sexta-feira, 17 de outubro de 2014

22h40

Fuji.
Deixo Adam, Kim e Willow no saguão e saio cambaleando pelos corredores do hospital.
Só percebo que estou procurando pela ala da pediatria quando chego até lá. Choro enquanto
caminho pelos corredores. Passo pelos quartos onde há crianças de quatro anos num sono
inquieto, pois no dia seguinte farão a cirurgia para retirada das amígdalas, depois, passo pela
UTI neonatal onde há bebês do tamanho do meu punho, com mais aparelhos ligados neles do
que há em mim. Em seguida, vejo a ala de oncologia pediátrica onde crianças carecas em seus
leitos dormem debaixo de murais cheios de arco-íris e balões presos. Estou procurando por
ele, mesmo sabendo que não vou encontrá-lo. Ainda assim, preciso continuar procurando.
Imagino o rosto de Teddy, seus cachinhos loiros. Adoro enfiar o meu rosto naqueles
cachinhos, e sempre fiz isso, desde que ele era bebê. Esperava pelo dia em que ele se
enchesse disso e me afastasse, dizendo: “Você está me deixando com vergonha”, do mesmo
jeito que ele fazia quando o papai berrava nos jogos de T-ball. Mas até agora, isso não
aconteceu. Ainda continuo mergulhando nos cachos dele sem a menor restrição. Até agora.
Mas não há mais até agora. Acabou.
Imagino-me fazendo isso pela última vez, e não consigo fazer sem me ver chorando, minhas
lágrimas alisando aqueles cachinhos.
Teddy nunca vai passar do T-ball para o beisebol. Nunca vai ter um bigode. Nunca vai
entrar numa briga, nem caçar um cervo, nem beijar uma garota, nem fazer sexo, nem se
apaixonar, nem casar e nem ser pai de uma criança com cachinhos dourados. Sou dez anos
mais velha que ele, mas sinto como se já tivesse vivido muito mais que isso. É injusto. Se
alguém de nós deveria ficar para trás, se alguém de nós merecesse a oportunidade de viver
mais, esse alguém deveria ser ele.
Corro pelo hospital como se estivesse sendo perseguida por um animal selvagem. Teddy?,
chamo. Onde você está? Volte para mim!
Mas ele não vai voltar. Sei que é inútil. Desisto e me arrasto de volta para a UTI. Quero
quebrar as portas automáticas. Esmurrar o balcão das enfermeiras. Quero que tudo se acabe.
Quero o meu fim. Não quero ficar aqui. Não quero este hospital. Não quero ficar neste estado
suspenso em que posso ver as coisas acontecendo e tenho consciência do que estou sentindo,
sem, de fato, sentir. Não posso gritar até sentir a minha garganta doer, nem quebrar a janela
com meu punho até ver minha mão sangrar, nem puxar meus cabelos até que a dor ultrapasse
aquela que sinto no meu coração.
Encaro a mim mesma agora, a Mia “viva” que está deitada na cama do hospital. Sinto uma
explosão de fúria. Se pudesse dar um tapa no meu próprio rosto inexpressivo, era isso que eu
faria.
Mas, em vez disso, sento-me e fecho os olhos, e começo a desejar que tudo aquilo acabe.
Mas não consigo. Não consigo me concentrar porque, de repente, há muito barulho. Meus
monitores começam a apitar sem parar e duas enfermeiras correm em minha direção.
— Pressão arterial e pulsação caindo — grita uma delas.
— Ela está com taquicardia — grita a outra. — O que aconteceu?
— Código azul, código azul na traumatologia — declara o residente.
Logo um médico aparece junto às enfermeiras, esfregando os olhos cansados, de sono, e
com olheiras profundas. Ele puxa as cobertas e levanta a minha camisola de hospital. Estou
nua da barriga para baixo, mas aqui ninguém repara nessas coisas. O médico põe a mão sobre
a minha barriga, que está inchada e dura. Ele arregala os olhos e depois os fecha.
— O abdômen está rígido. Precisamos fazer um ultrassom — diz ele com a voz nervosa.
A enfermeira Ramirez sai correndo até os fundos da sala e volta com algo que parece um
laptop e um cabo longo ligado nele. Ela passa um gel na minha barriga e o médico, o cabo.
— Droga. Está com fluido demais — diz ele. — A paciente passou por alguma cirurgia
hoje à tarde?
— Sim, retirada do baço — responde a enfermeira Ramirez.
— Pode ser algum vaso sanguíneo que não foi cauterizado — acrescenta o médico. — Ou
algum pequeno vazamento causado por perfuração no intestino. Foi acidente de carro, correto?
— Sim, a paciente foi transferida hoje pela manhã.
O médico folheia o meu prontuário.
— Foi o doutor Sorensen quem fez a cirurgia. Ele ainda está de plantão. Levem-na para o
centro cirúrgico. Vamos ter de abri-la para verificar de onde vem o líquido, antes que o
quadro piore. Deus do céu. Traumatismo craniano, pulmão em colapso. Esta garota está pior
do que se um trem tivesse passado por cima dela.
A enfermeira Ramirez lança um olhar de repulsa para o médico, como se ele tivesse
acabado de me xingar.
— Srta. Ramirez! — repreende a enfermeira rabugenta sentada à mesa. — Você já tem os
seus pacientes para cuidar. Vamos entubar essa garota e transferi-la para o centro cirúrgico.
Vai ser melhor para ela assim do que ficar fazendo hora aqui!
As enfermeiras se apressam para retirar os monitores e os cateteres e colocar outro tubo na
minha garganta. Dois atendentes chegam rapidamente com uma maca e me transferem da cama
para ela. Continuo nua da cintura para baixo enquanto me tiram dali, mas antes que eu chegue à
porta dos fundos, a enfermeira Ramirez grita: “Esperem!” e então, gentilmente ela ajeita a
minha camisola, cobrindo as minhas pernas. Ela tamborila o dedo três vezes sobre a minha
testa, como se fosse um algum tipo de código Morse. E então, sou levada pelo labirinto de
corredores até o centro cirúrgico, para mais uma sessão de cortes, mas desta vez, não sigo o
meu corpo. Desta vez fico para trás, aqui na UTI.
Estou começando a entender agora. Quer dizer, não entendo exatamente tudo. Não funciona
como se de alguma forma eu tivesse controle sobre o meu corpo, e pudesse romper um vaso
sanguíneo dentro de mim para fazê-lo começar a sangrar. Não é como se eu quisesse outra
cirurgia. Mas Teddy se foi. Mamãe e papai também. Hoje de manhã, saí com a minha família
para um passeio de carro. E agora estou aqui, mais sozinha do que nunca. Tenho dezessete
anos. As coisas não deveriam ter acontecido dessa forma. Não é isso que deveria ter
acontecido com a minha vida.
Num dos cantos da UTI, em meio ao silêncio, começo a pensar de verdade sobre todas as
coisas terríveis que venho ignorando até agora. Como seria se eu decidisse ficar? Como seria
acordar e descobrir que sou órfã? Nunca mais sentir o cheiro do cachimbo do meu pai? Nunca
mais ficar ao lado da minha mãe, conversando baixinho enquanto lavamos a louça? Nunca
mais ler para Teddy um capítulo do Harry Potter? Ficar sem eles?
Não estou certa de que este é o mundo ao qual pertenço. Não tenho certeza se quero
acordar.

***

Em toda a minha vida, só fui a um único funeral e era de uma pessoa que eu mal conhecia.
Eu até poderia ter ido ao funeral da minha tia-avó, Glo, depois que ela morreu vítima de
uma pancreatite aguda. Mas o testamento deixou tudo muito claro em relação aos seus últimos
desejos. Nada daquele ritual tradicional, nem sepultamento no jazigo da família. Ela preferiu a
cremação e que suas cinzas fossem jogadas em algum lugar das montanhas Serra Nevada
durante uma cerimônia sagrada dos índios americanos. Vovó ficou muito irritada com isso, e
com a tia Glo de modo geral, que segundo a vovó estava sempre tentando chamar a atenção
para o fato de ela ser diferente, mesmo depois de morta. A vovó acabou não comparecendo à
cerimônia onde as cinzas seriam jogadas e, se ela não iria, não havia motivos para que
fôssemos também.
Há dois anos, Peter Hellman, meu amigo trombonista da colônia de férias do conservatório,
morreu, mas só fiquei sabendo depois que voltei para a colônia e ele não estava lá. Poucos
sabiam que ele tinha linfoma. Isso era algo curioso na colônia de férias: você fica
extremamente próximo às pessoas durante o verão, mas há algum tipo de regra, que não está
escrita em lugar nenhum e que faz com que a gente não mantenha contato durante o resto do
ano. Nossa amizade ali era uma amizade de verão. De qualquer modo, fizemos um concerto na
colônia de férias em memória de Peter, mas não foi um funeral de verdade.


Kerry Gifford era um músico da nossa cidade, um dos amigos de mamãe e papai.
Diferentemente do papai e de Henry, que com o passar dos anos formaram família e
diminuíram o ritmo, tornando-se menos músicos e mais apreciadores de música, Kerry
continuou solteiro e fiel ao seu primeiro e verdadeiro amor: tocar. Ele tocava em três bandas
diferentes e ganhava a vida assim, tocando numa casa de shows local, uma combinação
aparentemente perfeita, já que pelo menos uma de suas bandas se apresentava ali uma vez por
semana. Sendo assim, Kerry só precisava subir no palco e deixar que alguém assumisse o
controle do som, ainda que algumas vezes ele mesmo se enfiasse no meio dos instrumentos
para ajustar os monitores por sua própria conta. Conheço Kerry desde muito pequena, ia aos
seus shows com meus pais, e voltei a encontrá-lo quando Adam e eu começamos a namorar e
eu passei a frequentar shows.
Certa noite, ele estava trabalhando, fazendo o som para uma banda chamada Clod, em
Portland, quando simplesmente, de repente, caiu em cima da aparelhagem. Quando a
ambulância chegou, Kerry já estava morto. Aneurisma cerebral.
A morte de Kerry causou um grande alvoroço na nossa cidade. Ele era considerado uma
espécie de modelo, um exemplo de pessoa, um cara sincero com uma personalidade grandiosa
e um punhado de dreadlocks rebeldes de garoto branco. E Kerry era jovem, tinha apenas trinta
e dois anos. Todo mundo que conhecíamos estava planejando comparecer ao funeral, que
aconteceria na cidade onde ele cresceu, nas montanhas, a algumas horas de viagem de carro.
Mamãe e papai iriam, claro, e Adam também. Então, mesmo me sentindo uma penetra por
aparecer assim, no funeral dele, decidi ir. Teddy ficou com meus avós.
Seguimos para a cidade natal de Kerry com uma porção de gente, todos apertados no carro
com Henry e Willow, que na ocasião estava com uma barriga de grávida tão grande que o
cinto de segurança nem fechava. Todos nos alternamos, contando histórias sobre Kerry. Ele
era um esquerdista declarado que decidiu protestar contra a guerra do Iraque, e para isso,
junto a uns caras, se vestiu de mulher e foi até o departamento do Exército para se alistar.
Kerry, que era ateu e mão de vaca, odiava a maneira como o Natal se tornara uma fonte de
consumismo e organizava uma celebração anual contra o Natal, num clube, quando promovia
um concurso musical para que as bandas tocassem as versões mais distorcidas das músicas
natalinas. Depois, ele convidava todos a jogarem os seus presentes baratos no meio do pátio.
E, ao contrário do boato local, Kerry não queimava os presentes numa fogueira; papai me
contou que ele os doava para o São Vicente de Paulo.
Enquanto falávamos sobre Kerry, no carro, o clima ficou agradável e divertido, como se
estivéssemos indo para o circo, não para um funeral. Mas aquilo parecia o certo, parecia algo
digno de Kerry, que sempre foi uma pessoa agradável e cheia de energia.
Contudo, a cerimônia do funeral foi exatamente o contrário, totalmente deprimente — e não
apenas porque uma pessoa jovem havia morrido de forma trágica e sem um motivo aparente, a
não ser pela falta de sorte com uma artéria. A cerimônia ocorreu numa igreja enorme, o que
pareceu estranho pelo fato de Kerry ter sido ateu, mas essa parte eu consegui entender. Onde
mais poderiam organizar um funeral? O problema foi a cerimônia em si. Estava na cara que o
pastor nunca tinha visto Kerry porque, quando conversamos com ele, falamos sobre coisas
genéricas como sobre o coração generoso que ele tinha, e que a sua partida, ainda que fosse
algo triste, seria a sua “recompensa divina”.
E, em vez de receber elogios dos seus companheiros de bandas ou dos vizinhos com quem
ele conviveu nos seus últimos quinze anos, algum tio dele de Boise levantou-se e começou a
falar sobre como foi ensinar Kerry a andar de bicicleta quando ele tinha apenas seis anos,
como se aprender a andar de bicicleta tivesse sido o momento de decisão da vida de Kerry. O
homem terminou o discurso nos assegurando que Kerry estava caminhando ao lado de Jesus
agora. Percebi que minha mãe estava ficando com as bochechas vermelhas depois de ter
ouvido aquilo, e comecei a ficar preocupada, pensando que ela talvez fosse dizer algo. Às
vezes, íamos à igreja, então não é que minha mãe tivesse algo contra religião, mas Kerry era
totalmente contra, e minha mãe defendia com unhas e dentes as pessoas que ela amava, tanto
que tomava para si qualquer ofensa direcionada a essas pessoas. Os amigos de minha mãe
muitas vezes a chamavam de Mamãe Urso por causa disso. Parecia que ela estava prestes a
soltar fogo pelos ouvidos quando a cerimônia terminou com a igreja inteira entoando a versão
de Bette Midler da música Wind beneath my wings.
— É bom mesmo que Kerry esteja morto, porque com um funeral desse, ele perderia a
cabeça — disse Henry.
Depois da cerimônia, decidimos não participar do almoço formal e fomos para um
restaurante.
— Wind beneath my wings? — perguntou Adam, segurando a minha mão e soprando-a, que
era o que ele fazia para esquentar os meus dedos eternamente frios. — E por que não Amazing
Grace? Ela ainda é tão tradicional...
— Mas ela não te dá vontade de vomitar — interveio Henry. — Mas bem que poderia ter
sido melhor. Podiam ter tocado Three little birds do Bob Marley. Seria uma música mais
digna de Kerry. Algo pra homenagear o cara que ele foi.
— Aquele funeral não foi para celebrar a vida de Kerry — resmungou a mamãe, arrancando
o cachecol. — Foi para repudiá-la. Como se tivessem matado ele de novo.
Meu pai colocou as mãos sobre os punhos cerrados da minha mãe.
— Ah, corta essa. Foi só uma música.
— Não foi só uma música — rebateu minha mãe, puxando a mão de volta. — Foi tudo o que
ela representou. Toda aquela farsa... Você, mais do que ninguém, deveria entender isso.
Meu pai deu de ombros e esboçou um sorriso sem graça.
— Talvez sim. Mas não posso sentir raiva da família dele. Acho que o funeral foi a maneira
que eles encontraram de resgatar a presença do filho.
— Ah, por favor! — exclamou a mamãe, balançando a cabeça. — Se eles quisessem
resgatar o filho, por que é que não respeitaram a vida que ele escolheu ter? Por que eles nunca
o visitaram? Nem apoiaram a decisão dele de viver da música?
— Não sabemos o que se passa na cabeça deles — prosseguiu meu pai. — Não vamos
julgá-los assim, dessa maneira tão dura. Deve ser muito difícil entender o próprio filho.
— Não posso acreditar que você esteja defendendo eles — retrucou minha mãe.
— Mas não estou. Só acho que você está tirando as suas próprias conclusões por causa de
uma música que tocaram lá.
— Acho que você está confundindo ser compreensivo com ser um idiota!
Mal se pôde perceber a expressão de desagrado do meu pai, mas ela foi o suficiente para
que Adam apertasse a minha mão e que Henry e Willow trocassem um olhar. Henry
intercedeu, para defender o meu pai, imagino:
— É que as coisas são diferentes para você e para os seus pais. Eles são tradicionais, mas
sempre te apoiaram, e mesmo nos seus tempos de maior rebeldia, você sempre foi um bom
filho e um bom pai. Sempre presente no jantar de domingo — explicou.
Mamãe soltou uma gargalhada, como se a explicação de Henry confirmasse o ponto de vista
dela. Todos nos viramos para ela e a nossa expressão de choque deve tê-la desconcertado,
quebrado a magia do seu discurso inflamado.
— É óbvio que estou muito emotiva agora — disse ela.
O papai pareceu compreender que aquilo era o máximo do pedido de desculpas que ele
poderia receber agora. Ele voltou a segurar a mão dela e dessa vez, minha mãe não a afastou.
Meu pai fez uma pausa, hesitando antes de falar.
— Só acho que os funerais são como a própria morte. Você pode ter os seus desejos e
planos, mas, no final das contas, nada está sob o seu controle.
— Nada disso — retrucou Henry. — Não se você compartilhar os seus desejos com as
pessoas certas. — Ele se virou para Willow e se aproximou do barrigão dela, para dizer: —
Então, escute, família. No meu funeral, não quero que ninguém se vista de preto. E, quanto à
música, quero algo bem pop e tradicional, tipo alguma coisa da The Mr. T Experience. — Ele
voltou a erguer o olhar para Willow. — Entendeu?
— The Mr. T Experience. Pode deixar que vou providenciar.
— Obrigado. E você, querida? Qual é o seu desejo? — perguntou a Willow.
Sem hesitar, Willow respondeu:
— Quero que toquem P.S. you rock my world , da Eels. E quero um daqueles funerais
verdes, em que te enterram num jardim, bem debaixo de uma árvore. Então o funeral tem de
ser em meio à natureza. Mas nada de flores, ou seja, tratem de me dar todas as peônias que
desejarem enquanto eu estiver viva, mas depois que eu estiver morta, melhor pegar o dinheiro
das flores para fazer doações a instituições de caridade, como a Doctors Without Borders, por
exemplo.
— Você pensou em todos os detalhes — disse Adam. — Isso é coisa de enfermeira?
Willow deu de ombros.
— De acordo com a Kim, isso significa que você é uma pessoa profunda — falei. Ela diz
que o mundo é dividido em pessoas que imaginam os seus funerais e em pessoas que não o
fazem, e naturalmente, as pessoas espertas e com talento artístico entram na primeira
categoria.
— E em qual categoria você está? — perguntou-me Adam.
— Eu gostaria do Requiem de Mozart — respondi. Depois virei para mamãe e papai e
disse: — Não se preocupem, não estou planejando o suicídio nem nada do tipo.
— Por favor, hein — disse mamãe, com a expressão mais aliviada enquanto mexia o seu
café. — Quando eu era menina, ficava fantasiando sobre o meu funeral. Meu pai endividado e
todos os meus amigos que em algum momento me magoaram chorariam sobre o meu caixão,
que seria vermelho, obviamente, e tocariam músicas de James Taylor.
— Deixe-me adivinhar — disse Willow. — Fire and rain?
A mamãe fez que sim com a cabeça e as duas começaram a gargalhar e logo, todos à mesa
caíram na risada. E então, de repente, estávamos todos chorando, até eu, que não conhecia
Kerry muito bem. Chorando e rindo, rindo e chorando.
— E hoje em dia? — perguntou Adam à mamãe depois que ela se acalmou. — Continua
tendo uma queda pelo sr. Taylor?
A mamãe parou e ficou piscando sem parar, que era exatamente o que ela fazia quando
estava pensando em alguma coisa. Então ela esticou o braço e acariciou o rosto do papai, uma
rara demonstração pública de afeto.
— No meu cenário ideal, meu marido coração mole e eu morremos juntos, uma morte súbita
e rápida, quando tivermos noventa e dois anos. Só não sei muito bem como. Talvez, estaremos
em algum safári na África (porque seremos ricos, futuramente). Ei! Esse é o nosso sonho, não
é? E aí, vamos pegar alguma daquelas doenças exóticas, vamos dormir, nos sentindo muito
bem e nunca mais acordaremos. E nada de James Taylor. Mia vai tocar no nosso funeral. Isto
é: se conseguirmos tirá-la da Filarmônica de Nova York.
Papai estava errado. Sim, é verdade que talvez não possamos controlar o nosso próprio
funeral, mas às vezes você tem como escolher a própria morte. E não consigo parar de pensar
que parte do desejo de mamãe se tornou realidade. Ela partiu com papai. Mas não vou tocar
no funeral dela. É provável que o seu funeral seja o meu também. Há algo de reconfortante
nisso. Morrer como uma família, sem deixar ninguém para trás. Mesmo assim, não posso
deixar de pensar que mamãe não se sentiria feliz com isso. Na verdade, a Mamãe Urso ficaria
extremamente furiosa pelo desdobramento que as coisas tiveram hoje.

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