sábado, 18 de outubro de 2014

3- A Jordan de Lyra

    A Faculdade Jordan era a mais imponente e mais rica faculdade de Oxford.
    Era provavelmente a maior, também, embora ninguém tivesse certeza disso. Os prédios, agrupados ao redor de três quadriláteros irregulares, datavam de todos os períodos, do início da Idade Média até meados do século XVIII. Sua arquitetura não tinha sido planejada; ela crescera aos poucos, com o passado e o presente  misturando-se a cada esquina, e o efeito final era de uma imponência confusa e
decadente. Sempre havia uma parte quase desabando, e, durante cinco gerações,
a mesma família –os Parslow trabalhava para a Faculdade em tempo integral,
como pedreiros. O Sr. Parslow atual estava ensinando a profissão ao filho; os
dois, com mais três empregados, subiam como formigas pelos andaimes que
tinham erigido na esquina da Biblioteca, ou sobre o telhado da Capela, e puxavam para
cima blocos de pedra, rolos de chumbo brilhante, vigas de madeira.
    A Faculdade possuía fazendas e propriedades por toda a Britânia. Dizia-se que
era possível caminhar de Oxford a Bristol, numa direção, ou de Oxford a Londres, em
outra, e nunca sair das terras da Jordan. Em toda parte do reino, havia fornos a lenha e
tanques de tintura, florestas e oficinas de naves atômicas que pagavam aluguel à
Jordan, e todo primeiro dia de cada trimestre o Tesoureiro e seus funcionários
somavam tudo, anunciavam o total ao Concilium e encomendavam um par de cisnes
para o Banquete.
    Parte do dinheiro era reinvestida – o Conselho acabara de aprovar a compra de
um prédio de escritórios em Manchester – , e o resto era usado para pagar os
modestos salários dos Catedráticos e os salários dos criados (e dos Parslow, e de
mais de uma dúzia de famílias de artesãos e comerciantes que serviam à Faculdade),
para manter a adega bem provida de vinhos, para comprar livros e anbarógrafos para a
imensa Biblioteca que ocupava um lado inteiro do Quadrilátero Melrose e se estendia,
como a toca de uma toupeira, por vários andares no subsolo – e também para comprar
o equipamento filosófico mais moderno para a Capela.
     Era importante manter a Capela na vanguarda do progresso, porque a Faculdade
Jordan não tinha rival, na Europa ou na Nova França, como centro de teologia
experimental. Lyra sabia disso, pelo menos. Tinha orgulho da proeminência da sua
Faculdade e gostava de se vangloriar disso com os vários moleques com quem
brincava junto ao Canal ou nos Barreiros; e olhava para os eruditos e professores
visitantes com desprezo e piedade, porque eles não pertenciam à Jordan, portanto
deviam saber menos, coitados, do que o mais humilde Professor-assistente da Jordan.
     O que era essa teologia experimental, Lyra sabia tão pouco quanto os moleques
da rua. Tinha formado a idéia de que era algo relacionado à magia, aos movimentos
das estrelas e planetas, a minúsculas partículas de matéria – mas tudo isso era apenas
palpite, na verdade. Com certeza, as estrelas tinham daemons, como os humanos, e na
teologia experimental conversava-se com eles. Lyra imaginava o Capelão falando
solenemente, escutando os comentários dos daemons das estrelas e depois assentindo
com ar sábio, ou sacudindo a cabeça com tristeza. Mas o que se passava entre eles
ela não conseguia imaginar.
    E nem estava particularmente interessada. De certo modo, podia-se dizer que
Lyra tinha alma de moleque; o que ela mais gostava de fazer era subir nos telhados da
Faculdade com Roger, o ajudante da cozinha que era seu amigo, para cuspir caroços
de ameixa nas cabeças dos Catedráticos que passavam lá embaixo, ou piar como
corujas do lado de fora da janela de uma sala de aula, ou apostar corrida nas ruas
estreitas, roubar maçãs no mercado, brigar. Assim como ela não tinha consciência das
forças políticas ocultas que agiam sob a superfície do cotidiano da Faculdade, também
os Catedráticos, por sua parte, não conseguiriam enxergar o caldo fervilhante de
alianças, inimizades, guerras e acordos que era a vida de uma criança em Oxford.
   Crianças brincando juntas: que cena agradável! Existe alguma coisa mais inocente e
encantadora que isso?
    Na verdade, Lyra e seus amiguinhos estavam travando uma guerra mortal,
naturalmente. Primeiro, as crianças de uma faculdade – serviçais jovens, filhos de
criados, Lyra –declaravam guerra às de outra, mas essa inimizade era esquecida
quando as crianças da cidade atacavam uma criança de faculdade; então todas as
faculdades uniam-se e lutavam contra as crianças da cidade. Essa rivalidade tinha cem
anos e era bastante profunda e apreciada.
    Mas até isso era esquecido quando outros inimigos ameaçavam. Um inimigo era
eterno: os filhos dos oleiros, que viviam perto dos Barreiros e eram desprezados tanto
pelas crianças das faculdades como pelas da cidade. No ano anterior, Lyra e algumas
crianças da cidade tinham concordado numa trégua provisória e atacaram os Barreiros,
atirando grandes pedaços de argila sobre os filhos dos fabricantes de tijolos e
derrubando o castelo de barro que eles haviam construído; depois rolaram cada um
deles na substância pegajosa de onde eles tiravam o sustento, até que todos –
vencidos e vencedores – ficaram parecendo um bando de bonecos animados.
     O outro inimigo regular tinha sua época: as famílias de gípcios{9}, que moravam
em balsas, iam e vinham com as feiras de primavera e outono, e estavam sempre
dispostos a brigar. Havia uma família em particular que voltava regularmente para seu
atracadouro na parte da cidade conhecida como Jericó, com quem Lyra vinha lutando
desde a primeira vez que conseguiu jogar uma pedra. Na última vez em que essa
família esteve em Oxford, ela, Roger e alguns dos outros ajudantes da cozinha da
Jordan e da Faculdade St. Michael's prepararam uma emboscada, jogando lama na
barcaça pintada de cores brilhantes, até que a família inteira desembarcou para
expulsá-los e nesse momento o esquadrão de reserva, sob as ordens de Lyra, invadiu
o barco e desatracou-o da margem, deixando que a embarcação flutuasse canal
abaixo, atrapalhando os barcos que passavam, enquanto os soldados de Lyra
revistavam a barcaça de uma ponta à outra, procurando a rolha - Lyra acreditava
firmemente nessa rolha e assegurou à sua tropa que se a puxassem o barco afundaria
no mesmo instante; não a encontraram, e tiveram que abandonar o barco quando os
gípcios apareceram; acabaram fugindo, pingando água e em meio a gritos de triunfo,
pelas ruas estreitas de Jericó.
     Aquele era o mundo e o reino de Lyra. Na maior parte do tempo, ela era uma
selvagenzinha ambiciosa e grosseira, porém sempre tivera uma sensação vaga de que
aquele não era o seu mundo inteiro, que uma parte de si pertencia à solenidade e aos
rituais da Faculdade Jordan; e que, em algum lugar de sua vida, havia uma ligação com
o elevado mundo da política representado por Lorde Asriel. Essa intuição apenas fazia
com que ela se desse ares de superioridade e mandasse nos outros moleques; nunca
lhe ocorrera tentar descobrir alguma coisa sobre isso.
     De modo que assim, como um gato selvagem, ela passara a infância. A única
variação em seus dias acontecia nas visitas irregulares de Lorde Asriel à Faculdade.
Ter um tio rico e poderoso era muito bom para se vangloriar, mas o preço disso era ter
que ser agarrada pelo Catedrático mais ágil e levada à Governanta para ser lavada e
vestida num traje limpo, sendo em seguida acompanhada (com várias ameaças) à Sala
de Estar dos Decanos para tomar chá com Lorde Asriel. Alguns Catedráticos mais
velhos também eram convidados. Lyra, rebelde, jogava-se numa cadeira até o Reitor
lhe ordenar severamente que se sentasse direito, e ela então fazia uma cara tão
zangada que até o Capelão achava graça.
     Essas visitas formais e constrangedoras nunca variavam; depois do chá, o Reitor
e o punhado de Catedráticos convidados deixavam Lyra e o tio a sós, e ele a chamava
para ficar de pé à sua frente e contar o que aprendera desde a última visita dele. Ela então resmungava tudo que conseguia recordar sobre geometria, ou árabe, ou história ou ambarologia, e ele, recostado, pernas cruzadas, observava-a enigmaticamente até ela ficar sem palavras. No ano anterior, antes da expedição ao Norte, ele tinha perguntado também:
– E como você passa o tempo quando não está estudando esforçadamente?
E ela respondeu:
– Eu brinco, só isso. Por aí pela Faculdade. Só... brincadeira.
Ele então pediu:
– Deixe-me ver suas mãos, garota.
Ela estendeu as mãos para serem inspecionadas, e ele as virou, para ver as unhas. Seu daemon estava deitada como uma Esfinge no tapete, sacudindo a cauda ocasionalmente e encarando Lyra sem pestanejar.
– Sujas - declarou Lorde Asriel, empurrando as mãos dela. – Aqui neste lugar não lhe fazem tomar banho?
– Sim, mas as unhas do Capelão estão sempre sujas. Até mais que as minhas.
– Ele é um homem culto. Qual é a sua desculpa?
– Devo ter sujado depois que lavei.
– Onde é que você brinca, para se sujar tanto assim?
Ela o encarou com suspeita. Tinha o palpite de que subir ao telhado era proibido, embora ninguém tivesse lhe dito isso com todas as letras.
– Em algumas salas velhas – respondeu afinal.
– E onde mais?
– Nos Barreiros, às vezes.
– E?
– Em Jericó e Port Meadow.
– Mais algum outro lugar?
– Não.
– Está mentindo. Ontem mesmo vi você no telhado.
Ela mordeu o lábio e ficou calada. Ele a observava ironicamente.
– Quer dizer que brinca no telhado também? – continuou. – Costuma entrar na Biblioteca?
– Não. Mas encontrei um corvo no telhado da Biblioteca.
– Foi mesmo? E o pegou?
– Ele tinha uma pata machucada. Eu ia matar e assar ele, mas Roger disse que tínhamos que cuidar dele. Então lhe demos restos de comida e um pouco de vinho, e ele melhorou e fugiu voando.
– Quem é Roger?
– Meu amigo. O ajudante da Cozinha.
– Entendo. Então você andou pelo telhado inteiro...
– Não o telhado inteiro. Não dá para chegar no Prédio Sheldon porque é preciso
dar um pulo da Torre do Peregrino, por cima de um buraco. Há uma clarabóia que se
abre para lá, mas não tenho altura para alcançá-la.
– Você andou pelo telhado inteiro, exceto o Prédio Sheldon; e quanto aos
subterrâneos?
– Subterrâneos?
– Para baixo do chão a Faculdade é tão grande quanto para cima. Estou surpreso
de ver que você ainda não tinha descoberto isso. Bem, já estou de partida. Você parece bastante saudável. Tome aqui. Tirou do bolso um punhado de moedas, de onde separou e entregou a ela cinco dólares de ouro.
– Não lhe ensinaram a agradecer? – perguntou.
– Muito obrigada – ela resmungou.
– Você obedece ao Reitor?
– Ah, sim.
– E respeita os Professores?
– Sim.
O daemon de Lorde Asriel riu baixinho. Era o primeiro som que ele fazia, e Lyra enrubesceu.
– Então vá brincar – disse Lorde Asriel.
Lyra virou-se e disparou para a porta, aliviada, lembrando-se de parar e dizer até
logo.
Assim tinha sido a vida de Lyra antes do dia em que ela resolveu esconder-se na
Sala Privativa e pela primeira vez ouviu falar no Pó.
E naturalmente o Bibliotecário estava enganado ao dizer ao Reitor que ela não
prestaria atenção; ela teria ouvido ansiosamente quem quer que pudesse lhe falar do
Pó. Nos meses seguintes, iria ouvir muita coisa sobre o assunto, e finalmente iria saber
mais sobre o Pó do que qualquer outra pessoa no mundo; mas, enquanto isso, havia
toda aquela variada vida da Jordan desenrolando-se à sua volta.
De qualquer maneira, havia outra coisa para se pensar. Nas últimas semanas, um
boato vinha se espalhando pelas ruas – um boato que fazia algumas pessoas rirem e
outras silenciarem, assim como algumas pessoas riem de fantasmas e outras os
temem: sem que qualquer pessoa pudesse imaginar o motivo, estavam começando a
desaparecer crianças.
Eis como acontecia: ao longo da margem oriental da grande rodovia que é o Rio
Ísis, apinhado de barcaças de tijolos, asfalto ou milho navegando devagar, abaixo de
Henleye Maidenhead até Teddington, onde a maré do Oceano Germano alcança, e
ainda bem mais abaixo até Mortlake, passando pela casa do grande mago Dr. Dee, por
Falkeshall, onde os parques-jardins ostentam seus chafarizes e suas bandeirolas
durante o dia, e seus lampiões nas árvores e seus fogos de artifício à noite; e
passando pelo Palácio de White Hall, onde o Rei comanda semanalmente o Conselho
de Estado; pela Torre Shot, a pingar seu infindável chuvisco de chumbo derretido nos
barris de água escura; e ainda mais abaixo, até onde o rio, agora largo e imundo, faz
uma grande curva para o sul.
Ali fica o bairro de Limehouse, e lá está a criança que vai desaparecer. É um
menino chamado Tony Makarios. A mãe pensa que ele tem nove anos de idade, mas
ela tem memória fraca, destruída pela bebida; ele deve ter oito, ou dez. Seu
sobrenome é grego, porém, assim como a idade, trata-se de mero palpite da mãe
dele, porque ele parece mais chinês que grego, e pelo lado da mãe tem sangue
irlandês, escraelingue e lascar{10}. Tony não é muito inteligente, mas tem uma espécie
de ternura desajeitada que às vezes o leva a dar um abraço rude na mãe e plantar um
beijo pegajoso em seu rosto. A pobre mulher geralmente está tonta demais para tomar
uma iniciativa dessas, mas corresponde com carinho, quando percebe o que está
acontecendo.
No momento, Tony está vagando pelo mercado na rua Pie.
Está com fome; é de noitinha e ele não vai encontrar comida em casa. Tem no
bolso um xelim que um soldado lhe deu para levar um recado à sua garota favorita,
mas Tony não vai desperdiçar seu dinheiro em comida, quando se pode conseguir tanta
coisa de graça.
De modo que ele vagueia pelo mercado com seu pequeno daemon - uma
pardoca - no ombro observando tudo, por entre as barracas de roupas usadas e as de
papéis-da-sorte, os vendedores de fruta e o vendedor de peixe frito; e quando uma
barraqueira e seu daemon estão ambos olhando para o outro lado, a pardoca dá o
sinal, e as mãos de Tony vão à frente e voltam para dentro da camisa larga com uma
maçã ou um punhado de castanhas, e finalmente com um pastelão quentinho.
A barraqueira o vê e dá um grito, e seu daemon-gato salta, mas a pardoca de
Tony está voando, e o próprio Tony já está quase na esquina. Palavrões e pragas o
acompanham, mas não até muito longe; ele pára de correr junto à escada do Oratório
de Santa Catarina, onde se senta e pega seu troféu quente e amassado, deixando um
rastro de molho na camisa.
E ele está sendo observado; uma dama usando um casaco longo de pele de
raposa amarela e vermelha, uma linda jovem, cujos cabelos castanhos brilham
delicadamente dentro da sombra de seu capuz forrado de pele, está parada à porta do
Oratório, alguns degraus acima do garoto. Talvez o ofício esteja terminando, pois pela
porta atrás dela jorra luz, lá dentro um órgão está tocando, e a dama está segurando
um livro de orações ornado de pedras preciosas.
Tony nada percebe. Feliz, com o rosto enterrado no pastelão, os dedos dos pés
curvados para dentro e as solas juntas, ele mastiga e engole enquanto seu daemon se
transforma numa ratazana alisando os bigodes.
O daemon da jovem dama está se destacando do casaco de pele de raposa. Ele
tem a forma de um macaco, mas não um macaco comum: tem os pêlos compridos e
sedosos, de um tom dourado forte e lustroso. Com movimentos sinuosos, ele desce
lentamente a escadaria na direção de Tony e se senta no degrau acima do garoto.
Então a ratazana percebe alguma coisa e se transforma outra vez em pardoca,
virando a cabecinha de lado e saltando dois degraus.
O macaco observa a pardoca; o pássaro observa o macaco.
O macaco estende a mão devagar. Tem a mão pequena e preta, as unhas são
garras perfeitas e resistentes, os movimentos são suaves e convidativos. A pardoca
não consegue resistir; aproxima-se com mais alguns saltos e então esvoaça para a
mão do macaco.
O macaco a ergue e a estuda de perto antes de se levantar e voltar para junto do
seu ser humano, levando consigo o daemon-pardoca. A dama baixa a cabeça
perfumada para lhe sussurrar alguma coisa. E então Tony se vira; não consegue evitar.
– Rateira! – chama, de boca cheia, com certo susto.
– Olá! – diz a linda dama. – Qual é o seu nome?
–Tony.
– Onde é que você mora, Tony?
– Na alameda Clarice.
– De que é este pastelão?
– De carne.
– Gosta de chocolate?
– Gosto!
– Por acaso tenho mais chocolate do que poderia beber. Quer vir me ajudar a
acabar com ele?
     Tony já está perdido – desde o momento em que seu daemon insensato saltou
para a mão do macaco. Ele acompanha a jovem e o macaco dourado ao longo da rua
Dinamarca, passando pelo Cais do Enforcado e descendo a Escadaria do Rei George,
até uma portinhola verde na parede de um armazém de teto alto. Ela bate, a porta é
aberta; eles entram, a porta se fecha.
     Tony nunca mais sairá - pelo menos por aquela entrada; e nunca mais vai ver a
mãe; e Ela, pobre bêbada, vai pensar que o filho fugiu, e, quando pensar nele, vai
achar que a culpa foi sua e vai se desmanchar em lágrimas.
     O pequeno Tony Makarios não foi a única criança capturada pela mulher com o
macaco dourado. No porão do depósito, ele encontrou uma dúzia de outras, meninos e
meninas, nenhuma delas com mais de doze anos - apesar de que, tendo todos eles
uma infância parecida, ninguém tinha certeza da própria idade.
    O que Tony não percebeu, naturalmente, era o fator que todos tinham em comum:
nenhuma criança naquele porão quentinho tinha chegado à puberdade.
A gentil dama acomodou-o num banco ao longo da parede e lhe mandou, por uma
criada silenciosa, uma caneca de chocolate tirado da panela sobre o fogão de ferro.
    Tony comeu o resto do pastelão e bebeu o líquido quente e doce sem prestar muita
atenção ao que o cercava, como também o que o cercava não prestava muita atenção
nele: era pequenino demais para ser uma ameaça e demasiado imperturbável para
desempenhar satisfatoriamente o papel de vítima.
Foi outro menino quem fez a pergunta óbvia.
– Ei. dona! Por que trouxe todos nós para cá?
Era um moleque de ar durão, com um bigode de chocolate e uma ratazana preta
e magricela como daemon. A dama estava parada perto da porta, conversando com
um homem corpulento com ar de capitão de navio; quando se virou para responder, ela
tinha uma aparência tão angelical à luz sibilante da lamparina a nafta que todas as
crianças silenciaram.
– Queremos a sua ajuda – ela disse. – Vocês não se importam em nos ajudar,
não é? Ninguém conseguia dizer uma palavra. Tímidos de repente, limitavam-se a
contemplá-la.
    Nunca tinham visto uma mulher assim; ela era tão graciosa, simpática e boazinha
que elas sentiam que não mereciam tamanha sorte, e fariam com prazer tudo que ela
pedisse, apenas para ficar mais um pouco na presença dela.
    Ela revelou que iam fazer uma viagem; as crianças seriam bem alimentadas e
vestidas, e aquelas que quisessem poderiam mandar uma mensagem para a família
dizendo que estavam em segurança. Logo o Capitão Magnusson as levaria para o seu
navio, e quando a maré estivesse propícia, iam sair velejando rumo ao Norte.
    Logo as poucas crianças que queriam mandar um recado para casa estavam
sentadas em volta da linda dama, que escrevia o que elas lhe ditavam e deixava que
desenhassem um X desajeitado no final, dobrava a folha, colocava-a dentro de um
envelope perfumado e escrevia nele o endereço que lhe davam. Tony teria gostado de
mandar alguma coisa para a mãe, mas era realista: a mãe não ia conseguir ler. Deu um
puxão na pele da manga do casaco da dama e cochichou que queria que ela dissesse à
sua mãe aonde ele estava indo; ela inclinou a cabeça graciosa para bem perto do
corpinho malcheiroso do menino, acariciou-lhe a cabeça e prometeu levar o recado.
     Então as crianças se amontoaram para despedir-se. O macaco dourado acariciou
os daemons de todas, e todas elas tocaram na pele de raposa para dar sorte, ou como
se estivessem recebendo alguma força ou esperança ou bondade emanando da
mulher, e ela despediu-se de todas e levou-as até uma lancha a vapor parada no cais,
deixando-as aos cuidados do valente capitão. O céu já estava escuro, o rio era uma
massa de luzinhas saltitantes. A dama ficou parada no cais acenando até não conseguir
mais ver os rostos das crianças.
     Então voltou para dentro do depósito, com o macaco dourado aninhado em seu
seio, e jogou a pequena pilha de cartinhas na fornalha antes de sair por onde tinha
entrado.
     Era muito fácil atrair as crianças dos bairros miseráveis, mas finalmente começou-
a perceber, e a polícia teve que entrar em ação, embora com relutância. Por algum
tempo, não houve mais desaparecimentos. Mas o boato tinha nascido e, aos poucos,
foi mudando, crescendo e se espalhando, e quando, passado algum tempo, umas
crianças desapareceram em NolWich, e depois em Sheffield, e depois em Manchester,
as pessoas nesses lugares que sabiam dos desaparecimentos em outras cidades
acrescentavam novos fatos à história, dando-lhe novo vigor.
     E assim cresceu a lenda de um misterioso grupo de feiticeiros que roubavam
crianças. Alguns diziam que o chefe era uma linda mulher, outros falavam num homem
alto, de olhos vermelhos, ao passo que uma terceira versão falava num rapaz que ria e
cantava para suas vítimas, que o seguiam como carneirinhos.
     Quanto ao local para onde levavam essas crianças perdidas, não havia duas
versões que concordassem. Alguns diziam que era para o Inferno, para o subsolo, para
a Terra Encantada. Outros afirmavam: para uma fazenda onde as crianças eram
confinadas e engordadas para serem servidas à mesa. Outros diziam que as crianças
eram vendidas como escravas para tártaros ricos...
Mas uma coisa em que todos concordavam era o nome desses raptores
invisíveis. Tinham que ter um nome, ou então não poderiam ser mencionados, e falar
sobre eles especialmente para quem estava a salvo em casa, ou na Faculdade Jordan
era delicioso. E o nome com que eles aparentemente foram batizados, sem que
ninguém soubesse por quê, foi os Papões.
– Não fique fora até tarde, senão os Papões vão pegar você!
– Minha prima em Northampton conhece uma mulher cujo filho foi roubado pelos-
Papões...
– Os Papões estiveram em Stratford. Dizem que eles estão vindo para o sul!
E inevitavelmente:
– Vamos brincar de crianças e Papões!
Foi o que Lyra disse a Roger, o ajudante de Cozinha da Faculdade Jordan. Ele a
teria seguido até o fim do mundo.
– Como é que se brinca disso?
– Você se esconde e eu o encontro e o abro ao meio, como os Papões fazem.
– Você não sabe o que eles fazem. Pode ser que não façam nada disso.
– Você está com medo deles. Estou vendo! – disse ela.
– Não estou. Aliás, nem acredito neles.
– Eu acredito – ela retrucou com firmeza. – Mas também não tenho medo. Faço o
que o titio fez na última vez que veio a Jordan. Eu vi. Ele estava na Sala Privativa e
havia um convidado que não foi delicado, e titio só fez olhar para ele com força, e o
homem caiu morto na hora, espumando pela boca.
– Duvido – fez Roger em tom de dúvida. – Nunca falaram sobre isso na Cozinha.
De qualquer maneira, você não pode entrar na Sala Privativa.
– Claro que não falaram. Eles não iam contar esse tipo de coisa aos criados. E eu
estive na Sala Privativa, sim. De qualquer modo, titio está sempre fazendo isso. Fez
com uns tártaros que o agarraram certa vez. Amarraram o meu tio e iam tirar as tripas
dele, mas, quando o primeiro se aproximou com uma faca, titio olhou bem para ele, e
ele caiu morto, então veio outro, e titio fez a mesma coisa, e no final só sobrou um.
Titio disse que ia deixar o homem escapar se ele o desamarrasse, e foi o que ele fez, e
então titio matou ele mesmo assim, para lhe dar uma lição.
Roger duvidava desse caso ainda mais do que dos Papões, mas era uma história
boa demais para ser desperdiçada, de modo que os dois se revezaram sendo Lorde
Asriel e os tártaros que iam morrer; em lugar da espuma, os dois usaram sorvete.
No entanto, houve uma interrupção. Lyra estava concentrada fazendo o papel dos
Papões e tinha conseguido encurralar Roger na adega do porão, onde eles entraram
com o chaveiro de reserva do Mordomo. Juntos atravessaram os grandes domos onde
o Tokay e o Canary da Faculdade, o Burgundye o brantwijn jaziam sob as teias de
aranha de muitos anos. Os antigos arcos de pedra erguiam-se acima deles, apoiados
em colunas grossas como dez árvores juntas; o chão era de pedras irregulares, e por
toda parte havia estantes de garrafas e barris. Era fascinante. Esquecendo-se dos
Papões, as duas crianças foram de uma ponta à outra, cautelosamente, segurando
uma vela com dedos trêmulos, tentando enxergar em cada canto escuro, com uma
única pergunta cada vez mais forte na mente de Lyra: qual era o gosto do vinho? Havia
um modo fácil de responder. Lyra - apesar dos protestos veementes de Roger -
escolheu a garrafa mais velha, retorcida e verde que conseguiu encontrar, e, não tendo
como extrair a rolha, quebrou a garrafa no gargalo. Encolhidos no canto mais
escondido, os dois bebericaram o líquido púrpura, curiosos para ver quando ficariam
embriagados e como saberiam que estavam. Lyra não gostou muito do sabor, mas
tinha que admitir que era um sabor solene e complicado. O mais engraçado era
observar os dois daemons, que pareciam ficar cada vez mais tontos: caíam, davam
risadinhas sem sentido e mudavam de forma imitando monstros, cada um tentando ficar
mais feio que o outro.
Finalmente, e quase ao mesmo tempo, as crianças descobriram como era ficar
embriagado.
– Eles gostam disso? – ofegou Roger, depois de vomitar copiosamente.
– Gostam, sim – disse Lyra, nas mesmas condições. – E eu também -
acrescentou teimosamente.
      A única coisa que Lyra aprendeu nesse episódio foi que brincar de Papões levava
a lugares interessantes. Lembrou-se das palavras do tio na sua última conversa e
começou a explorar o subsolo, pois o que havia acima do solo era apenas uma
pequena fração do todo; como um enorme fungo cujas raízes se estendem por muitos
quilômetros, a Jordan, ao se ver brigando por espaço com a Faculdade St. Michael's
de um lado, a Faculdade Gabriel do outro e a Biblioteca da Universidade atrás,
começara, ainda na Idade Média, a espalhar-se por baixo do solo. Túneis, poços,
domos, porões, escadarias – tudo isso tinha escavado tanto a terra abaixo da Jordan e
por centenas de metros ao redor dela que havia quase tanto ar debaixo da terra
quando acima dela; a Faculdade Jordan ficava sobre uma espécie de espuma de
pedra. Tendo provado o gostinho de explorar o subsolo, Lyra abandonou seu território de
costume, os Alpes irregulares que eram os telhados da Faculdade, e mergulhou com
Roger no limbo. Brincar de Papões foi substituído por caçá-los, pois o que seria mais
provável do que haver Papões escondidos no subsolo, à espreita?
     De modo que certo dia ela e Roger desceram para a cripta sob o Oratório. Era ali
que as gerações de Reitores tinham sido enterradas, cada um em seu caixão de
carvalho forrado de chumbo. Os caixões ficavam dentro de nichos ao longo das
paredes de pedra. Uma placa de pedra abaixo de cada um dava os nomes deles:
Simon Le Clerc, Reitor 1765-1789 Cerebaton Requiescant in pace
– Que quer dizer isso? – Roger perguntou.
–A primeira linha é o nome dele, e a segunda é romano. E as datas no meio da
linha são quando ele foi Reitor. E o outro nome deve ser o daemon dele.
Saíram caminhando ao longo da cripta silenciosa, lendo mais inscrições:
Francis Lyall Reitor 1748-1765 Zohariel Requiescant in pace
Ignatius Cole, Reitor 1745-1748 Musca Requiescant in pace
Lyra achou interessante constatar que, em cada caixão, uma placa de bronze
trazia uma imagem diferente: num era um basilisco; no outro, uma mulher loura; no
outro, uma serpente; no outro, um macaco. Percebeu que eram imagens dos daemons
dos mortos. Quando as pessoas chegavam à idade adulta, seus daemons já tinham
perdido o poder de transformar-se e ficavam com uma forma única e permanente.
– Esses caixões têm esqueletos dentro! – Roger sussurrou.
– Carne em putrefação – Lyra sussurrou de volta. – E vermes, lombrigas se
retorcendo nos buracos dos olhos deles...
– Deve ter fantasmas por aqui... – disse Roger, arrepiando-se prazerosamente.
Atrás da primeira cripta, eles encontraram um corredor orlado de prateleiras de
pedra. Cada prateleira era dividida em quadrados, e em cada quadrado descansava
uma caveira.
O daemon de Roger, com o rabo entre as pernas, estremeceu de encontro a ele
e soltou um uivo breve e fraco.
– Psiu! – fez ele.
Lyra não enxergava Pantalaimon, mas sabia que, em sua forma de mariposa, ele
estava descansando em seu ombro e com certeza arrepiado também. Estendendo a
mão, ela pegou a caveira mais próxima e tirou-a do lugar.
– Que é que está fazendo? Não pode tocar nelas! –Roger protestou. Sem lhe dar
atenção, ela ficou girando a caveira nas mãos. De repente alguma coisa saiu pelo
buraco na base do crânio, passou entre os dedos dela e caiu no chão ruidosamente.
Com o susto, ela quase deixou cair a caveira.
– É uma moeda! – Roger exclamou, tateando no chão.
– Pode ser um tesouro!
Ele ergueu a moeda à luz da vela e ambos a contemplaram de olhos arregalados.
Não era uma moeda, e sim um pequeno disco de bronze com uma entalhe grosseiro
representando um gato.
– Como os dos caixões – disse Lyra. – É o daemon dele.
Só pode ser.
–É melhor levar de volta – Roger, inquieto, aconselhou.
Lyra girou a caveira e deixou o disco cair de volta em seu lugar imemorial antes
de recolocá-la na prateleira. Os dois descobriram então que cada um dos crânios tinha
sua moeda-daemon mostrando a companheira da vida do dono ainda perto dele na
morte.
– Que acha que estes eram quando estavam vivos? – Lyra perguntou. –
Provavelmente Catedráticos, imagino. Só os Reitores ganham caixões. Com certeza,
foram tantos Catedráticos durante todos esses séculos que não haveria lugar para
enterrar todos, de modo que eles cortam a cabeça e guardam. É mesmo a parte mais
importante deles...
Não encontraram Papões, mas as catacumbas sob o Oratório mantiveram Lyra e
Roger ocupados durante muitos dias.
     Certa vez, ela tentou fazer uma brincadeira com alguns dos Catedráticos mortos,
trocando os discos dentro dos crânios, dando-lhes daemons errados; Pantalaimon ficou
tão agitado com isso que se transformou num morcego e pôs-se a voar para cima e
para baixo soltando gritos agudos e batendo as asas no rosto dela, mas ela não deu
atenção; a brincadeira era boa demais.
Porém ela pagou por isso mais tarde. Na cama, em seu quartinho apertado no
topo da Escadaria Doze, ela foi visitada por uma assombração e acordou gritando por
causa das três figuras de túnica paradas à cabeceira da cama apontando os dedos
ossudos antes de jogar para trás os capuzes e mostrar os tocos sangrentos onde
deveriam estar as cabeças. Só quando Pantalaimon transformou-se num leão e rugiu
foi que eles recuaram, fundindo-se à matéria da parede até que só restavam de fora os
braços, depois as mãos engelhadas, cinzentas, depois os dedos em contorções,
depois nada. De manhã, a primeira coisa que ela fez foi correr para as catacumbas e
devolver as moedas-daemons para seus lugares, sussurrando "Perdão! Perdão!" às
caveiras.
      As catacumbas eram muito maiores do que a adega, mas também tinham um
limite. Depois que Lyra e Roger exploraram cada canto delas e se certificaram de que
não havia Papões por lá, voltaram a atenção para outra coisa mas não antes de terem
sido vistos saindo da cripta pelo Intercessor, que os chamou ao Oratório.
     O Intercessor era um ancião gorducho conhecido como Padre Heyst. Sua função
era dirigir todos os ofícios da Faculdade, pregar, orar e ouvir confissões. Tinha se
interessado pelo bem-estar espiritual de Lyra quando ela era criança, tendo sido
desencorajado pela indiferença e pelos arrependimentos hipócritas dela.
Finalmente chegara à conclusão de que espiritualmente ela não era promissora.
Ouvindo o chamado dele, Lyra e Roger viraram-se com relutância e se
encaminharam, arrastando os pés, para dentro do Oratório com sua penumbra
recendendo a mofo. Aqui e ali tremulavam chamas de velas diante das imagens dos
santos; um ruído suave e distante vinha do poço do órgão, onde alguns reparos
estavam sendo efetuados; um criado polia o púlpito de bronze. Padre Heyst, na porta
da sacristia, acenou-lhes.
– Onde estiveram? – perguntou-lhes. – Já vi vocês saindo de lá mais de uma vez.
Que é que estão tramando?
Seu tom não era de acusação; ele parecia genuinamente interessado.
Empoleirado em seu ombro, seu daemon estendeu para eles a língua de lagarto. Lyra
respondeu:
– Queríamos ver a cripta.
– Por que motivo?
– Os... os caixões. Queríamos ver todos os caixões –ela disse.
– Mas por quê?
Ela deu de ombros – sua resposta costumeira quando se sentia pressionada.
– E você? – ele continuou, voltando-se para Roger. O daemon do rapaz pôs-se a
balançar a cauda, tentando acalmá-lo.
– Qual é o seu nome?
– Roger, Padre.
– Se é um criado, onde trabalha?
– Na Cozinha, Padre.
– Não devia estar lá agora?
– Sim, Padre.
– Então vá.
Roger virou-se e saiu correndo. Lyra arrastou o pé de um lado para o outro no
chão.
– Quanto a você, Lyra, fico contente em ver que está se interessando pelas
coisas do Oratório. É uma menina de sorte, por ter tanta História à sua volta.
– Hum – fez ela.
– Mas me espanta a sua escolha de companheiros. É uma criança solitária?
– Não – ela disse.
– Sente... sente falta da companhia de outras crianças?
– Não.
– Não estou falando de Roger, o ajudante da Cozinha. Estou falando de crianças
como você. Crianças de berço nobre. Gostaria de ter alguns companheiros desse tipo?
– Não.
– Outras meninas, talvez...
– Não.
– Sabe, nenhum de nós quer que você perca todos os prazeres e divertimentos
comuns da infância. As vezes penso que sua vida aqui deve ser solitária, no meio dos
velhos Catedráticos. Sente isso?
– Não.
Ele juntou os polegares sobre os outros dedos entrelaçados, incapaz de pensar
em outra coisa para perguntar àquela criança obstinada.
– Se estiver com algum problema, sabe que pode me contar – disse finalmente. –
Espero que sempre saiba disso.
– Sim.
– Tem feito suas orações?
– Sim.
– Muito bem. Agora vá.
Com um suspiro de alívio maldisfarçado, ela virou-se e saiu.
Não tendo conseguido encontrar Papões debaixo da terra, Lyra voltou para as
ruas. Era onde se sentia em casa.
Então, quando ela tinha quase perdido o interesse neles, os Papões apareceram
em Oxford.
    A primeira notícia que ela teve foi quando sumiu um menino de uma família gípcia
que ela conhecia.
    Foi na época da Feira de Cavalos, e a bacia do canal estava apinhada de barcos
e barcaças, com mercadores e viajantes, e os trapiches ao longo do cais em Jericó
cintilavam com os arreios brilhantes e ressoavam com o ruído de ferraduras e o clamor
das barganhas. Lyra sempre gostara da Feira de Cavalos; além da chance de um
passeio clandestino em algum cavalo mal vigiado, havia inúmeras oportunidades para
provocar uma batalha.
     E esse ano ela forjara um ótimo plano; inspirada pela captura do barco no ano
anterior, dessa vez ela pretendia navegar um pouco mais antes de ser escorraçada. Se
ela e os amigos das cozinhas das faculdades pudessem chegar até Abingdon,
poderiam fazer uma grande bagunça no dique...
Mas nesse ano não haveria guerra. Enquanto percorria a borda do estaleiro de
Pon Meadow ao sol da manhã com dois moleques, passando um para o outro um
cigarro roubado e soprando a fumaça com bastante ostentação, ela escutou um grito e
reconheceu a voz.
– Bem, que foi que fez com ele, seu bunda-mole?
Era uma voz poderosa, voz de mulher – mas uma mulher com pulmões de couro e
cobre. Lyra na mesma hora virou-se à procura dela, pois tinha reconhecido a voz de
Mãe Costa, que, em duas ocasiões, tinha deixado Lyra quase desmaiada com uns
pescoções, mas em três dera-lhe pãezinhos quentes, e cuja família era famosa pelo
luxo e pela imponência de seu barco. Eram príncipes entre os gípcios, e Lyra admirava
muito Mãe Costa, mas pretendia passar ainda algum tempo cautelosa, pois era deles o
barco que ela havia roubado.
Um dos moleques companheiros de Lyra pegou automaticamente uma pedra no
chão quando ouviu a gritaria, mas Lyra ordenou:
– Pode ir soltando. Ela está nervosa. Pode quebrar você ao meio como um
graveto.
Na verdade, Mãe Costa parecia mais ansiosa do que zangada. O homem com
quem falava, um mercador de cavalos, dava de ombros e espalmava as mãos.
– Bom, eu não sei – dizia ele. – Ele estava aqui e no minuto seguinte tinha sumido.
Não cheguei a ver para onde ele foi...
– Ele estava ajudando você! Estava segurando seus malditos cavalos!
– Bom, ele devia ter ficado aqui, não é? Sair correndo no meio do trabalho...
O homem não chegou a terminar a frase, pois Mãe Costa lhe pregou um
tremendo tabefe na lateral da cabeça, acompanhado de tantos xingamentos e safanões
que ele berrou e virou-se para fugir. Os outros mercadores de cavalos zombaram, e um
potro assustadiço empinou, sobressaltado.
– Que é que está acontecendo? – Lyra perguntou a um menino gípcio que a tudo
assistia, boquiaberto. – Por que ela está com tanta raiva?
– É o filho dela – explicou o menino. – Billy. Com certeza, ela acha que os Papões
pegaram o garoto. E pode ser verdade, mesmo. Eu não vejo o Billy desde...
– Os Papões? Então eles chegaram a Oxford?
O menino gípcio deu-lhes as costas para gritar para os amigos, que estavam
observando Mãe Costa:
–Ela não sabe de nada! Nem sabe que os Papões estão aqui!
Meia-dúzia de moleques viraram-se para ela com expressão de desprezo, e Lyra
jogou fora o cigarro, reconhecendo a deixa para uma boa briga. No mesmo instante, os
daemons de todos se prepararam para a guerra: cada criança era acompanhada por
dentes, ou garras, ou pêlos eriçados, e Pantalaimon, desprezando a imaginação
limitada daqueles daemons gípcios, transformou-se num dragão do tamanho de um cão
veadeiro.
Antes, porém, que a batalha começasse, Mãe Costa se imiscuiu, empurrando dois
gípcios e confrontando Lyra como se fosse uma lutadora profissional.
– Sabe dele? – ela interpelou Lyra. – Viu o Billy?
– Não. Acabamos de chegar. Não vejo o Billy há meses.
      O daemon de Mãe Costa fazia círculos no ar acima da cabeça dela – um falcão
de olhos amarelos e ferozes que olhavam para todos os lados sem piscar. Lyra ficou
com medo; ninguém se preocupava quando uma criança sumia por algumas horas,
principalmente uma gípcia: no mundinho dos barcos gípcios, todas as crianças eram
preciosas e intensamente amadas, e cada mãe sabia que, se seu filho estivesse longe
de sua vista, não estaria longe da vista de outra mãe, que o protegeria instintivamente.
No entanto, ali estava Mãe Costa, rainha entre os gípcios, aterrorizada pela
ausência de uma criança. Por quê? Mãe Costa olhou sem ver o grupinho de crianças,
virou-se e saiu tropeçando por entre a multidão, indo na direção do ancoradouro,
sempre gritando pelo filho. No mesmo instante, as crianças esqueceram a briga, diante
daquele sofrimento.
– Esses Papões são o quê, afinal? – perguntou Simon Parslow, amiguinho de
Lyra.
O primeiro menino gípcio respondeu:
– Você sabe. Eles estão roubando crianças por toda parte. São piratas...
– Eles não são piratas – corrigiu outro gípcio. – são canibais. É por isso que o
nome deles é Papões.
– Eles comem crianças? – perguntou outro amigo de Lyra: Hugh Lovat, ajudante
de Cozinha na St. Michael's.
– Ninguém sabe – disse o primeiro menino. –Levam a criança e ninguém mais tem
notícia dela.
– Isso nós todos sabemos – disse Lyra. – Há meses estamos brincando de
crianças e Papões, antes de vocês. Aposto. Mas aposto que ninguém já viu um Papão.
– Já viram – disse um garoto.
– Quem? – Lyra insistiu. – Você já viu? Como é que sabe que não é só uma
pessoa?
– Charlie viu eles em Banbury – disse uma menina gípcia.
– Eles ficaram falando com uma mulher enquanto outro homem tirou o filho dela
do jardim.
– É, eu vi eles fazerem isso! – confirmou Charlie, um menino gípcio.
– Como é que eles eram? – Lyra quis saber.
– Bom, eu não vi direito – Charlie confessou. – Mas vi o caminhão deles –
acrescentou.
– Eles chegam num caminhão branco. Colocam o menino no caminhão e saem
disparados.
– Mas por que o nome deles ficou sendo Papões? –Lyra insistiu.
– Porque eles papam as crianças – disse o primeiro garoto gípcio. – Nos
contaram lá em Northampton. Eles estiveram por lá. Tinha uma garota em
Northampton, levaram o irmão dela e ela disse que os homens que levaram ele
disseram que iam comer ele. Todo mundo sabe disso. Eles comem as crianças.
Uma menina gípcia começou a chorar alto.
– É a prima de Billy – Charlie informou.
Lyra perguntou:
– Quem viu o Billy por último?
– Eu! – uma dúzia de vozes exclamou.
– Eu vi o Billy segurando aquele pangaré do Johnny Fiorelli.
– Eu vi ele perto do vendedor de maçã caramelada.
– Eu vi ele se balançando no guindaste...
Depois que conseguiu destrinchar aquilo, Lyra ficou sabendo que Billy tinha sido
visto mais de duas horas antes.
– Então, nas últimas duas horas, os Papões estiveram por aqui...
Todos olharam em volta, estremecendo, apesar do sol quente, do porto apinhado,
do cheiro familiar de alcatrão, cavalos e folha-de-fumo. O problema era que, já que
ninguém sabia como eram esses Papões, qualquer pessoa podia ser um Papão, como
Lyra declarou ao bando de crianças perplexas, todas elas – as das faculdades e as
gípcias já agora sob o seu domínio.
– Eles têm que parecer pessoas comuns, senão seriam logo descobertos – ela
explicou. – Se só aparecessem à noite, podiam ter qualquer aparência. Mas, se
aparecem à luz do dia, têm que parecer gente normal. Então qualquer pessoa aqui
pode ser um Papão...
– Não são, não – disse um gípcio em tom hesitante. - Conheço elas todas.
– Está certo, não estas aqui, mas qualquer outra –disse Lyra. – Vamos procurar
os Papões! E o caminhão branco também!
     Aquilo provocou um estouro de boiada. Outros logo se juntaram aos primeiros, e,
em pouco tempo, havia umas trinta ou mais crianças gípcias correndo de uma ponta à
outra dos ancoradouros, entrando e saindo dos estábulos, subindo pelos guindastes
para dentro dos pátios, saltando por cima da cerca para junto da margem, 15 crianças
ao mesmo tempo agarradas à corda que se usava para atravessar o rio de águas
verdes, e correndo a toda pelas ruas estreitas de Jericó, por entre as casinhas de
tijolos, e entrando no grande oratório de St. Barnabas, o Químico, com sua torre
quadrada. Metade delas não sabia o que estavam procurando e achava que se tratava
apenas de uma brincadeira, porém as mais próximas a Lyra sentiam medo e aflição de
verdade cada vez que avistavam uma figura solitária num beco ou na penumbra do
Oratório: seria um Papão?
     Mas, naturalmente, não era. Finalmente, sem sucesso e com a sombra do
desaparecimento verdadeiro de Billy pesando sobre todo mundo, o entusiasmo foi
desvanecendo. Quando Lyra e os dois jovens das faculdades saíam de Jericó perto da
hora do jantar, viram os gípcios reunidos no ancoradouro vizinho àquele em que o barco
dos Costa estava atracado. Algumas mulheres choravam em voz alta, e os homens,
furiosos, formavam grupinhos; todos os seus daemons estavam agitados, erguendo-se
em vôos nervosos ou rosnando para as sombras.
– Aposto que os Papões não teriam coragem de vir aqui – Lyra disse a Simon
Parslow quando os dois atravessavam a soleira do grande saguão da Jordan.
– Não... – ele concordou com hesitação. – Mas sei que sumiu uma garota do
Mercado.
– Quem?
Lyra conhecia a maioria das crianças do Mercado, mas não tinha ouvido essa
notícia.
– Jessie Reynolds, da selaria. Ontem ela saiu só para buscar um pedaço de peixe
para o chá do pai, mas na hora de fechar ainda não tinha aparecido. E ninguém viu ela.
Procuraram no Mercado inteiro e em toda parte.
– Ninguém me contou isso! – disse Lyra indignada. Achava um lapso deplorável de
seus súditos não a manterem sempre informada de tudo.
– Bom, foi ontem que aconteceu. Ela pode já ter aparecido.
– Vou perguntar – disse Lyra, virando-se para tornar a sair.
Mas ainda não tinha passado pelo portão quando o Porteiro a chamou.
– Venha cá, Lyra! Você não pode sair esta noite. Ordens do Reitor.
– Por que não?
– Já disse, ordens do Reitor. Ele disse que se você voltasse, para não sair de
novo.
– Então me pegue – ela o desafiou, e saiu correndo.
Atravessou em disparada a rua estreita e entrou no beco onde os caminhões
descarregavam mercadoria para o Mercado Coberto. Sendo hora de fechar, havia
poucos caminhões por ali, mas um grupinho de jovens fumava e conversava perto da
porta central, em frente ao alto muro de pedra da Faculdade St.Michael's. Lyra
conhecia um deles, um rapaz de 16 anos, a quem ela admirava porque ele conseguia
cuspir mais longe que qualquer outra pessoa que ela conhecia; foi até lá e ficou
esperando humildemente que ele apercebesse.
– Ei, que é que você quer? – ele finalmente perguntou.
– A Jessie Reynolds sumiu?
– Foi. Por quê?
– Porque um menino gípcio sumiu hoje, e tudo.
– Estão sempre sumindo esses gípcios. Depois de toda Feira de Cavalos eles
somem.
– Os cavalos também – comentou um dos amigos dele.
– Mas é diferente – Lyra protestou. – Era um menino. Ficamos procurando ele a
tarde toda, e as outras crianças disseram que os Papões pegaram ele.
– Os quê?
– Os Papões – ela repetiu. – Nunca ouviu falar dos Papões?
Aquilo era novidade também para os outros rapazes, e, com exceção de alguns
comentários grosseiros, eles escutaram com atenção o que ela lhes contou.
– Papões... – fez o conhecido de Lyra, cujo nome era Dick. – Que coisa idiota.
Esses gípcios vivem com essas idéias idiotas.
– Disseram que os Papões apareceram em Banbury há poucas semanas e
levaram cinco crianças – Lyra insistiu. - Com certeza, vieram para Oxford agora para
pegar as nossas. Devem ter sido eles que pegaram a Jessie.
– Sumiu um menino lá para as bandas de Cowley - contou um dos rapazes. –
Agora me lembro. Minha tia, ela veio aqui ontem, porque vende peixe e batata frita
numa barraquinha, e ouviu contar isso... Um menino pequeno... Mas não sei dessa
história de Papões. Não existem Papões. É só uma história.
–Existem sim! – contestou Lyra. – Os gípcios já viram eles. Acham que eles
comem as crianças que eles pegam e... Ela parou a frase no meio, porque de repente
tinha se lembrado de uma coisa. Durante aquela noite estranha que ela passara
escondida na Sala Privativa, Lorde Asriel tinha mostrado um slide de um homem
segurando um bastão com jorros de luz entrando nele; e ao lado do homem havia uma
figura pequena com menos luz em volta; e Lorde Asriel tinha dito que era uma criança;
e alguém perguntara se era uma criança seccionada, e o tio tinha dito que não, que
essa era a questão. Lyra sabia que "seccionada" queria dizer cortada.
E então uma coisa lhe atingiu o coração: onde estava Roger? Ela não o via desde
de manhã...De repente ficou com medo. Pantalaimon, como um leão em miniatura,
saltou para os seus braços e grunhiu. Ela se despediu dos rapazes junto ao portão e
caminhou de volta para a rua Turl, depois correu o mais que podia até a Faculdade
Jordan, entrando pela porta um segundo antes do daemon, agora em forma de
leopardo.
O Porteiro mostrou-se severo.
– Tive que ligar para o Reitor e contar a ele – declarou. – Ele não gostou. Eu não
queria estar no seu lugar, mocinha, por dinheiro nenhum.
– Onde está o Roger? – ela quis saber.
– Não vi. Ele também vai levar. Ah, quando o Sr. Cawson o pegar...
Lyra correu para a Cozinha e penetrou naquela agitação barulhenta e fumegante.
– Onde está o Roger? – berrou.
– Some daqui, Lyra! Estamos ocupados!
– Mas onde é que ele está? Você deve saber! – Lyra gritou para o Chefe da
Cozinha, que lhe deu um tapa na orelha e expulsou-a de lá.
Bernie, o Confeiteiro, tentou acalmá-la, mas não conseguiu.
– Eles pegaram o Roger! Aqueles Papões malditos, alguém devia pegar e matar
eles! Eu odeio eles! Vocês não se importam com o Roger...
– Lyra, todos nós nos importamos com o Roger...
– Não, porque senão paravam o trabalho e iam procurar por ele nesse instante!
Odeio vocês!
– Podia haver muitos motivos para o Roger ter sumido. Escute a voz da razão.
Temos o jantar para preparar e servir em menos de uma hora; o Reitor tem convidados
na Residência e ele também vai jantar lá, o que significa que o Chefe da Cozinha vai ter
que mandar a comida para lá bem depressa, para não esfriar; com uma coisa e outra,
Lyra, a vida tem que continuar. Tenho certeza de que o Roger vai aparecer...
Lyra saiu correndo da Cozinha, derrubando uma pilha de tampas de bandeja de
prata e ignorando o rugido de raiva que isso provocou. Correndo, desceu os degraus e
atravessou o Quadrilátero, passou entre a Capela e a Torre Palmer's e entrou no
Quadrilátero Yaxley, onde ficavam os prédios mais antigos da Faculdade.
Pantalaimon corria de um lado para o outro na frente dela como um leopardo em
miniatura e disparou escada acima até o último andar, onde ficava o quarto de Lyra. A
menina abriu a porta de sopetão, arrastou a cadeira cambaleante para perto da janela,
abriu a persiana e passou para o lado de fora. Logo abaixo da janela havia uma calha
de pedra forrada de chumbo com uns 30cm de largura, para recolher a água da chuva;
de pé sobre ela, Lyra virou-se e subiu pelas telhas até chegar à cumeeira do telhado.
Ali ela abriu a boca e gritou. Pantalaimon, que sempre se transformava em pássaro
quando estava no telhado, voava em círculos ao redor dela, acompanhando-a com seu
grasnar agudo de gralha.
O céu do final de tarde tingia-se de cores – pêssego, abricó, creme, delicadas
nuvens de sorvete num largo céu alaranjado. As torres e os campanários de Oxford
erguiam-se em volta deles, na mesma altura; os bosques verdes de Château Vert e
White Ham mostravam-se a cada lado – um a leste, outro a oeste. Em algum lugar,
havia gralhas grasnando e sinos tocando, e dos Currais dos Bois as batidas ritmadas
de um motor a gás anunciavam a decolagem diária do zepelim do Correio Real para
Londres. Lyra ficou vendo-o subir acima do campanário da Capela da St. Michael's, a
principio do tamanho da ponta do dedo mindinho dela quando ela estendia o braço,
depois ficando cada vez menor, até virar um pontinho no céu perolado.
Ela virou-se e baixou o olhar para o Quadrilátero envolto em sombras, onde os
Catedráticos, vestindo suas becas pretas, já começavam a chegar, sozinhos ou aos
pares, para a Dispensa, seus daemons caminhando ou voejando ao lado deles, ou
então calmamente empoleiradas em seus ombros. Estavam acendendo as luzes no
Salão; ela via os vitrais da janela começando a brilhar um a um à medida que um criado
percorria o aposento acendendo as lamparinas sobre as mesas. O sino do
Administrador pôs-se a tocar, anunciando a meia hora antes do jantar.
Aquele era o mundo dela. Ela queria que ele permanecesse a mesma coisa para
sempre, mas ele estava mudando ao seu redor, pois alguém lá fora estava roubando
crianças. Ela se sentou na cumeeira do telhado, o queixo apoiado nas mãos.
– É melhor irmos socorrer o Roger, Pantalaimon - declarou.
Ele respondeu da chaminé, com sua voz de gralha:
– Vai ser perigoso.
– Claro! Eu sei disso.
– Lembre-se do que eles disseram na Sala Privativa.
– O que foi?
– Alguma coisa sobre uma criança lá no Ártico. Aquela que não estava atraindo o
Pó.
– Disseram que era uma criança completa... E daí?
– Pode ser isso que vão fazer com o Roger, os gípcios e as outras crianças.
– Como é?
– Bom, que é que completa quer dizer?
– Sei lá. Com certeza, cortam elas no meio. Acho que elas viram escravas. Isso
seria mais útil. Com certeza, eles têm minas por lá. Minas de urânio para as naves
atômicas. Aposto que é isso. Se mandassem adultos para o fundo das minas, eles
morreriam, de modo que usam crianças porque elas são mais baratas. Foi isso que
fizeram com ele.
– Eu acho...
Mas a opinião de Pantalaimon teve que esperar; porque uma voz que vinha de
baixo começou a gritar:
– Lyra! Lyra! Desça daí neste instante!
Alguém batia na janela. Lyra reconheceu a voz e a impaciência: era a Sra. Lonsdale, a Governanta. Impossível esconder-se dela!
De rosto tenso, Lyra escorregou pelo telhado até a calha e tornou a entrar pela janela. A Sra. Lonsdale estava enchendo de água uma pequena bacia descascada,
com o acompanhamento de gemidos e batidas que o sistema hidráulico produzia.
– Quantas vezes já lhe disseram para não ir ao telhado...Veja o seu estado! Veja
esta saia: está imunda! Tire a roupa imediatamente e se lave enquanto eu procuro
alguma coisa decente que não esteja rasgada. Não sei por que você não consegue
ficar limpa e arrumada...
Lyra estava deprimida de mais até para perguntar por que tinha que se lavar e se
vestir, e nenhum adulto fornecia uma razão por iniciativa própria. Ela puxou o vestido
pela cabeça e deixou-o cair sobre a cama estreita, e pôs-se a se lavar com má
vontade enquanto Pantalaimon, agora um canário, saltava cada vez mais para perto do
daemon da Sra. Lonsdale, um impassível cão de caça, tentando em vão implicar com
ele.
– Veja o estado deste guarda-roupa! Faz semanas que você não pendura um
vestido! Veja como este está amassado...
Veja isso, veja aquilo... Lyra não queria ver. Ela fechou os olhos enquanto
esfregava o rosto com a toalha fina.
– Vai ter que usar este assim mesmo. Não dá tempo de passar. Deus me perdoe,
menina, veja os seus joelhos, veja o estado deles...
– Não quero ver nada – Lyra resmungou.
A Sra. Lonsdale deu-lhe um tapa na perna.
– Lave – ordenou com ferocidade. – Tire toda esta sujeira.
– Por quê? – Lyra finalmente perguntou. – Eu nunca lavo os joelhos. Ninguém vai
olhar para os meus joelhos. Por que tenho que fazer isso tudo? A senhora também não
liga para o Roger, igual ao Cozinheiro Chefe. Eu sou a única que...
Outro tapa, na outra perna.
– Chega dessa bobagem. Sou uma Parslow, como a mãe do Roger. Ele é meu
primo em segundo grau. Aposto que não sabia disso, porque aposto que você nunca
perguntou, Srta. Lyra. Aposto que isso nunca lhe passou pela cabeça. Não me acuse
de não gostar do menino. Deus sabe que eu gosto até mesmo de você, que me dá
poucos motivos para isso e nenhuma gratidão.
Ela pegou a flanela e esfregou os joelhos de Lyra com tanta força que deixou a
pele rosada e ardendo, porém limpa.
– O motivo disso é que você vai jantar com o Reitor e os convidados dele. Peço a
Deus que você se comporte. Fale somente quando falarem com você, seja discreta e
educada, sorria e nunca diga "Sei lá" quando lhe perguntarem alguma coisa.
Ela enfiou o melhor vestido de Lyra no corpo magro da menina, ajeitou-o, pescou
na confusão de uma gaveta uma fita vermelha e escovou os cabelos dela com uma
escova de cerdas duras.
– Se tivessem me avisado antes, eu podia ter lavado os seus cabelos. Bom, é
uma pena. Tomara que não olhem muito de perto... Pronto. Agora sente-se direito.
Onde estão aqueles sapatos bons, de verniz?
Cinco minutos mais tarde, Lyra estava batendo na porta da Residência do Reitor,
a casa imponente e um pouco lúgubre que se abria para o Quadrilátero Yaxley e dava
fundos para o Jardim da Biblioteca. Pantalaimon, que por polidez se transformara num
arminho, esfregou-se na perna dela. A porta foi aberta por Cousins, criado do Reitor e
velho inimigo de Lyra; mas ambos sabiam que aquilo era uma trégua.
– A Sra. Lonsdale disse para eu vir – Lyra explicou.
– Sim – fez Cousins, pondo-se de lado. – O Reitor está na Sala de Estar.
Ele a levou para o aposento amplo que dava para o Jardim da Biblioteca. Os
últimos raios de sol ali entravam através do vazio entre a Biblioteca e a Torre Palmer's,
e iluminava os quadros pesados e a prataria severa que o Reitor colecionava. Iluminava
também os convidados, e Lyra entendeu por que não iam jantar no Salão: três deles
eram mulheres.
– Ah, Lyra! Que bom que pôde vir! – exclamou o Reitor.
– Cousins, arranje uma coisa que ela possa beber. Dama Hannah, acho que não
conhece Lyra... A sobrinha de Lorde Asriel, a senhora sabe.
Dama Hannah Relf, Diretora de uma das faculdades femininas, era uma senhora
de cabelos grisalhos cujo daemon era um sagüi. Lyra cumprimentou-a com toda
educação e depois foi apresentada aos outros convivas, que eram, como Dama
Hannah, estudiosos de outras Faculdades e bastante desinteressantes. Então o Reitor
chegou ao último convidado.
– Sra. Coulter, esta é a nossa Lyra. Lyra, venha cumprimentar a Sra. Coulter.
– Olá, Lyra – disse a Sra. Coulter.
Era linda e jovem. Os cabelos negros e lisos emolduravam o rosto dela, e seu daemon era um macaco dourado.

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