sábado, 18 de outubro de 2014

22- A Traição

Ela despertou com um homem sacudindo-lhe o braço. Então Pantalaimon
acordou com um pulo e rosnou, e ela reconheceu Thorold. Ele segurava uma
lamparina a nafta na mão trêmula.
– Senhorita, senhorita, levante-se depressa! Ele está quase delirando, desde
que a senhorita foi dormir. Nunca vi meu amo tão descontrolado. Arrumou muitos
instrumentos e várias baterias num trenó, atrelou os cachorros e partiu. Mas levou
o menino, senhorita!
– Roger? Ele levou o Roger?
– Ele me disse para acordar e vestir o menino, e nem pensei em discutir,
nunca fiz isso. O menino ficou perguntando pela senhorita, mas Lorde Asriel queria
ele sozinho. Sabe, quando a senhorita chegou? Quando ele viu quem era, não queria
acreditar, e ficou mandando a senhorita ir embora?
A cabeça de Lyra estava tão cheia de pensamentos e temores que ela mal
conseguia pensar.
– Sei! Sei! – afirmou.
– Era porque ele precisava de uma criança para terminar a experiência, senhorita!
E Lorde Asriel tem um jeitinho todo especial de conseguir o que quer; é só pedir e...
Agora a cabeça de Lyra estava cheia de trovões, como se ela estivesse tentando
evitar que certa informação chegasse ao seu consciente.
Tinha saído da cama e ia vestir suas roupas quando caiu no chão de repente. Um
agudo grito de desespero envolveu-a. O grito saíra dela, mas era maior do que ela; era
como se o desespero é que estivesse gritando. Pois ela havia se lembrado das
palavras dele: a energia que une o corpo ao daemon é imensamente poderosa; e para
servir de ponte entre os dois mundos era preciso uma descarga de energia
fenomenal...
Ela acabava de perceber o que fizera.
Tinha lutado para chegar até ali para trazer algo a Lorde Asriel, pensando saber o
que ele queria; e não era o aletômetro.
Tudo que ele queria era uma criança.
E ela tinha trazido Roger para ele!
Por isto ele tinha gritado quando viu Lyra: "Não mandei buscá-la!"; ele mandara
buscar uma criança, e o destino lhe trouxera sua própria filha – era o que ele havia
pensado, até ver Roger.
Ah, que angústia terrível! Ela pensava que estava salvando Roger e o tempo todo
estava trabalhando para trair o amigo...
Lyra estremecia, aos soluços, num frenesi de emoção. Aquilo não podia ser
verdade!
Thorold tentou acalmá-la, mas não sabia o motivo para tanto sofrimento, e tudo
que podia fazer era dar-lhe tapinhas nervosos no ombro.
– Iorek... – ela soluçou, afastando o criado. – Onde está Iorek Byrnison? O urso?
Ainda está lá fora?
O velho deu de ombros, sem saber responder. – Me ajude! – ela pediu, tremendo
de fraqueza e medo. – Traga meus agasalhos. Tenho que ir. Agora! Rápido!
Ele pousou a lamparina e fez o que ela pedia. Quando dava ordens naquele tom
imperioso, ela ficava muito parecida com o pai, embora tivesse o rosto molhado de
lágrimas e os lábios trêmulos. Enquanto Pantalaimon andava de um lado para outro
sacudindo a cauda com força, a pelagem quase faiscando, Thorold correu para trazer
as peles dela, rígidas e fedorentas, e ajudar Lyra a agasalhar-se. Assim que todos os
botões estavam fechados, ela correu para a porta, e sentiu o frio atingir sua garganta
como uma espada e congelar as lágrimas em seu rosto.
–Iorek! – ela se pôs a gritar. – Iorek Byrnison! Venha, preciso de você!
Houve um vulcão de neve, um ruído de metal, e o urso apareceu a seu lado;
estivera dormindo tranqüilamente sob a neve que caía. Na luz da lamparina que Thorold
segurava junto à janela, Lyra viu a cabeça comprida e sem rosto, as frestas escuras
dos olhos, o brilho de pêlos brancos sob o metal preto-avermelhado, e teve vontade de
abraçá-lo, procurando consolo no elmo de ferro, na pele de pontas de gelo.
– Que foi? – ele perguntou.
– Temos que alcançar Lorde Asriel. Ele levou o Roger e vai... não consigo nem
pensar nisso... Ah, Iorek, eu lhe imploro, vá depressa, meu querido!
– Então venha- ele retrucou.
Lyra saltou para as costas do urso. Não havia necessidade de perguntar o
caminho; o rastro do trenó levava para a planície, e Iorek lançou-se no encalço dele.
Seu movimento fazia agora parte de Lyra, de modo que equilibrar-se havia se tornado
uma coisa automática para ela. Ele corria mais depressa do que nunca pelo espesso
manto de neve sobre o solo rochoso, e as placas da sua armadura roçavam umas nas
outras num ritmo regular.
Atrás deles, os outros ursos vinham mais devagar, puxando o lançador de fogo. O
caminho estava claro, pois a lua estava alta, e sua luz, derramando-se sobre o mundo
nevado, era tão clara como tinha sido no balão: um mundo de prata brilhante e negrume
total. O rastro do trenó de Lorde Asriel ia direto para uma serra de picos pontiagudos,
formas aguçadas e estranhas que sobressaíam num céu tão negro quanto o veludo que
embrulhava o aletômetro. Não havia sinal do trenó – ou havia um levíssimo movimento
na encosta do pico mais alto? Lyra tentou enxergar, forçando os olhos, e Pantalaimon
voou o mais alto que pôde para espiar com sua visão clara de coruja.
– É Lorde Asriel, sim, ele está chicoteando furiosamente os cães, e tem uma
criança com ele...
Lyra sentiu Iorek Byrnison diminuir a velocidade; alguma coisa tinha chamado sua
atenção. Ele erguia a cabeça, virando-a para a esquerda e para a direita.
– Que é? – ela quis saber.
Ele não disse. Estava escutando com atenção, mas ela nada conseguia ouvir.
Mas então ouviu alguma coisa: um ruído misterioso e muito distante de coisa roçando e
estalando. Era um som que ela já ouvira: o som da Aurora Boreal. Um véu de brilho
tinha caído do nada e pendia cintilante no céu austral. Todos aqueles bilhões e trilhões
de partículas carregadas invisíveis, e possivelmente também – ela pensou – de Pó,
formavam uma radiância descendo da atmosfera superior. Nessa noite, a Aurora Boreal
ia ser bem mais brilhante e extraordinária do que qualquer outra que Lyra já vira, como
se soubesse do drama que se desenrolava lá embaixo e quisesse iluminá-lo com os
mais impressionantes efeitos especiais. Mas nenhum dos ursos estava olhando para
cima: tinham a atenção voltada para a terra. Então não havia sido a Aurora que atraíra
a atenção de Iorek! O urso agora estava imóvel, e Lyra escorregou das costas dele,
sabendo que ele precisava de liberdade de movimentos para poder se orientar. Alguma
coisa o preocupava.
Lyra olhou em volta e para trás, para a vastidão plana que levava à casa de Lorde
Asriel, olhou para as montanhas que tinham atravessado mais cedo, e nada viu. A
Aurora Boreal ficou mais intensa; os primeiros véus tremularam e deslizaram para um
lado, e cortinas irregulares dobraram-se e desdobraram-se acima deles, aumentando
em tamanho e brilho a cada minuto; espirais e arabescos retorciam-se de um horizonte
a outro, e tocavam o próprio zênite com arcos de luz. Ela escutava com mais clareza
do que nunca o portentoso canto sibilado de vastas forças intangíveis.
– As bruxas! – exclamou uma voz de urso.
Lyra virou-se, com alegria e alívio, mas um focinho pesado empurrou-a pelas
costas e jogou-a no chão; sem fôlego para levantar-se, a menina ficou caída, ofegante
e trêmula, pois no lugar onde ela estivera de pé havia agora a pena verde de uma
flecha; a ponta e o cabo estavam enterrados na neve.
"Impossível!", ela pensou, mas era verdade, pois outra flecha bateu ruidosamente
na armadura de Iorek, que estava de pé acima dela.
Não eram as bruxas de Serafina Pekkala; eram de outro clã.
Ficaram voando em círculos, mais de uma dúzia delas, dando rasantes para atirar
uma flecha e tornando a subir depressa, e Lyra praguejou, dizendo todos os palavrões
que sabia. Iorek Byrnison deu ordens rápidas. Era evidente que os ursos tinham prática
em lutar contra bruxas, pois no mesmo instante eles se colocaram em posição
defensiva, e as bruxas passaram ao ataque. Elas só conseguiam acertar no alvo se
atirassem de perto, e para não desperdiçar flechas, elas mergulhavam, atiravam a
flecha e no mesmo instante subiam. Mas quando chegavam ao ponto mais baixo do
mergulho, tendo as mãos ocupadas com o arco e a flecha, elas ficavam vulneráveis, e
os ursos saltavam para o alto com as garras estendidas e puxavam as bruxas para o
chão. Várias foram derrubadas assim, e logo liquidadas.
Lyra agachou-se junto a uma rocha, observando. Algumas bruxas atiraram nela,
mas erraram o alvo; e então Lyra, olhando para cima, viu que a maior parte do grupo
se destacava e ia embora.
Se ela ficou aliviada com isso, o alívio não durou mais que uns instantes: da
direção que as bruxas tinham tomado vinham muitas outras, e com elas no céu havia
um grupo de luzes brilhantes; e vindo do outro lado da planície de Svalbard, sob a
radiância da Aurora Boreal, ela ouviu um som que abominava: o pulsar de um motor a
gás. O zepelim estava chegando, trazendo a bordo a Sra. Coulter e sua tropa.
Iorek rosnou uma ordem, e os ursos tomaram outra formação. Lyra ficou
observando enquanto eles preparavam o lançador de fogo. A vanguarda da esquadrilha
de bruxas também viu isto e a saraivada de flechas recomeçou, mas os ursos
confiavam em suas armaduras e trabalharam depressa para montar o aparelho: um
braço comprido que se estendia para o alto em ângulo e uma cuia com um metro de
diâmetro; e um grande tanque de ferro coberto de fumaça e vapor.
Enquanto ela observava, surgiu uma labareda brilhante, e uma equipe de ursos
bem treinados pôs-se em ação. Dois deles baixaram o braço do lançador de fogo,
outro jogou pás de fogo dentro da cuia e veio a ordem de disparo; o enxofre flamejante
foi lançado para o céu escuro.
As bruxas estavam tão apinhadas no céu acima deles que três delas caíram no
primeiro tiro, mas logo ficou óbvio que o verdadeiro alvo era o zepelim. O piloto nunca
tinha visto um lançador de fogo, ou então subestimava o poder da arma, pois continuou
voando diretamente para os ursos, sem subir ou desviar-se.
Então ficou claro que eles também tinham uma arma poderosa no zepelim: uma
metralhadora montada no nariz da gôndola. Lyra viu centelhas voando da armadura de
alguns ursos, e viu-os enrodilhar-se para se protegerem, antes de ouvir o ruído das
balas. Ela gritou com medo.
– Eles estão seguros – disse Iorek Byrnison. – Essas balas de brinquedo não
conseguem furar uma armadura.
O lançador de fogo funcionou de novo: desta vez uma massa de enxofre em
chamas foi jogada para o alto e atingiu a gôndola, explodindo numa cascata de brasas.
O zepelim fez uma curva para a esquerda e afastou-se num grande arco antes de
voltar para o grupo de ursos que trabalhavam depressa junto ao lançador de fogo.
Enquanto o zepelim se aproximava, o braço da arma descia; a metralhadora cuspiu
balas, e dois ursos caíram, arrancando um rugido baixo de Iorek Byrnison; quando a
aeronave estava quase acima deles, um urso gritou uma ordem, e o braço do aparelho
foi erguido.
Desta vez, o enxofre foi lançado contra o balão de gás do zepelim. A estrutura
rígida segurava uma cobertura de seda impermeabilizada que continha o hidrogênio, e,
embora ela fosse suficientemente forte para resistir a pequenos golpes, o peso de toda
aquela carga de mineral em chamas foi demais: a seda rasgou-se de um lado a outro e
o enxofre e o hidrogênio encontraram-se, numa catástrofe de chamas.
No mesmo instante, a seda ficou transparente; todo o esqueleto do zepelim ficou
visível, escuro contra o inferno vermelho e amarelo, e flutuou no ar pelo que parecia ser
um tempo impossivelmente longo antes de cair devagar, quase com relutância.
Pequenas figuras, escuras contra a neve e o fogo, saíram dele cambaleando ou
correndo, e as bruxas desceram para ajudar a arrastá-los das chamas. Em menos de
um minuto, o zepelim tinha se tornado uma massa de metais retorcidos, fumaça e
algumas chamas esparsas. Mas os soldados a bordo, e os outros também (embora
Lyra estivesse distante demais para identificar a Sra. Coulter, sabia que ela estava lá),
não perderam tempo; com a ajuda das bruxas, eles arrastaram e armaram a
metralhadora e continuaram o combate em terra firme.
– Vamos – disse Iorek. – Eles vão aguentar muito tempo.
Ele rugiu, e um grupo de ursos destacou-se e atacou o Banco direito dos tártaros.
Lyra sentia a vontade que ele tinha de estar lá também, mas os nervos dela gritavam
para que partissem, e sua mente estava cheia de imagens de Roger e Lorde Asriel; e
Iorek Byrnison sabia, pois deu as costas à luta e começou a subir a montanha,
deixando seus ursos combatendo os tártaros.
Enquanto subiam, Lyra forçava os olhos para enxergar à frente, mas nem mesmo
o olhar de coruja de Pantalaimon conseguia vislumbrar qualquer movimento no Banco
da montanha que eles estavam subindo. Porém as marcas do trenó de Lorde Asriel
estavam claras, e Iorek seguia-as rapidamente, saltando através da neve, fazendo-a
subir atrás de si. O que acontecia atrás deles era exatamente isto: algo que havia
ficado para trás. Lyra sentia que estava deixando o mundo para trás, de tão distante e
decidida que estava, de tão alto que estavam subindo, de tão estranha e misteriosa a
luz que os banhava.
– Iorek, você vai encontrar Lee Scoresby?
– Vivo ou morto, vou encontrar .
– E se vir Serafina Pekkala...
– Eu conto a ela o que você fez.
– Obrigada, Iorek – ela disse.
Por algum tempo, ficaram em silêncio. Lyra sentiu-se cair numa espécie de transe
que não era dormir nem estar acordada, quase um estado de sonho consciente no qual
ela sonhava que estava sendo carregada por ursos para uma cidade nas estrelas.
Ia contar isto a Iorek Byrnison quando ele parou.
– Os rastros continuam em frente, mas eu não posso - disse ele.
Lyra saltou para o chão e parou ao lado dele. Estavam de pé na beira de um
abismo. Era difícil dizer se se tratava de uma fenda no gelo ou uma fissura na rocha,
mas isto não fazia diferença. O que importava era que o precipício mergulhava na
escuridão insondável.
E o rastro do trenó de Lorde Asriel chegava até a borda... e ia em frente, através
de uma ponte de neve compactada.
Era evidente que a ponte tinha sentido o peso do trenó, pois havia nela uma
rachadura junto à outra borda do abismo, e a superfície da ponte perto da rachadura
tinha cedido quase meio metro. Poderia suportar o peso de uma criança, mas nunca o
de um urso de armadura.
E o rastro de Lorde Asriel atravessava aponte e subia a montanha do outro lado.
Se Lyra continuasse, teria que ir sozinha. Ela voltou-se para Iorek Byrnison.
– Tenho que atravessar-declarou. – Obrigada por tudo que fez por mim. Não sei o
que vai acontecer quando eu alcançar Lorde Asriel. Podemos morrer todos, mesmo
que eu não chegue até lá. Mas se eu voltar, virei fazer uma visita para agradecer mais
uma vez, Rei Iorek Byrnison.
Ela colocou a mão na cabeça dele, e ele assentiu delicadamente.
–Adeus, Lyra da Língua Mágica – disse.
Com o coração apertado e dolorido, ela colocou um pé na ponte. A neve estalou
sob seu peso, e Pantalaimon voou para pousar na outra extremidade da ponte e
encorajá-la a prosseguir.
Ela deu um passo após outro, perguntando-se a cada passo se não seria melhor
correr até o outro lado e dar um pulo para a margem ou ir devagar como estava
fazendo, pisando de leve. Na metade do percurso, ela ouviu outro estalido da neve;
perto de seus pés, um pedaço de gelo despencou no abismo, e a ponte cedeu mais
alguns centímetros.
Ela ficou imóvel. Pantalaimon, em forma de leopardo, estava agachado, pronto
para saltar e agarrá-la.
A ponte aguentou. Ela deu outro passo, mais outro, e então sentiu que alguma
coisa cedia sob seus pés e saltou para a borda com toda a força que tinha. Aterrissou
de barriga na neve e no mesmo instante a ponte inteira caía no abismo.
Pantalaimon tinha as garras cravadas nas peles do agasalho da menina.
Depois de um minuto, ela abriu os olhos e rastejou para longe da borda. Já não
havia caminho de volta. Ela ficou de pé e levantou a mão para o urso que a observava.
Iorek Byrnison ergueu-se nas patas traseiras para despedir-se, e então virou-se e
desceu a montanha correndo, para ir ajudar seus súditos na batalha contra a Sra. Coulter e os soldados do zepelim.
Lyra estava sozinha.

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