a enfermeira ameaçou chamar o segurança, o primeiro pensamento que me
veio foi o de chamar os pais da Mia pra resolver isso. — Adam faz uma pausa e respira fundo
algumas vezes. — Toda hora esse pensamento me vem à cabeça, e sempre vem como se fosse
a primeira vez — explica ele com a voz rouca.
— Eu sei — diz Kim bem baixinho.
— De qualquer modo — continuou Adam, retomando a sua procura pelo interruptor de luz
—, não posso recorrer aos avós dela. Não posso colocar ainda mais peso sobre as costas
deles. Já estão carregando demais. Isso é uma coisa que tenho de resolver sozinho.
Na real, tenho certeza de que meus avós se sentiriam felizes por ajudar o Adam. Eles se
encontraram algumas vezes, e gostaram muito dele. No Natal, a vovó sempre se preocupa em
preparar um doce feito com calda de chocolate e xarope de ácer porque uma vez Adam
mencionou que gostava muito desse doce.
Mas sei que, às vezes, Adam precisa fazer as coisas de um jeito dramático. Ele adora tomar
grandes atitudes, como economizar a gorjeta das entregas de pizzas de duas semanas só para
me levar para assistir ao concerto de Yo-Yo Ma (em vez de simplesmente me convidar para
um encontro casual), e como decorar o peitoril da minha janela com flores todos os dias
durante uma semana inteira, quando eu peguei catapora.
Agora, vejo que ele está concentrado na nova tarefa que tem pela frente. Não sei ao certo o
que tem em mente, mas seja lá qual for o plano, sinto-me grata, pois foi isso que o tirou do
choque emocional em que o vi naquele corredor, do lado de fora da UTI. Já vi o Adam nesse
estado outras vezes, quando estava escrevendo alguma música nova ou tentando me convencer
a fazer alguma coisa que eu não queria — como acampar com ele — e nada, nada mesmo, nem
um meteorito atingindo a Terra, nem mesmo uma namorada na UTI seria capaz de dissuadi-lo.
E além do mais, é justamente o fato de a namorada estar na UTI que se faz necessária a
artimanha de Adam. E pelo que sei, esse é o truque mais antigo que existe, inspirado naquele
filme O fugitivo, ao qual mamãe e eu assistimos recentemente na TNT. Tenho lá as minhas
dúvidas se isso vai dar certo. E Kim também.
— Você não acha que aquela enfermeira pode reconhecer você? — pergunta ela. — Você
berrou com ela.
— Ela não vai me reconhecer se não me vir. Agora vejo por que você e a Mia são tão
parecidas. Vocês parecem duas Cassandras.
Adam nunca conheceu a sra. Schein, então ele não sabe que ao insinuar que Kim seja
pessimista, está comprando uma briga. Kim olha para ele com cara feia, mas depois vejo que
ela entrega os pontos.
— Talvez esse seu plano maluco pudesse até funcionar se conseguíssemos ver o que
estamos fazendo.
Ela remexe a bolsa e tira o celular que a mãe lhe deu e obriga que ela o carregue para onde
for, desde os dez anos — rastreador de crianças, como Kim chama o aparelho —, e da tela
acende um pequeno quadradinho de luz em meio à escuridão.
— Ah, agora vejo a garota brilhante de quem Mia gosta tanto de se gabar — diz Adam. Ele
também liga o seu celular e agora o espaço fica mais iluminado, embora por uma luz bem
fraca.
Infelizmente, a luz mostra que os dois estão num cubículo cheio de vassouras, um balde e
dois esfregões, mas não há nada parecido com o que Adam estava esperando. Se eu pudesse,
os avisaria de que o hospital tem vestiários onde médicos e enfermeiras guardam as roupas
que usam quando vêm da rua e onde eles podem se trocar, vestindo aqueles jalecos e
uniformes. A única vestimenta genérica e própria de um hospital que está disponível são
aquelas camisolas transparentes e constrangedoras que eles mandam os pacientes vestirem.
Talvez Adam pudesse vestir uma dessas e cruzar os corredores numa cadeira de rodas, sem
que ninguém percebesse, mas um disfarce como esse jamais o ajudaria a entrar na UTI.
— Merda! — exclama ele.
— Vamos continuar tentando — diz Kim, que de repente assume um papel semelhante ao de
uma animadora de torcida. — Esse hospital tem mais ou menos uns dez andares. Tenho certeza
de que deve haver por aqui outros armários destrancados.
Adam sentou-se no chão.
— Não. Você tem razão. Isso é ridículo. Precisamos bolar uma coisa melhor.
— Você pode fingir uma overdose ou alguma coisa do tipo, aí eles vão te mandar pra UTI
— sugere Kim.
— Estamos em Portland. O cara que chegar aqui com overdose e for levado para a sala de
emergência é um cara de sorte — afirma Adam. — Não, pensei em algo que distraia as
pessoas, sabe? Tipo soar o alarme de incêndio e aí todos os enfermeiros sairiam correndo.
— Acha mesmo que extintores de incêndio e enfermeiros em pânico vão fazer bem pra
Mia? — questiona Kim.
— Bem, não precisa ser exatamente isso, mas alguma coisa que desviasse a atenção deles
por um segundo para eu conseguir entrar de fininho.
— Logo vão descobrir e te expulsam de lá.
— Não ligo — rebate Adam. — Tudo o que preciso é de um segundo.
— Por quê? Digo, o que você vai conseguir fazer em um segundo?
Adam faz uma pausa. Seus olhos, que normalmente são uma mistura de cinza, castanho e
verde, de repente escurecem.
— Mostrar a ela que estou aqui. Que ainda há alguém aqui.
Depois disso, Kim não faz mais nenhuma pergunta. Os dois ficam sentados, em silêncio,
cada um perdido em seus próprios pensamentos, o que me faz lembrar de como Adam e eu
podemos ficar juntos, em silêncio, lado a lado, ainda que estejamos fazendo coisas diferentes.
Agora percebo que Adam e Kim são amigos, amigos de verdade. Não importa o que aconteça
agora. Pelo menos isso, eu consegui.
Depois de cinco minutos, Adam bate na própria testa.
— Claro! — exclama ele.
— O quê?
— Hora de ativar o Bat sinal.
— Ãh?
— Venha. Vou te mostrar.


***

Quando comecei a tocar violoncelo, papai ainda tocava bateria na sua banda, mas o ritmo
começou a diminuir alguns anos depois que Teddy nasceu. Porém, desde o começo, pude ver
que havia algo de diferente em tocar o meu tipo de música, algo além da surpresa dos meus
pais ao constatarem o meu gosto pela música clássica. Minha música era solitária. O que
quero dizer é que o papai podia martelar a bateria dele por algumas horas, sozinho, ou
escrever as suas canções também sozinho, à mesa da cozinha, produzindo notas estridentes no
seu violão gasto, mas ele sempre dizia que as músicas só ficavam prontas mesmo depois que
eram tocadas. E era isso que tornava todo o processo tão interessante.
Eu tocava, na maior parte do tempo era sozinha, comigo mesma no meu quarto. Mesmo
quando eu ensaiava com os universitários que me deram aula, exceto durante as lições,
geralmente eu tocava solos. E quando participava de um concerto ou de um recital, era
sozinha, no palco com o meu violoncelo e a plateia. E, diferentemente dos shows do papai em
que os fãs entusiasmados se jogavam no placo e depois eram arremessados em meio à
multidão, havia sempre uma barreira entre a mim e a plateia. Depois de um tempo, tocar assim
se tornou algo solitário. E meio chato também.
Então, durante a primavera do ano em que eu estava cursando a oitava série, decidi parar.
Planejei abandonar aos poucos, começando a diminuir o ritmo das minhas práticas obsessivas
e deixando de participar de recitais. Imaginei que se parasse de tocar aos poucos, quando eu
chegasse ao Ensino Médio, no outono seguinte, poderia começar tudo do zero, sem aquele
rótulo de “violoncelista”. E a partir de então, talvez eu pudesse escolher um outro instrumento,
violão ou baixo, ou quem sabe até a bateria. Além disso, como mamãe estava ocupada demais
com Teddy para notar a duração dos meus treinos e papai, abarrotado com seus planos de aula
e provas, imaginei que ninguém nem sequer perceberia que eu tinha parado de tocar até que
tudo já estivesse resolvido. Pelo menos foram essas as minhas conclusões. Mas a verdade é
que eu não conseguia parar de tocar o violoncelo, assim como não conseguia deixar de
respirar.
Acho que eu poderia ter parado de verdade, não fosse por Kim. Um dia, à tarde, eu a
convidei para ir ao centro da cidade comigo, depois da escola.
— Mas nem estamos no fim de semana. Você não tem que treinar? — perguntou ela
enquanto abria o armário.
— Posso pular o treino de hoje — respondi, fingindo que estava procurando o meu livro de
Ciências.
— Será que sequestraram a minha amiga de verdade e a que está aqui na minha frente é
outra Mia? Primeiro, parou com os recitais. E agora está matando os treinos. O que está
acontecendo?
— Não sei — respondi, tamborilando os dedos na tranca do armário. — Estou pensando em
tentar tocar outro instrumento. Bateria, quem sabe. A do meu pai está lá no porão, pegando
poeira.
— Ah, fala sério! Você tocando bateria. Muito interessante — disse Kim com um risinho.
— É sério.
Kim olhou para mim, boquiaberta, como se eu tivesse acabado de contar que queria comer
lesmas fritas na manteiga no jantar.
— Você não pode parar de tocar violoncelo — disse ela depois de um momento de silêncio
assombroso.
— Por que não?
Com uma expressão aparentemente triste, ela tentou explicar:
— Não sei dizer, mas é como se o seu violoncelo fosse uma parte de você. Não consigo
imaginar você tocando outro instrumento.
— Ah, besteira. Não consigo nem tocar na banda da escola. E quem é que toca violoncelo?
Um bando de gente velha. É um instrumento ridículo pra uma garota tocar, estúpido. E além
disso, quero ter mais tempo livre, fazer alguma coisa para me divertir mais...
— Que tipo de coisa? — desafiou-me Kim.
— Ah, sabe... Ir ao shopping, por exemplo... Sair com você...
— Ah, sem essa! — retrucou Kim. — Você odeia shopping. E sempre sai comigo. Mas tudo
bem, pode matar o treino de hoje. Quero te mostrar uma coisa. — Kim me levou até a casa
dela, colocou o CD Nirvana MTV unplugged e pôs para tocar para mim a música Something
in the way.
— Escute — disse ela. — Dois guitarristas, um baterista e uma violoncelista. O nome dela
é Lori Goldston e aposto que quando era jovem ela treinava duas horas por dia igualzinho a
alguém que eu conheço, porque se você quer tocar na filarmônica ou com o Nirvana, é isso
que você tem de fazer. E acho que ninguém nunca ousou chamá-la de estúpida.
Levei o CD para casa e escutei várias vezes na semana seguinte, refletindo sobre o que Kim
havia dito. Peguei o meu violoncelo algumas vezes e toquei, acompanhando. Era um tipo de
música diferente, que eu nunca tinha ouvido antes, desafiadora e estranhamente revigorante.
Decidi que tocaria Something in the way para Kim na semana seguinte, quando ela viesse
jantar aqui em casa.
Mas antes que eu tivesse a oportunidade, durante o jantar, Kim, com a maior naturalidade,
disse para os meus pais que achava que eu deveria participar da colônia de férias.
— O quê? Está tentando me converter pra sua colônia Torah? — questionei.
— Não, mas para uma colônia de férias musical. — Ela mostrou um folder do Franklin
Valley Conservatory, um programa de verão da Colúmbia Britânica. — É um programa para
músicos sérios. Você precisa mandar uma gravação sua tocando para entrar, sei porque liguei
lá. E as inscrições vão até primeiro de maio, então ainda dá tempo — acrescentou Kim.
Em seguida, ela virou e me encarou de frente, como se estivesse me desafiando a ficar com
raiva dela por ter se intrometido nos meus planos.
Não fiquei brava, nem com raiva. Meu coração batia acelerado, como se a Kim tivesse
acabado de anunciar que a minha família tinha ganhado na loteria e estivesse prestes a revelar
o montante. Olhei bem para ela, seu olhar nervoso traía o sorriso estampado em seu rosto, que
dizia: “Está com vontade de me matar, não é?”, e fiquei surpresa, cheia de gratidão por ser
amiga de alguém que tantas vezes parecia me compreender melhor do que eu mesma. Papai
perguntou se eu queria ir, e quando retruquei por causa do dinheiro, ele disse que não haveria
problema. Se eu queria ir? Claro que queria. Mais do que qualquer outra coisa.


Três meses depois, quando papai me deixou em um canto solitário da Victoria Island, fiquei
em dúvida. O lugar se parecia com uma daquelas colônias típicas de verão, com cabanas de
madeira em meio à floresta e uma fileira de caiaques espalhados pela praia. Havia mais ou
menos umas cinquenta crianças que, a julgar pela maneira como se abraçavam e riam umas
para as outras, se conheciam há muitos anos. E quanto a mim, eu não conhecia ninguém. Nas
primeiras seis horas, ninguém conversou comigo, exceto a assistente de diretoria do
acampamento, que me acomodou numa cabana, me mostrou um beliche e apontou para o
restaurante onde, naquela noite, me ofereceram um prato de alguma coisa que parecia ser bolo
de carne.
Fiquei fitando meu prato com certa tristeza, depois olhei para a noite sombria e cinzenta. Já
estava com saudade dos meus pais, da Kim e especialmente do Teddy. Ele estava naquela fase
legal, querendo experimentar coisas novas, perguntando a toda hora: “O que é isso?” e falando
coisas engraçadas. Um dia antes de eu partir, ele olhou para mim e disse que estava “comendo
de sede” e quase morri de dar risada. Com saudades da minha casa, suspirei e revirei o
amontoado de carne que estava no meu prato.
— Não se preocupe, não vai chover todo dia. Amanhã é outro dia.
Ergui os olhos. Lá estava um garoto travesso que não devia ter mais do que dez anos. Tinha
cabelo loiro, um corte tipo escovinha e uma constelação de sardas no nariz.
— Eu sei, embora estivesse fazendo sol hoje de manhã lá onde moro. Sou do Noroeste. A
minha preocupação é com o bolo de carne.
Ele sorriu.
— Ah, isso não muda. Mas o sanduíche com pasta de amendoim é muito bom — disse ele,
gesticulando em direção a uma mesa onde havia meia dúzia de crianças preparando
sanduíches. — Peter. Trombone. Ontário — disse ele.
E pelo que pude descobrir depois, esta era a saudação padrão da colônia Franklin.
— Ah, olá! Sou Mia. Violoncelo. Oregon, acho.
Peter me contou que tinha treze anos e que aquele era o segundo verão dele na colônia.
Quase todos começaram quando tinham doze anos e é por isso que todo mundo se conhecia.
Entre os cinquenta estudantes, metade deles era do jazz, a outra metade da música clássica,
então o grupo era pequeno. Havia apenas mais dois violoncelistas, sendo um deles um cara
ruivo, alto e magricelo que se chamava Simon e para quem Peter acenou.
— Você vai participar do campeonato de violoncelo? — perguntou-me Simon logo que
Peter me apresentou. Mia. Violoncelo. Oregon.
Simon era Simon. Violoncelo. Leicester, que era uma cidade na Inglaterra, o que significava
que Simon fazia parte de um grupo internacional.
— Acho que não. Nem sei o que é esse campeonato — respondi.
— Bom, você sabe como nos organizamos em orquestra para a apresentação da sinfonia
final? — perguntou Peter.
Balancei a cabeça querendo dizer que sim, embora eu tivesse uma vaga ideia. O papai tinha
passado a primavera lendo informações sobre a colônia, mas a única coisa que importava
para mim é que eu ficaria com outros musicistas. Não prestei muita atenção aos detalhes.
— É a sinfonia de encerramento do verão. Pessoas de diferentes lugares vêm para nos
assistir. É um evento grande. E nós, os músicos mais novos, tocamos meio como se fôssemos
“os mascotes do showzinho de abertura” — explicou Simon. — Mas um dos músicos da
colônia é escolhido para tocar com a orquestra profissional e apresenta um solo. Ano passado
fiquei muito perto de ganhar, mas perdi para um flautista. Esta é a minha segunda e última
chance antes de me formar. Já faz um tempo que ninguém que toca instrumento de cordas ganha
e a Tracy, que é uma das integrantes do nosso pequeno trio, não vai tentar. Ela toca mais por
hobby. Ela é boa, mas não é séria, não toca pra valer. Ouvi dizer que você leva o negócio a
sério.
Sério que eu levo a sério esse negócio de tocar? Acho que se eu fosse assim não teria quase
desistido.
— Quem foi que te falou isso? — perguntei.
— Os professores escutam todas as gravações que os inscritos enviam e o boato começou a
circular. Parece que a sua gravação era muito boa. Não é muito comum eles aceitarem alguém
do segundo ano, então eu estava esperando por alguém bom para competir, para melhorar o
meu nível.
— Ei, ei! Peraí! Dê uma chance para a garota — disse Peter. — Ela acabou de
experimentar o bolo de carne.
Simon torceu o nariz.
— Desculpe, mas, se é sobre escolhas de audição que você quer falar, podemos conversar
— disse ele e, em seguida, saiu andando em direção ao quiosque de sorvete.
— Perdoe o Simon. Já faz uns anos que não aparece uma violoncelista de qualidade aqui,
então ele está animado com a possibilidade de sangue novo. Mas só pelo desafio. Ele é gay,
mas é difícil pra ele admitir, porque é inglês.
— Ah, tá. Mas o que foi que ele disse? Tipo, parece que ele quer disputar a competição
comigo.
— Claro que ele quer e é essa a graça do negócio. É por isso que estamos aqui em uma
colônia de férias no meio de uma floresta tropical — disse ele, gesticulando em direção à
paisagem. — Por isso e por causa da comida maravilhosa que eles têm aqui. — Peter olhou
para mim. — Não é por isso que você está aqui?
Dei de ombros.
— Sei lá. Nunca toquei com tantas pessoas. Pelo menos não tão sérias.
Peter coçou a orelha.
— Sério? Você disse que é de Oregon. Já participou do Projeto de Violoncelo de Portland?
— Do quê?
— É uma cooperativa vanguardista de violoncelo. Eles fazem um trabalho bem legal.
— Não moro em Portland — murmurei, sentindo-me constrangida por nunca ter ouvido
falar de nenhum projeto de violoncelo.
— Mas então, com quem é que você toca?
— Com outras pessoas. Na maioria das vezes com universitários.
— Não toca numa orquestra? Nenhum conjunto de música de câmara? Um quarteto de
cordas?
Balanço a cabeça, negando e lembrando de uma certa vez em que uma das minhas
professoras me convidou para tocar num quarteto. Recusei o convite porque tocar com ela era
uma coisa; tocar com um grupo de pessoas totalmente estranhas, era outra. Sempre acreditei
que o violoncelo era um instrumento solitário, mas agora começava a me questionar que talvez
fosse eu a solitária.
— Hum. E como é que você consegue ser boa? — indagou Peter. — Não quero bancar o
sem-noção, mas não é assim que a gente fica bom? É como jogar tênis. Se você jogar com
alguém ruim, vai acabar perdendo, errando tacadas ou perdendo saques, mas se jogar com um
bom adversário, começa a dominar o jogo e logo começa e executar tacadas surpreendentes.
— Eu não teria como saber disso — retruquei para Peter, me sentindo como a pessoa mais
chata e isolada do mundo. — Eu não jogo tênis.


Os dias seguintes passaram como uma névoa obscura. Não fazia a menor ideia do porquê eles
colocam o caiaque do lado de fora. Não sobrava nem um tempo para a diversão. Pelo menos
não para diversões daquele tipo. Os dias eram extremamente exaustivos. Acordávamos às seis
e meia, tomávamos café às sete, três horas de aula particular pela manhã e pela tarde e ensaio
com a orquestra antes do jantar.
Eu nunca tinha tocado com mais de cinco músicos antes, então os primeiros dias na
orquestra foram terríveis. O diretor de música da colônia, e que também era o maestro, se
esforçou muito para nos organizar e o máximo que conseguiu foi nos fazer tocar os
movimentos mais básicos por um curto espaço de tempo. No terceiro dia, ele tentou uma das
sinfonias de Brahms. Na primeira vez que tocamos foi horrível. Os instrumentos não se
harmonizavam, mas sim colidiam, como se fossem pedras em contato com um cortador de
grama.
— Horrível! — gritou o maestro. — Como é que vocês esperam tocar numa orquestra
profissional se não conseguem nem manter o tempo numa cantiga? Vamos, tentem de novo!
Depois de mais ou menos uma semana, as coisas começaram a funcionar e eu a sentir o
gostinho de fazer parte de uma engrenagem. Aquilo me fez ouvir o violoncelo de um jeito
diferente, me fez ver como as notas baixas funcionavam no concerto com as notas mais altas
da viola de arco e como o violoncelo fornecia uma base para os instrumentos de sopro que
ficavam do outro lado da orquestra. E, embora seja normal pensar que o fato de estar num
grupo nos faça sentir mais tranquilos, sem ter aquela preocupação excessiva de como você
está tocando já que o seu instrumento está se fundindo com os outros, acontece justamente o
contrário.
Sentei atrás de uma violista de dezessete anos que se chamava Elizabeth. Ela era uma das
musicistas mais perfeitas da colônia — fora aceita no Royal Conservatory of Music em
Toronto — e também era muito bonita, parecia uma modelo: alta, majestosa, pele cor de café
e bochechas que pareciam esculpidas no gelo. Eu teria cedido à tentação de odiá-la não fosse
pelo fato de ela tocar muito bem. Se o músico não for cuidadoso, a viola pode emitir um som
terrivelmente estridente, mesmo quando nas mãos dos instrumentistas mais experientes. Mas
nas mãos de Elizabeth o som saía limpo, puro e suave. Ao ouvi-la tocar e observá-la o quanto
se perdia na música, eu sentia vontade de tocar exatamente igual. Ou até melhor. Não que eu
quisesse simplesmente ser melhor do que ela, mas sim porque sentia que era o meu dever, que
devia isso a Elizabeth e ao grupo, a mim mesma. Tinha de tocar no mesmo nível que ela.


— Está muito bonito — disse Simon quando o nosso tempo na colônia já estava no final, ao
me ouvir treinando um movimento do Concerto nº 2 para violoncelo de Haydn, uma peça que
tinha me dado muito trabalho quando a toquei pela primeira vez na última primavera. — Você
vai tocá-la no campeonato do concerto?
Assenti e não consegui esconder um sorriso. Depois do jantar e antes que as luzes se
apagassem, Simon e eu levávamos os nossos violoncelos para fora e fazíamos uns concertos
improvisados no crepúsculo. Nos revezávamos, desafiando um ao outro para ver quem se saía
melhor. Estávamos sempre competindo, sempre tentando observar quem conseguia tocar
melhor, mais rápido e de cabeça. Foi muito divertido e talvez tenha sido essa a razão pela
qual eu me sentia tão bem em relação a Haydn.
— Ora, vejo que alguém aqui está segura demais. Acha que vai me vencer? — perguntou
Simon.
— No futebol, sem a menor dúvida — brinquei.
Simon contou que ele era a ovelha negra da família não pelo fato de ser gay, nem de ser
músico, mas porque era um perna de pau.
Ele fingiu que acertei um tiro no seu peito e depois sorriu.
— Percebe como coisas incríveis acontecem depois que você para de se esconder detrás
desse monstrinho gigante? — perguntou ele, apontando para o meu violoncelo. Balancei a
cabeça, fazendo que sim. Simon sorriu. — Mas, olha, nada de ficar aí se achando. Precisa me
ouvir tocando Mozart. Parece um coral de anjos cantando.
Nem ele, nem eu vencemos o solo daquele ano. A vencedora foi Elizabeth e, embora te

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