sexta-feira, 17 de outubro de 2014

21h06

rouca de Vega no saguão agora silencioso do hospital.
Então é este o plano de Adam: Brooke Vega, a deusa do indie rock e vocalista da Bikini,
vestida com roupas punk e de marca — esta noite é uma minissaia balonê, meia-calça
arrastão, botas de couro pretas e de cano alto e uma camiseta cheia de rasgos da Shooting
Star. Além disso, ela usa um bolero felpudo vintage e óculos pretos estilo Jackie Onassis.
Vega está parada no saguão do hospital feito um avestruz num galinheiro, e cercada de gente:
Liz e Sarah, Mike e Fitzy, o guitarrista rítmico e o baixista da Shooting Star, respectivamente,
e um pessoal de Portland, do qual me lembro vagamente. Com seu cabelo magenta, ela é como
o sol, em torno do qual os seus planetas admiradores giram, admirando-o. Adam é como a lua,
que fica de pé ao lado dela, roçando o próprio queixo. Enquanto isso, Kim parece meio
aturdida, como se um bando de marcianos tivesse acabado de entrar no hospital. Ou talvez
porque Kim venere Brooke Vega. Na verdade, Adam também a venera. Além de mim, isso era
uma das poucas coisas que eles tinham em comum.
— Dentro de quinze minutos você já vai estar fora daqui — promete Adam, entrando na
galáxia dela.
Ela se aproxima dele.
— Adam, querido. Com é que você está segurando a barra, hein?
Brooke o envolve num abraço como se os dois fossem velhos amigos, embora eu saiba que
hoje é a primeira vez que os dois se encontram pessoalmente; ontem mesmo Adam me contou
o quão nervoso estava com isso. Mas agora ela age como se fosse a melhor amiga dele. Acho
que é pela encenação. Enquanto ela abraça Adam, vejo cada uma das pessoas no saguão
observá-los atentamente, desejando, imagino, que cada um dos seus familiares internados ali
estivesse no andar de cima, em estado grave como eu, para que assim pudesse receber o
abraço reconfortante de Brooke.
Não consigo deixar de me perguntar se eu estivesse aqui, observando esta cena como a Mia
de verdade, será que eu sentiria ciúmes? Por outro lado, se eu fosse a Mia de verdade, Brooke
Vega não estaria aqui no saguão deste hospital como parte de alguma artimanha de Adam para
conseguir me ver.
— Vamos lá, crianças. Hora de botar pra quebrar. Adam, qual é o plano? — pergunta
Brooke.
— Você é o plano. Não pensei nada além de você ir lá até a UTI e causar um tumulto.
Brooke lambe seus lábios carnudos.
— Causar tumulto é uma das minhas brincadeiras favoritas. O que acha que podemos fazer?
Dar um berro? Fazer um striptease? Quebrar uma guitarra? Pera aí, eu não trouxe a minha
guitarra. Merda!
— Você poderia cantar alguma coisa — sugere alguém.
— Que tal aquela música antiga dos Smiths, Girlfriend in a coma? — lança outra pessoa.
Adam fica com o rosto pálido diante daquele choque de realidade e Brooke ergue as
sobrancelhas num gesto de extrema censura. Todos ficam com a expressão séria.
Kim pigarreia.
— Er, não vai nos ajudar nada se Brooke ficar aqui servindo de distração no saguão.
Precisamos subir até a UTI e alguém poderia gritar, anunciando que Brooke está aqui no
hospital. Pode ser que funcione. Se não funcionar, então, ela pode cantar. Tudo o que
precisamos é distrair algumas enfermeiras e trazê-las para fora, fazendo aquela enfermeirachefe
rabugenta vir atrás delas. Depois que ela sair da UTI e vir a gente no corredor, vai ficar
ocupada demais para perceber que o Adam fugiu lá para dentro.
Brooke avalia Kim, que está com uma calça preta e um suéter meio desproporcional.
Depois, ela sorri e segura o braço da minha melhor amiga.
— Gostei do plano. Mãos à obra, crianças.
Fico para trás, observando aquela multidão caminhar pelo corredor, em procissão. O som
em uníssono das botas pesadas e das vozes altas intensificado pelo senso de urgência, invadiu
o silêncio mortal do hospital e trouxe um pouco de vida ao local. Lembro que uma vez assisti
a um programa de TV que falava sobre casas de repouso que levavam gatos e cachorros para
animarem os pacientes idosos e em estado terminal. Talvez todos os hospitais devessem trazer
um grupo de roqueiros punk para alegrar o coração entristecido dos pacientes.
O grupo parou em frente ao elevador, esperando ansiosamente por um elevador vazio que
comportasse o grupo inteiro. Decido que quero estar próxima ao meu corpo quando Adam
entrar na UTI. Pergunto-me se vou conseguir senti-lo quando ele me tocar. Enquanto eles
esperam no hall do elevador, subo pelas escadas.
Fiquei fora da UTI por pouco mais de duas horas, e muita coisa mudou. Há um novo
paciente em uma das camas que estavam vazias, um homem de meia-idade cujo rosto se
parece com uma daquelas pinturas surrealistas: metade está normal, e é até mesmo bonita, mas
a outra metade é uma mistura de sangue, gaze e pontos, como se alguém o tivesse explodido.
Talvez seja o ferimento de uma bala. Aqui, há muitas pessoas com ferimentos causados pela
caça. Um dos pacientes, que de tão envolvido em gazes e esparadrapos eu mal conseguia
definir se era um homem ou uma mulher, tinha falecido. No lugar, há uma mulher com o
pescoço imobilizado com um daqueles colares cervicais.
Quanto a mim, estou respirando sem a ajuda dos aparelhos agora. Lembro-me de ter
escutado a assistente social dizer ao meus avós e à tia Diane que esse seria um sinal muito
positivo. Paro por um momento para averiguar se sinto algo diferente, mas não sinto nada,
pelo menos não fisicamente. Não sinto nada desde hoje de manhã, quando estava no carro
ouvindo a Sonata nº 3 para violoncelo de Beethoven. Agora que respiro sozinha, meus
aparelhos emitem menos sons e recebo menos visitas das enfermeiras. A enfermeira Ramirez,
aquela com as unhas benfeitas, vem me ver de vez em quando, mas agora ela está ocupada com
o cara que chegou com a metade do rosto estourado.
Do lado de fora das portas automáticas da UTI, ouço alguém perguntar com uma voz
demasiadamente dramática e falsa:
— O quê?! Aquela não é a Brooke Vega?
Nunca tinha ouvido nenhum dos amigos de Adam falar com aquela vozinha de adolescente
melindroso. Acho que aquilo foi uma versão polida para “Caralho! Aquela não é a Brooke
Veja?”
— Ãh?! A Brooke Vega da Bikini? Aquela que saiu na capa da Spin mês passado? Aqui?
No hospital?
Desta vez sei que é a voz da Kim. Ela fala como se fosse uma criança de seis anos
recitando sobre os grupos de alimentos numa peça da escola: Quer dizer que devemos comer
cinco porções de frutas e legumes por dia?
— Sim, é isso aí — responde Brooke com a voz rouca. — Vim pra trazer um pouco de rock
and roll para a galera aqui de Portland.
Algumas enfermeiras mais jovens, que provavelmente devem ouvir as rádios que tocam
música pop ou assistem à MTV e já ouviram falar da Bikini, erguem os olhos, com o rosto
aparentemente entusiasmado e ao mesmo tempo como se tivesse com um ponto de
interrogação. Ouço-as sussurrando, ansiosas para saber se realmente se trata de Brooke, ou
talvez estejam apenas felizes por quebrarem um pouco a rotina.
— É, pode crer. Então, acho que posso cantar um pouquinho. Vou mandar uma das minhas
favoritas. Se chama Eraser — anuncia Brooke. — Alguém aí de vocês quer me acompanhar?
— Só preciso de alguma coisa pra batucar — responde Liz. — Alguém tem uma caneta ou
alguma coisa assim?
Agora, a enfermeira e os atendentes de plantão na recepção da UTI estão extremamente
curiosos e saem em direção à porta. Observo tudo como se estivesse de fora, assistindo a um
filme. Fico ao lado da minha cama, com os olhos concentrados nas portas automáticas,
esperando elas se abrirem. O suspense me corrói. Penso em Adam, no quanto me acalmo
quando ele me toca, no quanto me derreto ao senti-lo acariciar a minha nuca ou quando ele
sopra ar quente nas minhas mãos geladas por causa do frio.
— O que é que está acontecendo aqui? — exclama a enfermeira mais velha. De repente,
todas as enfermeiras no corredor olham para ela, e não mais para a Brooke. Ninguém vai
tentar explicar que uma estrela do pop está lá, do lado de fora. Acabou. Sinto a tensão da
frustração. As portas não vão se abrir.
Lá fora, ouço Brooke começar a cantar. Mesmo sem a banda, e do outro lado das portas
automáticas, ela canta muito bem.
— Alguém chame os seguranças agora — exige a enfermeira.
— Adam, chegou a hora — grita Liz. — É agora ou nunca. Tudo ou nada.
— Vai! — grita Kim, que de repente se transformou numa general do exército. — Vamos te
dar cobertura.
As portas se abrem. Despencam mais de meia dúzia de punks, Adam, Liz, Fitzy, algumas
pessoas que não conheço e Kim. Lá fora, Brooke continua cantando, como se aquele fosse o
show que ela viera fazer em Portland.
Ao atravessarem a porta, tanto Adam quanto Kim parecem determinados, até mesmo felizes.
Fico surpresa com a capacidade que eles demonstram ao ter de se adaptar a diferentes
situações, e com a força que mantêm escondida, em algum lugar. Sinto vontade de pular para
comemorar e torcer por ele do jeito que costumava fazer quando assistia aos jogos de T-ball
do Teddy e ele passava pela terceira base para fazer o ponto. Mal posso acreditar que eles
estão aqui, mas ao ver Kim e Adam em ação, posso dizer que quase me sinto feliz também.
— Onde está ela? — grita Adam. — Onde está a Mia?
— No canto, perto do armário! — grita alguém de volta.
Só depois de um minuto é que percebo que foi a enfermeira Ramirez quem disse isso.
— Segurança! Peguem ele! Agarrem-no! — berra a enfermeira rabugenta.
Ela avista Adam entre todos os outros invasores e seu rosto fica vermelho, cheio de fúria.
Os seguranças do hospital e outros dois atendentes entram correndo na UTI.
— Mano, aquela não é a Brooke Vega? — pergunta um deles enquanto agarra Fitzy e o
empurra para a saída.
— Acho que sim — responde o outro, agarrando Sarah e levando-a para fora.
Kim me encontra.
— Adam, ela está ali! — ela grita, depois se vira para mim, enquanto o grito morre em sua
garganta. — Ela está aqui — diz ela de novo, mas desta vez com um gemido.
Adam ouve a voz de Kim e se esquiva das enfermeiras, tentando caminhar em minha
direção. E aqui está ele, ao pé da minha cama, esticando a mão para me tocar. Está quase
conseguindo. De repente, me lembro do nosso primeiro beijo depois do concerto do Yo-Yo
Ma, e de que eu não tinha me dado conta do quanto desejava os seus lábios nos meus, coisa
que só aconteceu quando estávamos bem pertinho, quase nos beijando. Não tinha me dado
conta do quanto desejava o seu toque, até este exato momento em que quase posso senti-lo me
tocar.
Quase. Mas, de repente, ele começa a se afastar de mim. Dois seguranças o seguram pelos
ombros e o arrancam dali. Um dos homens agarra também o cotovelo de Kim e a leva para
fora. Kim cede, e não oferece nenhuma resistência.
Brooke continua cantando do lado de fora. Quando vê Adam, ela para.
— Sinto muito, querido — diz. — Agora tenho que ir antes que eu perca o show ou que seja
presa.
Então ela se vai pelo corredor, seguida por alguns atendentes de plantão que imploram por
um autógrafo.
— Chame a polícia — exige a enfermeira rabugenta. — Mandem prendê-lo.
— Vamos levá-lo até o departamento de segurança. É o protocolo — diz um dos
seguranças.
— Não somos nós quem prendemos — acrescenta o outro.
— Tirem-no da minha ala. — Ela pigarreia e se vira. — Srta. Ramirez, é melhor que não
tenha servido de cúmplice para esses arruaceiros.
— Claro que não. Eu estava no armário de suprimentos e perdi toda a confusão — retruca
ela.A srta. Ramirez mente bem e sua expressão em nenhum momento a entrega.
A enfermeira-chefe bate palmas.
— Ok. O show acabou. De volta ao trabalho.
Saio em disparada para as portas da UTI, correndo atrás de Adam e Kim, que estão sendo
levados na direção do elevador. Entro com eles. Kim parece confusa, como se alguém tivesse
pressionado o botão reset e ela ainda estivesse reiniciando o sistema. Adam aparenta tristeza,
está com os lábios arqueados para baixo. Não sei ao certo se ele está prestes a chorar ou a dar
um soco no segurança. Para o seu próprio bem, espero que seja a primeira opção. Se for pela
minha vontade, torço pela segunda.
Lá embaixo, os seguranças arrastam Adam e Kim por um corredor cheio de salas escuras.
Estão prestes a entrar em uma das poucas salas que têm iluminação quando ouço alguém gritar
o nome de Adam.
— Adam! Esperem. É você?
— Willow? — grita Adam de volta.
— Willow? — murmura Kim.
— Com licença, para onde vocês estão levando eles? — grita Willow para os homens
enquanto corre na direção deles.
— Lamento mas esses dois foram pegos tentando invadir a UTI — explica um dos
seguranças.
— Só porque eles não deixaram a gente entrar — rebate Kim com a voz fraca.
Willow se aproxima deles. Ela ainda está com o uniforme de enfermeira, o que é estranho;
porque geralmente, assim que pode, ela troca logo de roupa e tira a “alta costura hospitalar”,
conforme ela costuma chamá-lo. Seu cabelo castanho-avermelhado, longo e encaracolado
parece ensebado e escorrido, como se há semanas ela não o lavasse. E suas bochechas, que
normalmente são rosadas como uma maçã, estavam como se tivessem sido pintadas de bege.
— Com licença. Sou uma enfermeira registrada na Cedar Creek. Não fiz o meu estágio aqui,
então, se vocês quiserem, podemos resolver esse problema com Richard Caruthers.
— Quem é ele? — pergunta um dos seguranças.
— Diretor de assuntos comunitários — responde o outro homem que, em seguida, se vira
para Willow. — Ele não está aqui agora, não estamos em horário comercial.
— Sim, mas tenho o telefone da casa dele — acrescenta Willow, empunhando seu celular
como uma arma. — Duvido que ele vá gostar de receber uma ligação minha contando como o
seu hospital está tratando alguém que está apenas tentando visitar a namorada gravemente
ferida. Vocês sabem que o diretor preza pelos valores da compaixão tanto quanto da
eficiência e essa não é a maneira correta de se tratar um ente querido de alguém que está
internado aqui.
— Estamos apenas fazendo o nosso trabalho, senhora. Seguindo ordens.
— E se eu tirar vocês dois dessa encrenca e assumir o problema? A família da paciente
está toda reunida lá em cima, esperando por esses dois. E, se vocês tiverem qualquer
problema, falem com o sr. Caruthers e peçam a ele que entre em contato comigo.
Willow enfia a mão na bolsa, tira um cartão seu e o entrega aos seguranças. Um dos homens
pega o cartão e o entrega para o parceiro, que apenas olha e dá de ombros.
— Pelo menos vai livrar a gente daquela papelada — diz ele.
O homem solta o Adam, cujo corpo despenca como se fosse um espantalho arrancado de um
poste.
— Desculpe aí, garoto — ele diz, batendo no ombro dele.
— Espero que a sua namorada fique bem — murmura o outro.
E então os dois desaparecem na direção da máquina automática que vende doces.
Kim, que tinha cruzado com a Willow apenas duas vezes, jogou-se nos braços dela.
— Obrigada! — murmurou no pescoço de Willow.
A enfermeira retribuiu ao abraço e deu um tapinha no ombro de Kim antes de soltá-la.
Depois, esfrega os olhos e esboça um sorriso discreto.
— O que diabos vocês dois estavam pensando? — pergunta ela.
— Eu só queria ver a Mia — responde Adam.
Willow vira-se para olhar para o Adam e é como se alguém tivesse acabado de abrir uma
válvula, deixando escapar todo o ar que havia dentro dela. A enfermeira desmorona e estica o
braço para tocar o rosto de Adam.
— Não tenho dúvidas. — Ela enxuga os olhos com o dorso da mão.
— Você está bem? — pergunta Kim.
Willow ignora a pergunta.
— Vamos ver o que podemos fazer pra você conseguir visitar a Mia.
Adam se anima ao ouvir isso.
— Acha que vamos conseguir? Aquela enfermeira velha não foi com a minha cara.
— Se essa enfermeira é quem estou pensando, não faz a menor diferença ela ter ido com a
sua cara ou não. Nada depende dela. Vamos falar com os avós de Mia, depois vou descobrir
quem é o responsável aqui por quebrar as regras e permitir que você veja a sua namorada. Ela
precisa de você agora. Mais do que nunca.
Adam vira e abraça Willow com tanta força que os pés dela saem do chão.
Willow no comando do resgate. Do mesmo jeito que ela resgatou Henry, o melhor amigo de
papai e que tocava com ele na banda, e que, no passado, fora um playboy bêbado. Quando
Willow e ele namoraram por algumas semanas, ela o advertiu para que se endireitasse e
parasse de beber ou então, eles teriam de dizer adeus. Papai contou que muitas garotas tinham
dado um ultimato para Henry, tentando dar um jeito na vida dele, mas todas elas acabaram
deixadas na calçada, aos prantos. Mas quando Willow pegou sua escova de dentes e avisou
que Henry tinha de crescer, foi ele quem chorou. Em seguida, Henry enxugou as lágrimas,
cresceu, parou de beber e se tornou monogâmico. Oito anos depois, aqui estão eles, com um
bebê. Willow tem um jeito especial. Talvez seja por isso que ela tenha se tornado a melhor
amiga da mamãe depois que se uniu a Henry. Willow é outra mulher dura na queda, graciosa
como uma gatinha e uma feminista ferrenha. Ela se tornou uma das pessoas de quem papai
mais gosta; mesmo odiando os Ramones e achando o beisebol chato, enquanto papai vivia
pelos Ramones e considerava o beisebol como uma religião.
Agora, Willow está aqui. Willow é enfermeira. Willow que não aceitaria um não como
resposta está aqui. Ela vai conseguir fazer com que Adam entre na UTI para me ver. Ela vai
cuidar de tudo. Uhuuu! Quero gritar. Willow está aqui!
Estou tão ocupada comemorando a chegada de Willow que demoro para perceber o motivo
de sua presença, mas, quando percebo, sinto como um golpe.
Willow está aqui. E, se está aqui, no meu hospital, isso significa que não há nenhum motivo
para ela estar no hospital dela. Eu a conheço o bastante para saber que ela jamais o deixaria
lá, sozinho. Mesmo que eu esteja aqui, ela teria ficado com ele. Ele estava todo quebrado e foi
levado para que ela o concertasse. Ele era o paciente dela. Sua prioridade.
Penso no fato de que vovô e vovó estão aqui, em Portland, comigo. E que todos na sala de
espera só falam sobre mim, e que estão evitando falar sobre mamãe, papai ou sobre o Teddy.
Penso na expressão de Willow. Parecia que toda a sua alegria lhe fora sugada. E penso no que
ela disse a Adam: que eu preciso dele agora. Mais do que nunca.
E é por isso que eu sei. Teddy. Ele também se foi.

***

Mamãe entrou em trabalho de parto três dias antes do Natal, e insistiu que fôssemos fazer
compras juntas.
— Você não deveria estar deitada, indo para o hospital ou algo do tipo? — questionei.
Mamãe fez uma careta em meio a uma contração.
— Não. As contrações ainda não estão muito fortes, e só vêm a cada vinte minutos. Quando
estava grávida de você e entrei em trabalho de parto, limpei a casa inteira, de cima a baixo.
— Nossa, você dá trabalho até no trabalho de parto — brinquei.
— Você é uma espertinha, sabia? — disse mamãe e depois respirou fundo algumas vezes.
— É o meu jeito de fazer as coisas. Agora anda. Vamos pegar o ônibus para o shopping. Não
vou poder dirigir.
— Não é melhor ligarmos para o papai? — questionei.
Mamãe deu risada.
— Ah, por favor! Já me basta ter de dar à luz este bebê. Não preciso ter de lidar com o seu
pai agora também. Vamos ligar pra ele só quando o bebê já estiver a ponto de nascer. Prefiro
muito mais que você fique comigo.
Então, mamãe e eu ficamos passeando no shopping e parando de quando em quando para ela
se sentar, respirar fundo e apertar o meu pulso de um jeito tão forte que deixou marcas
vermelhas na pele. Mesmo assim, tivemos uma manhã produtiva e divertida. Compramos
presentes para a vovó e o vovô (um suéter com um anjo estampado e um livro sobre Abraham
Lincoln, que era lançamento), brinquedos para o bebê e galochas novas para mim.
Normalmente, esperávamos pelas liquidações de Natal para comprar essas coisas, mas a
mamãe disse que naquele ano ficaríamos muito ocupadas trocando fraldas.
— Agora não é hora de economizar. Ah, merda! Desculpe, Mia. Vamos. Quero comer um
pedaço de torta.
Fomos à Marie Callender’s. Mamãe pediu uma fatia de torta de abóbora com creme de
banana. Eu pedi um pedaço de torta de mirtilo. Quando terminou, mamãe afastou o prato e
disse que estava pronta para procurarmos a parteira.
Nunca conversamos se eu deveria ficar com ela ou não quando chegasse a hora. Àquela
altura, eu ia para todos os lugares com mamãe e papai, então foi meio que automático.
Encontramos papai com os nervos à flor da pele no centro de parto, que não se parecia nem
um pouco com um consultório médico. Era o andar térreo de uma casa, onde havia camas e
banheiras Jacuzzi, e os aparatos médicos ficavam discretamente armazenados num canto. A
parteira hippie levou mamãe para dentro e o papai me perguntou se eu queria ir junto. Naquele
momento, já dava para ouvir mamãe disparando palavrões para todos os lados.
— Posso ligar pra sua avó e ela vem buscar você — disse papai, fazendo caretas ao ouvir
os berros da mamãe. — Pode ser que isto aqui demore um pouquinho.
Balancei a cabeça, negando. Mamãe precisava de mim. Foi isso que ela disse. Sentei em um
dos sofás estampados com flores, peguei uma revista que tinha um bebê careca na capa. Papai
desapareceu em um dos quartos.
— Música! Droga! Preciso de música! — gritou mamãe.
— Temos uma trilha muito agradável da Enya. É muito relaxante — disse a parteira.
— Foda-se a Enya! — exclamou mamãe. — Melvins. Earth. Agora!
— Calma, está tudo sob controle — disse papai. Em seguida, ele colocou um CD e o som
mais pesado e mais alto de guitarra que eu já tinha ouvido começou a tocar. As músicas punk
que papai costumava ouvir se pareciam com cantigas de ninar perto daquilo. Era uma música
primitiva e, aparentemente, fazia com que minha mãe se sentisse melhor. Ela começou a emitir
uns sons guturais baixos. Só fiquei lá sentada, quieta. De vez em quando ela gritava, me
chamando, e eu entrava. Mamãe erguia os olhos para mim, com o rosto todo coberto de suor.
— Não tenha medo — sussurrava ela. — As mulheres podem suportar o pior tipo de dor.
Você vai descobrir isso um dia. — Em seguida, ela voltava a gritar puta que o pariu!
Assisti a alguns partos pela TV a cabo e percebi que as mulheres ficavam berrando por um
tempo; algumas vezes elas gritavam palavrões que tinham de ser cortados, mas tudo não
levava mais que meia hora. Depois de três horas, mamãe e Melvins continuavam gritando. O
centro de parto inteiro parecia quente e úmido, embora estivesse fazendo apenas quatro graus
lá fora.
Henry apareceu. Quando entrou e ouviu o barulho, parou onde estava, ficando imóvel. Eu
sabia que toda essa coisa de ter filhos o assustava, já tinha ouvido mamãe e papai
conversando sobre isso e sobre a insistência de Henry em não crescer. Ele ficou chocado
quando mamãe e papai me tiveram, e agora ele parecia totalmente perplexo ao ver que meus
pais escolheram ter um segundo filho. Os dois se sentiram aliviados ao verem que Willow e
Henry tinham reatado. — Finalmente, alguém adulto na vida de Henry — dissera mamãe.
Henry olhou para mim, com o rosto pálido e suado.
— Caraca, Mia. Você não deveria estar ouvindo isso, deveria? Será que eu deveria estar
ouvindo isso?
Dei de ombros. Henry sentou-se perto de mim.
— Peguei um resfriado ou gripe, sei lá, mas o seu pai acabou de me ligar pedindo pra trazer
comida. Então, aqui estou — explicou ele, mostrando-me uma sacola cheia de Taco Bell,
fedendo à cebola. Mamãe deixou escapar outro grito. — É melhor eu ir embora. Não quero
espalhar as bactérias por aqui ou algo assim. — A mamãe berrou ainda mais alto e Henry
praticamente pulou do sofá. — Tem certeza de que quer ficar aqui? Pode vir comigo, pra
minha casa se quiser. Willow está lá cuidando de mim. — Ele sorriu ao mencionar o nome
dela. — Ela também pode tomar contar de você.
E então, Henry levantou-se para ir embora.
— Estou bem. A mamãe precisa de mim. E o papai está uma pilha de nervos.
— Ele já vomitou? — perguntou Henry, voltando a se sentar no sofá. Dei risada, mas
depois, pela cara dele, vi que estava falando sério. — Ele vomitou quando você estava pra
nascer. Quase desmaiou. Não que eu o esteja criticando... Mas o cara deu trabalho... Os
médicos quiseram colocá-lo para fora, disseram que fariam isso caso você não nascesse
dentro de meia hora. A sua mãe ficou tão nervosa que você nasceu cinco minutos depois. —
Henry sorriu, recostando-se sobre o sofá. — E foi essa a história. Mas te digo uma coisa: ele
chorou feito um bebê desmamado quando você nasceu.
— Essa parte já me contaram.
— Contaram o quê? — perguntou papai, sem fôlego. Ele agarrou a sacola das mãos de
Henry. — Taco Bell, Henry?
— É o jantar dos campeões — disse Henry.
— Serve. Estou morrendo de fome. As coisas estão complicadas por aqui. Preciso me
manter forte.
Henry piscou para mim. O papai pegou um burrito e me ofereceu. Neguei com a cabeça.
Ele estava começando a desembrulhar o burrito quando a mamãe soltou um gemido e começou
a berrar, dizendo que estava pronta para fazer mais força.
A parteira enfiou a cabeça para fora da porta.
— Acho que estamos perto, então é melhor você jantar depois. Volte pra cá — disse ela.
Henry praticamente saiu voando pela porta da frente. Segui papai até o quarto, onde a
mamãe estava sentada agora, ofegante como um cachorro velho.
— Você quer assistir? — perguntou a enfermeira para o papai, mas ele apenas sacudiu a
cabeça e de repente, ficou com o rosto verde.
— É melhor eu ficar por aqui — respondeu, segurando a mão da mamãe, mas ela soltou a
mão dele com força.
Ninguém me perguntou se eu queria assistir. Meio que automaticamente, fui para o lado da
parteira. Foi muito nojento, admito. Muito sangue. E certamente eu nunca tinha visto a minha
mãe naquela posição. Mas parecia estranhamente normal para mim ficar ali. A parteira pedia
à minha mãe que fizesse força, parasse, e que voltasse a fazer força de novo, e assim
sucessivamente.
— Vamos lá bebê, vamos — entoava ela. — Está quase lá! — A parteira animava a minha
mãe, que àquela altura parecia estar com vontade de esbofetear a mulher.
Quando Teddy escorregou para fora, ficou com o rosto voltado para cima, então a primeira
pessoa que ele viu fui eu. Ele não chegou berrando como vemos na TV. Ficou em silêncio,
com os olhos esbugalhados, me encarando. E Teddy continuou me olhando, enquanto a parteira
fazia sucção pelo nariz dele.
— É um menino — gritou ela.
Ela colocou o Teddy sobre a barriga da minha mãe.
— Você quer cortar o cordão umbilical? — perguntou ela ao meu pai. Papai ergueu as
mãos, respondendo que não. Estava emocionado demais ou enjoado demais para poder falar.
— Eu posso fazer isso — falei.
A parteira segurou o cordão, esticando-o e me mostrou onde eu tinha de cortar. Teddy ficou
quietinho, com seus olhos cinzentos arregalados, ainda me encarando.
Mamãe sempre dizia que bem lá no fundo, Teddy achava que eu fosse a mãe dele porque fui
eu quem ele viu pela primeira vez e porque fui eu quem cortou o cordão umbilical.
— É como acontece com os gansos que nascem — brincou mamãe. — Eles guardam a
imagem do veterinário, não da mamãe gansa, porque é o veterinário que eles veem logo
quando os ovos se quebram e eles saem.
Ela exagerou. Na verdade, Teddy não achava que eu fosse a mãe dele, mas havia certas
coisas que só eu poderia fazer por ele. Quando era bebê e passou por aquela fase complicada
do choro noturno, ele só se acalmava depois que eu tocava uma canção de ninar no violoncelo.
Quando começou a gostar de Harry Potter, só queria que eu lesse um capítulo por dia para
ele, todas as noites. E quando ralava o joelho ou batia a cabeça, ele não parava de chorar
enquanto eu não desse um beijo mágico no machucado e depois disso, Teddy se recuperava
como que por um milagre.
Sei que nem mesmo todos os beijos mágicos do mundo poderiam tê-lo ajudado hoje. Mas eu
faria tudo que pudesse para poder dar um um beijo no Teddy.

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