sábado, 18 de outubro de 2014

23- A Ponte Para As Estrelas

QUANDO O urso desapareceu de vista, Lyra sentiu que uma grande fraqueza
a dominava, e às cegas tateou em busca de Pantalaimon. – Ah, meu querido Pan,
não posso continuar! Estou tão apavorada, tão cansada, viajei tanto, estou
morrendo de medo! Queria que outra pessoa estivesse no meu lugar, eu juro!
O daemon encostou-se ao pescoço dela, morno e reconfortante.
– Não sei o que fazer- Lyra soluçou. – É demais para nós, Pan, nós não
vamos conseguir...
Ela agarrou-se a ele, ninando-o e deixando os soluços ecoarem pela neve.
Pensava: mesmo se a... a Sra. Coulter chegasse primeiro, isto não ia salvar
Roger. Ela levaria o menino para Bolvangar ou coisa pior, e me mataria por
Vingança...
– Por que eles fazem essas coisas, Pan? Será que todos eles odeiam tanto assim
as crianças, aponto de querer fazer isso? Por quê?
Mas Pantalaimon não sabia responder; tudo que podia fazer era apertá-la com
força. Aos poucos, enquanto a tempestade de medo se acalmava, ela recuperou a
confiança em si. Afinal, ela era Lyra! Podia estar com frio e com medo, mas era Lyra!
– Eu queria... – começou a dizer, mas parou; querer não levava a nada.
Com um último suspiro trêmulo, ela estava pronta para seguir em frente.
A esta altura, a lua morrera, e o céu ao sul estava profundamente escuro, embora
milhões de estrelas ali brilhassem como diamantes no veludo. A Aurora Boreal, porém,
brilhava 100 vezes mais que elas. Lyra nunca a tinha visto tão brilhante e espetacular; a
cada movimento, novos milagres de luz dançavam pelo céu. E por trás da inconstante
cortina de luz, aquele outro mundo, a cidade iluminada pelo sol, mostrava-se, clara e
sólida.Quanto mais Lyra e Pantalaimon subiam, mais a terra árida estendia-se abaixo
deles. Ao norte estava o mar congelado, com rachaduras onde duas placas de gelo
tinham colidido, mas, exceto isto, plano e infinito, chegando até o próprio Pólo e indo
além dele, sem características, sem vida, sem cor, nu como Lyra jamais poderia ter
imaginado. Para o leste e para o oeste, erguiam-se mais montanhas de picos altos e
pontudos, as escarpas cobertas de neve e cortadas pelo vento em lâminas aguçadas
como cimitarras. Para o sul, estava o caminho por onde tinham vindo, e Lyra olhou para
trás com emoção, esperando ver seu querido amigo Iorec Byrnison e sua tropa; mas
nada se movia na planície. Ela nem sequer podia ter certeza de estar enxergando os
restos do zepelim ou a neve manchada de vermelho em volta dos cadáveres dos
guerreiros.
Pantalaimon levantou vôo e voltou para o pulso dela em forma de coruja.
– Estão logo atrás do pico! – disse. – Lorde Asriel preparou todos os seus
instrumentos, e Roger não consegue fugir...
Enquanto ele falava, a Aurora Boreal piscou e perdeu intensidade, como uma
lâmpada anbárica no fim do tempo de uso, e então desapareceu de vez. Na penumbra,
porém, Lyra sentia a presença do Pó, pois o ar parecia cheio de más intenções, como
formas de pensamentos ainda por nascer.
Na escuridão que a envolvia, ela ouviu uma voz infantil:
– Lyra! Lyra!
– Estou indo! – ela gritou de volta, e cambaleou para cima, caindo, levantando,
lutando, esforçando-se, já no final de suas forças, porém avançando sem parar através
da neve que brilhava fantasmagoricamente.
– Lyra! Lyra!
– Estou quase chegando – ela ofegou. – Quase chegando, Roger!
Pantalaimon, em sua aflição, transformava-se rapidamente: leão, arminho, águia,
gato-do-mato, salamandra, coruja, leopardo, todas as formas que ele já havia tomado,
um caleidoscópio de formas em meio ao Pó...
– Lyra!
Ela chegou ao topo e viu o que estava acontecendo.
A uns 50 metros de distância, Lorde Asriel estava torcendo juntos dois fios que
levavam ao trenó tombado de lado, sobre o qual havia uma fila de baterias, vidros e
peças de aparelhagem, já cobertos de cristais de gelo. Ele vestia peles grossas e tinha
o rosto iluminado pela chama de uma lamparina de nafta. Deitada como a Esfinge ao
lado dele estava seu daemon, movimentando a cauda preguiçosamente sobre a neve, a
linda pelagem brilhando.
Em sua boca estava o daemon de Roger.
A pequena criatura lutava, arranhava, mordia, passando de pássaro a cachorro,
depois gato, rato, outra vez pássaro, incessantemente chamando por Roger, a poucos
metros de distância, também lutando, tentando dominar o pânico e a dor e gritando de
sofrimento e de frio. Ele chamava o nome de seu daemon e chamava Lyra; ele correu
para Lorde Asriel e agarrou-lhe o braço, mas Lorde Asriel jogou-o longe. Ele tornou a
tentar, chorando e implorando, mas Lorde Asriel jogou-o no chão outra vez.
Estavam na beira de um abismo; atrás deles havia apenas as trevas infinitas.
Estavam mais de 300 metros acima do mar congelado.
Lyra enxergou tudo isso à luz das estrelas; mas então, enquanto Lorde Asriel
ligava seus fios, a Aurora Boreal iluminou-se inteira outra vez, como a centelha de
poder mortal que brinca entre dois terminais, só que neste caso um deles tinha mais de
mil quilômetros de altura e 30 mil de comprimento. A Aurora Boreal mergulhava e
crescia, ondulando, cintilando, uma gloriosa catarata de luz.
E era controlada por ele...
Ou então ele estava recebendo energia dela, pois havia um fio que saía de um
imenso carretel no trenó e subia diretamente para o céu. Da escuridão surgiu um corvo,
que Lyra identificou como o daemon de uma bruxa. Havia uma bruxa ajudando Lorde
Asriel, e ela levara o fio para as alturas.
E a Aurora brilhava outra vez.
Ele estava quase pronto. Virou-se para Roger e chamou-o, e Roger obedeceu,
sacudindo a cabeça, implorando, chorando, mas sem nada poder fazer.
–Não! Fuja, correndo! – Lyra gritou, lançando-se encosta abaixo. Pantalaimon
saltou sobre a pantera branca e arrancou o daemon de Roger dos dentes dela. O
daemon-pantera saltou sobre ele, e Pantalaimon soltou o outro daemon; ambos,
mudando de forma sem parar, viraram-se e deram combate ao enorme animal.
Ele tentava atingi-los com suas garras afiadas, e seu rugido encobriu até mesmo
os gritos de Lyra. As duas crianças também lutavam contra ele ou contra as formas no
ar, aquelas más intenções que desciam pelos jorros de Pó...
E lá no alto a Aurora Boreal oscilava, e seu brilho iluminava ora um prédio, ora um
lago, ora uma fila de palmeiras, tudo tão perto que dava a impressão de que se podia
passar caminhando de um mundo ao outro.
Lyra deu um pulo e agarrou a mão de Roger, puxando-o com força. Os dois se
desvencilharam de Lorde Asriel e correram de mãos dadas, mas Roger caiu e
contorceu- se, pois a pantera tornara a capturar seu daemon; Lyra conhecia aquela dor
e tentou parar...
Mas não conseguiram parar.
O rochedo estava deslizando debaixo deles.
Uma plataforma de neve, deslizando inexoravelmente para o abismo...
Para o mar congelado, centenas de metros abaixo deles...
– LYRA!
Coração pulsando... Mãos que a agarravam com força...
E lá no alto a maior maravilha: o domo celeste, cravejado de estrelas, profundo,
de repente foi perfurado como se por uma espada.
Um jato de luz, um jato de pura energia liberada como uma flecha lançada por um
arco imenso, disparou para cima. As cortinas de luz e cor que eram a Aurora Boreal
rasgaram-se com um som forte que chegou às extremidades do universo; havia terra
seca no céu...
A luz do sol!
A luz do sol brilhando na pelagem de um macaco dourado...
Pois a descida da prateleira de neve havia cessado; talvez uma protuberância na
encosta tivesse interrompido aqueda. Lyra avistou, na neve remexida do topo da
montanha, o macaco dourado surgir do ar ao lado da pantera e viu os dois daemons se
eriçarem, fortes e atentos. O macaco tinha a cauda ereta, e a pantera balançava a
dela de um lado para outro. Então o macaco estendeu a pata hesitantemente, a
pantera baixou a cabeça em gracioso reconhecimento, os dois se tocaram...
E quando Lyra desviou o olhar deles, viu a própria Sra.Coulter presa nos braços
de Lorde Asriel. A luz brincava em volta deles como raios e centelhas de intensa
energia anbárica. Lyra, impotente, só podia imaginar o que tinha acontecido: a
Sra.Coulter havia conseguido atravessar o abismo e chegar até ali...
Seu pai e sua mãe, juntos!
E num abraço apaixonado: uma coisa inimaginável.
Ela arregalou os olhos. O corpo de Roger estava morto em seus braços, imóvel,
quieto, descansando. Ela ouviu os pais conversando. A mãe disse:
– Eles nunca vão permitir...
– Permitir? – o pai repetiu. – Nós já passamos da fase de pedir permissão como
se fôssemos crianças. Eu tornei possível que qualquer um atravesse se quiser.
– Eles vão proibir! Vão vedar a passagem e excomungar quem tentar!
– Vai ter gente demais querendo passar. Eles não vão conseguir impedir. Isso vai
significar o fim da Igreja, Marisa, o fim do Magisterium, o fim de todos esses séculos
de trevas! Olhe para aquela luz lá no alto: é o sol de outro mundo! Sinta o calor dele na
sua pele, agora!
– Eles são mais poderosos que tudo, Asriel. Você não conhece...
– Eu não conheço? Ninguém no mundo conhece mais do que eu o poder da Igreja!
Mas ela não é suficientemente poderosa para isso. De qualquer maneira, o Pó vai
mudar tudo.
Agora é impossível impedir.
– Era isso que você queria? Sufocar todos nós, matar todos nós com pecado e
trevas?
– Eu queria me libertar, Marisa! E consegui. Olhe, veja as palmeiras balançando
na praia! Está sentindo o vento? É o vento de um outro mundo! Sinta nos cabelos, no
rosto...
Lorde Asriel afastou o capuz do rosto da Sra. Coulter e virou a cabeça dela para
o céu, deslizando os dedos pelos cabelos dela. Lyra observava sem ousar mover um
só músculo.
A mulher agarrou-se a Lorde Asriel como se estivesse tonta e sacudiu a cabeça,
aflita.
– Não, não... Eles estão vindo, Asriel. Sabem para onde eu vinha...
– Então venha comigo para fora deste mundo!
– Não tenho coragem...
– Você? Logo você, não tem coragem? Até sua filha viria. Sua filha teria coragem
para qualquer coisa, envergonhando a mãe dela.
– Então vá com ela, e boa viagem. Ela é mais sua do que minha, Asriel.
– Não. Foi você quem a levou; tentou moldá-la. Naquela época, você a queria.
– Ela era rústica demais, teimosa demais. Deixei passar tempo demais... Mas
onde é que ela está? Segui as pegadas dela até aqui...
– Ainda quer ficar com ela? Duas vezes tentou prendê-la e duas vezes ela fugiu.
Se eu fosse ela, ia sair correndo para não lhe dar uma terceira oportunidade.
As mãos dele, ainda segurando a cabeça dela, de repente ficaram tensas e
puxaram-na para ele num beijo apaixonado. Para Lyra aquilo parecia mais crueldade do
que amor.
Olhando para os daemons dos dois, viu uma cena estranha: a pantera tensa,
agachada, com as garras sobre a carne do macaco dourado, e o macaco relaxado,
feliz, cambaleando na neve.
A Sra. Coulter desvencilhou-se do beijo e disse:
– Não, Asriel, meu lugar é neste mundo, não no outro...
– Venha comigo! – ele disse, em tom urgente e autoritário. – Venha trabalhar
comigo!
– Você e eu não podemos trabalhar juntos.
– Não? Você e eu podemos desmontar o universo e tornar a montar, Marisa!
Podemos encontrar a fonte do Pó e destruí-la para sempre! E você gostaria de fazer
parte dessa grande obra, não minta. Pode mentir sobre todo o resto: sobre o Conselho
de Oblação, sobre os seus amantes... Sim, eu sei de Boreal, e não me importo. Pode
mentir sobre a Igreja, pode até mentir sobre a menina, mas não minta sobre o que
realmente deseja...
E suas bocas novamente se uniram com um desejo avassalador. Seus daemons
brincavam violentamente; a pantera deitou-se de costas, e o macaco passou as garras
na pele macia do pescoço dela, e ela ronronou de prazer.
– Se eu não for, você vai tentar me destruir- disse a Sra.Coulter, desvencilhandose.
– Por que eu iria querer destruir você? – perguntou ele, rindo, com a luz do outro
mundo brilhando em volta da cabeça. – Se vier comigo, se trabalhar comigo, vou me
preocupar com você; se ficar aqui, perderei todo o interesse. Não pense que vou me
lembrar de você por um segundo que seja. Agora: ou fique, para fazer suas maldades
neste mundo, ou venha comigo.
A Sra. Coulter hesitou; fechou os olhos e pareceu oscilar, como se fosse
desmaiar; mas recuperou o equilíbrio e abriu os olhos, que mostravam uma tristeza
bela e infinita.
– Não – disse. – Não vou.
Os dois daemons estavam novamente separados. Lorde Asriel baixou a mão e
mergulhou os dedos fortes nos pêlos da pantera; então virou-se e afastou-se sem outra
palavra. O macaco dourado saltou para os braços da Sra. Coulter soltando pequenos
gemidos de tristeza e estendendo os braços para a pantera que se afastava; o rosto
da Sra. Coulter era uma máscara de lágrimas.
Lyra as via brilhar: eram reais.
Então a mãe dela virou-se, sacudida pelo pranto, e afastou-se montanha abaixo,
desaparecendo de vista. Lyra observou-a friamente, depois ergueu os olhos para o
céu. Nunca tinha visto tamanha maravilha.
A cidade ali flutuando, tão vazia e silenciosa, parecia recém-construída, à espera
de ser ocupada, ou adormecida, à espera de ser despertada. O sol daquele mundo
brilhava neste mundo, tornando douradas as mãos de Lyra, derretendo o gelo no capuz
de pele de lobo que Roger estava usando, tornando transparentes as faces pálidas do
menino, brilhando em seus olhos abertos e cegos.
Ela sentiu-se dilacerada de infelicidade. E de raiva, também.
Poderia ter matado o pai; se pudesse arrancar o coração dele, teria feito isso,
por causa do que ele fizera a Roger. E a ela: ele tinha mentido.
Ela ainda estava abraçada ao corpo de Roger. Pantalaimon dizia alguma coisa,
mas ela estava com o cérebro em tumulto e não escutou até que ele enfiou suas garras
de gato-do-mato na mão dela. Ela pestanejou.
– Que foi? – perguntou.
– O Pó! – ele disse.
– Que é que você está dizendo?
– O Pó. Ele vai encontrar e destruir a fonte do Pó, não é?
– Foi o que ele disse.
– E o Conselho de Oblação, a Igreja, Bolvangar, a Sra.Coulter e o resto, todos
querem a mesma coisa, não é?
– É... Ou que ele pare de afetar as pessoas... Por quê?
– Porque se eles acham que o Pó é ruim, ele deve ser bom. Ela não respondeu;
uma onda de excitação crescia em seu peito. Pantalaimon continuou:
– Nós ouvimos todos falarem sobre o Pó, e eles têm muito medo dele, e sabe de
uma coisa? Nós acabamos acreditando neles, mesmo vendo que tudo que faziam era
errado, perverso e cruel... Pensamos que o Pó devia ser ruim, porque eles eram
adultos e diziam isso. Mas e se não for? E se ele for...
Ela o interrompeu:
– É! E se na verdade ele for bom...
Lyra olhou para Pantalaimon e viu seus olhos verdes de gato-do-mato cintilarem.
Sentiu uma vertigem, como se o mundo inteiro estivesse oscilando sob seus pés.
Se o Pó era uma coisa boa... Se fosse algo a ser procurado e valorizado...
– Nós também podemos procurar o Pó! – ela exclamou.
Era o que ele queria ouvir.
– Podemos encontrar antes dele e...
A enormidade daquela missão silenciou-os. Lyra ergueu os olhos para o céu em
chamas. Tinha consciência de como eram pequenos, ela e seu daemon, comparados
com a majestade e a vastidão do universo; e de como sabiam pouco, em comparação
com os profundos mistérios acima deles.
– Nós podemos, sim – Pantalaimon insistiu. – Chegamos até aqui, não foi?
Podemos conseguir.
– Nós estaremos sozinhos. Iorek Byrnison não vai estar lá para nos ajudar. Nem
Farder Coram, nem Serafina Pekkala, ou Lee Scoresby, ninguém.
– Então só nós. Não importa. De qualquer maneira, não estamos sozinhos como...
Ela sabia que ele estava querendo dizer: " Como Tony Makarios, como aqueles
pobres daemons perdidos em Bolvangar; ainda somos um ser único; nós dois somos
um só."
– E temos o aletômetro – ela completou. – É, acho que temos que fazer isso,
Pan. Vamos subir lá e procurar o Pó, e quando encontrarmos, vamos saber o que
fazer.
O corpo de Roger jazia imóvel nos braços dela. Ela o colocou no chão
carinhosamente.
– E faremos – finalizou.
Ela voltou-se para o outro lado. Atrás deles, ficavam a dor, a morte e o medo; à
frente deles, a incerteza, o perigo e mistérios inimagináveis. Mas eles não estavam
sozinhos.
Assim, Lyra e seu daemon deram as costas ao mundo em que nasceram, virando-se
na direção do sol, e caminharam para o céu.

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