sábado, 18 de outubro de 2014

4- O Aletômetro

–Espero que seu lugar no jantar seja ao meu lado – disse a Sra. Coulter, abrindo espaço para Lyra no sofá. – Não estou acostumada com o luxo da Residência de um Reitor. Vai ter que me mostrar quais garfos e facas devo usar.
–A senhora é uma Professora? – Lyra perguntou.
   Ela considerava as Professoras com o desdém próprio a uma pessoa da
Jordan: essas pessoas existiam, porém, coitadinhas, nunca seriam levadas a sério
– não mais que animais vestidos de gente, representando uma peça. A Sra.Coulter, por outro lado, não se parecia com qualquer Professora que Lyra já tivesse visto e certamente não como as duas senhoras idosas e sérias que eram as outras convidadas. Lyra havia feito essa pergunta esperando uma resposta negativa, pois a Sra. Coulter tinha um ar elegante que encantou a garota; Lyra mal
conseguia tirar os olhos dela.
– Na verdade, não – respondeu a Sra. Coulter. -
  Pertenço à faculdade da Dama Hannah, porém a maior parte do meu trabalho é
feita fora de Oxford... Fale-me sobre você, Lyra. Sempre morou na Faculdade Jordan?
       Cinco minutos depois, Lyra tinha contado a ela tudo da sua vida meio selvagem:
seus caminhos favoritos pelos telhados, a batalha dos Barreiros, a ocasião em que ela
e Roger tinham apanhado e assado uma gralha, sua intenção de capturar um barco dos
gípcios e ir velejando até Abingdon, etc. Contou-lhe até (depois de olhar em volta, e
baixando a voz) sobre a brincadeira dela e de Roger com as caveiras na cripta.
– E os fantasmas apareceram no meu quarto, sabe, sem cabeça! Não
conseguiam falar, só faziam uns barulhos de gorgolejo, mas eu sabia muito bem o que
eles queriam. Então no dia seguinte fui até lá embaixo e coloquei as moedas de volta.
Senão eles podiam até me matar.
– Quer dizer que você não tem medo do perigo? –disse a Sra. Coulter em tom de
admiração.
     A essa altura já estavam jantando; como a Sra. Coulter esperava, estavam
sentadas juntas. Lyra ignorou completamente seu outro vizinho – o Bibliotecário – e
passou a refeição inteira conversando com a Sra. Coulter.
Quando as senhoras se retiraram para o café, a Dama Hannah disse:
– Diga-me, Lyra, vão mandá-la para a escola?
– Sei l... Eu não sei – ela corrigiu a tempo. – Provavelmente não – acrescentou,
com segurança. – Eu não ia querer dar esse trabalho a eles – continuou, em tom de
santinha. –E essa despesa. Certamente é melhor que eu continue morando na Jordan,
sendo educada pelos Catedráticos daqui quando eles têm um tempinho livre. Como já
estão aqui, certamente vai ser de graça.
– E seu tio, Lorde Asriel, tem algum plano para você? - perguntou a outra
senhora, que era uma Professora na outra faculdade feminina.
– Acho que sim – disse Lyra. – Mas não uma escola. Ele vai me levar para o
Norte na próxima viagem.
– Eu me lembro, foi o que ele me contou – disse a Sra. Coulter.
Lyra pestanejou. As duas Professoras sentaram-se ligeiramente mais eretas,
embora seus daemons, por boa educação ou por preguiça, se limitassem a olhar de
relance um para o outro.
– Nós nos encontramos no Régio Instituto do Pólo Ártico – continuou a Sra.
Coulter. Aliás, é em parte por causa desse encontro que estou aqui hoje.
– A senhora também é exploradora? – Lyra perguntou.
– De certo modo, sim. Estive várias vezes no Norte. No ano passado, fiquei três
meses na Groelândia fazendo observações da Aurora Boreal.
      Foi o que bastou; daí em diante, para Lyra nada –e ninguém mais – existia. Ela
contemplava a Sra. Coulter com respeitoso deslumbramento e escutava atenta e
extasiada as descrições da construção de iglus, das caçadas de focas, das
negociações com as bruxas da Lapônia. As duas Professoras não tinham coisas tão
interessantes para contar e ficaram sentadas em silêncio até a chegada dos homens.
      Mais tarde, quando os convidados se preparavam para partir, o Reitor disse:
– Fique mais um pouco, Lyra; eu gostaria de conversar um minutinho com você.
     Vá para o meu escritório, sente-se e espere por mim lá.
Intrigada, cansada e excitada, Lyra obedeceu. O criado Cousins levou-a ao
escritório e deixou a porta aberta propositalmente para poder ver do saguão – onde ajudava os convidados a vestir os abrigos – o que ela estaria fazendo. Lyra procurou a Sra. Coulter com o olhar, mas não a viu, e então o Reitor entrou no escritório e fechou a porta.
   Sentou-se pesadamente na poltrona junto à lareira. Seu daemon esvoaçou para
as costas da cadeira e empoleirou-se perto da cabeça do Reitor, fixando em Lyra os
velhos olhos semicerrados. A lamparina sibilava baixinho. O Reitor disse:
– Bem, Lyra, você andou conversando com a Sra. Coulter; gostou de ouvir o que
ela dizia?
– Gostei!
– É uma dama notável.
– É maravilhosa. É a pessoa mais maravilhosa que já conheci.
    O Reitor suspirou. Com seu terno e gravata pretos, ele se parecia com o seu
daemon, e de repente ocorreu a Lyra que um dia não muito distante ele seria enterrado
na cripta sob o Oratório, e um artista iria gravar o daemon dele na placa de bronze
para o caixão, e o nome do daemon constaria ao lado do dele.
– Eu já devia ter arranjado tempo para ter uma conversa com você, Lyra – ele
começou, depois de um instante. –Estava pretendendo mesmo fazer isso, mas parece
que já passou mais tempo do que eu imaginava. Você sempre esteve segura aqui na
Jordan, minha cara. Acho que tem sido feliz. Não lhe foi fácil nos obedecer, mas
gostamos muito de você, e você nunca foi uma criança má. Há muita bondade e ternura
na sua natureza, e muita determinação. Você vai precisar de tudo isso. No mundo lá
fora, estão acontecendo coisas das quais eu gostaria de proteger você, prendendo-a
aqui na Jordan, porém isso não é mais possível.
Ela o encarou sem falar. Então iam mandá-la embora?
– Você sabia que um dia teria que ir para a escola– o Reitor continuou. – Nós aqui lhe ensinamos algumas coisas, mas não muito bem, nem de maneira organizada.
Nosso conhecimento é de outro tipo. Você precisa aprender coisas que homens idosos
não têm condições de lhe ensinar, principalmente na sua idade. Você certamente sabia
disso. Não é filha de criados, não poderíamos entregá-la para ser adotada por uma
família da cidade. Eles poderiam cuidar de você em certas coisas, mas as suas
necessidades são diferentes. O que estou querendo dizer, Lyra, é que esta parte da
sua vida dentro da Faculdade Jordan está chegando ao fim.
– Não, não! – ela protestou. – Não quero sair da Jordan! Gosto daqui. Quero ficar aqui para sempre!
– Quando a gente é jovem, pensa que as coisas duram para sempre.
Infelizmente, elas não duram. Lyra, não falta muito tempo, no máximo um par de anos,
para você se tornar uma moça, não mais uma criança. Uma senhorita. Pode acreditar,
aí você vai achar a Faculdade Jordan um lugar muito difícil para se morar.
– Mas é o meu lar!
– Tem sido o seu lar. Mas agora você precisa de outra coisa.
– Escola, não. Eu não vou para a escola.
– Você precisa de companhia feminina. De orientação feminina.
   A expressão "orientação feminina" fez Lyra pensar nas Professoras, e ela fez uma
careta involuntária. Ser exilada da imponência da Jordan, do esplendor e fama de seu
ensino, para uma faculdade num prédio de tijolos parecendo uma pensão no subúrbio
de Oxford, com Professoras desmazeladas que cheiravam a repolho e naftalina, como
aquelas duas!
O Reitor percebeu a expressão dela e viu piscarem em vermelho os olhos de
gambá de Pantalaimon. Perguntou:
– E se por acaso fosse a Sra. Coulter?
No mesmo instante, o pêlo de Pantalaimon mudou de marrom-escuro para puro
branco. Lyra arregalou os olhos.
– De verdade?
– Ela é conhecida de Lorde Asriel. O seu tio, naturalmente, está muito
preocupado com o seu bem-estar, e quando a Sra. Coulter ouviu falar de você, ela no
mesmo instante se ofereceu para ajudar. Aliás, ela é viúva. O marido morreu num
acidente muito triste há alguns anos; de modo que você se lembre disso antes de
perguntar alguma coisa.
Lyra assentiu ansiosamente e perguntou:
– E ela vai mesmo... tomar conta de mim?
– Você gostaria?
– Sim!
Lyra mal conseguia ficar sentada. O Reitor sorriu. Isso acontecia tão raramente
que ele tinha perdido a prática, e quem estivesse prestando atenção (coisa que Lyra
não estava em condições de fazer) pensaria que se tratava de uma careta de
desagrado.
– Bem, então é melhor convidá-la para vir conversar sobre isso – disse.
Ele saiu do escritório e quando voltou, um minuto depois, com a Sra. Coulter, Lyra
estava de pé, excitada demais para ficar sentada. A Sra. Coulter sorriu, e seu daemon
mostrou os dentes brancos numa expressão travessa e satisfeita. Ao passar por Lyra a
caminho de uma poltrona, a Sra. Coulter tocou de leve seus cabelos e Lyra sentiu uma
onda de carinho cobri-la, e enrubesceu.
Depois que o Reitor serviu branrwijn à Sra. Coulter, ela disse:
– Bem, Lyra, quer dizer que vou ter uma assistente?
– Sim – disse Lyra simplesmente. Teria dito "sim" a qualquer coisa.
– Preciso de ajuda em muita coisa.
– Posso trabalhar!
– E talvez tenhamos que viajar.
– Não me importo. Vou a qualquer lugar.
– Mas pode ser perigoso. Podemos ter que ir para o Norte.
Lyra ficou sem fala. Finalmente conseguiu perguntar:
– Logo?
A Sra. Coulter riu e disse:
– Talvez. Mas sabe que vai ter que trabalhar muito. Vai ter que aprender
matemática, navegação, geografia celeste.
– A senhora vai me ensinar?
– Vou. E você vai ter que me ajudar tomando notas, arrumando meus papéis,
fazendo vários cálculos básicos, etc. E como vamos visitar algumas pessoas
importantes, temos que arrumar roupas bonitas para você. Há muito que aprender,
Lyra.
– Não me importo. Quero aprender tudo.
– Tenho certeza de que vai conseguir. Quando voltar à Jordan, será uma viajante
célebre. Agora, vamos partir muito cedo amanhã de manhã, pelo zepelim da madrugada, de modo que é melhor você ir dormir. Vejo você no café da manhã. Boa noite!
– Boa noite – retribuiu Lyra. Lembrando-se da pouca etiqueta que conhecia, ela
virou- se da porta e disse: – Boa noite, Reitor.
Ele assentiu.
– Durma bem.
– E obrigada – fez Lyra, dirigindo-se à Sra. Coulter.
Ela finalmente conseguiu dormir, embora Pantalaimon não tivesse sossegado até ela ralhar com ele, e ele então se transformou em porco-espinho de pura má-criação.
Ainda estava escuro quando alguém a sacudiu.
– Lyra... psiu... Não se assuste... acorde, garota!
Era a Sra. Lonsdale. Estava segurando uma vela; ela inclinou-se e falou baixinho,
segurando Lyra com a mão livre.
– Escute. O Reitor quer falar com você antes de você se encontrar com a Sra. Coulter no café da manhã. Levante-se depressa e corra até a Residência. Entre no jardim e bata na porta-janela do escritório. Entendeu?
Completamente acordada e fervendo de curiosidade, Lyra assentiu e enfiou os
pés nos sapatos que a Sra. Lonsdale colocou no chão para ela.
–Não se preocupe em se lavar. Pode fazer isso depois. Agora vá direto e volte
direto. Vou começar a arrumar sua bagagem e separar alguma coisa para você usar.
Agora se apresse.
O Quadrilátero escuro ainda estava cheio do ar frio da noite. No céu as últimas estrelas ainda estavam visíveis, mas a luz que vinha do leste gradualmente ocupava o céu acima do Salão. Lyra correu para o Jardim da Biblioteca e ficou por um momento parada na imensa quietude, olhos erguidos para os pináculos de pedra da Capela, a cúpula verde-perolada do Prédio Sheldon, o lampião pintado de branco da Biblioteca.
Agora que ia deixar aquele ambiente, perguntou-se se sentiria muita saudade.
Alguma coisa se moveu na porta-janela do escritório e um brilho de luz cintilou por
um instante. Ela lembrou-se do que tinha que fazer e bateu na porta de vidro, que se
abriu de imediato.
– Muito bem. Entre depressa. Não temos muito tempo - disse o Reitor, fechando
a cortina sobre a janela assim que ela entrou.
Ele estava inteiramente vestido de preto, como de costume.
– Quer dizer que eu não vou, afinal? – Lyra perguntou.
– Vai, sim. Não posso impedir – disse o Reitor, sem que Lyra percebesse na
ocasião que aquilo era algo estranho de se dizer. – Lyra, quero lhe dar uma coisa, mas
você vai ter que prometer que não vai contar a ninguém. Você jura?
– Juro – fez Lyra.
Ele foi até a escrivaninha e tirou de uma gaveta um pacotinho embrulhado em
veludo preto. Quando ele desdobrou o pano, Lyra viu uma coisa como um relógio de
pulso grande, ou um relógio de parede pequeno: um disco espesso de bronze e cristal.
Podia ser uma bússola ou algo assim.
– O que é isso? – ela perguntou.
– É um aletômetro. Só existem seis no mundo, Lyra, e novamente eu aviso:
mantenha-o em segredo. Seria melhor se a Sra. Coulter não soubesse. O seu tio...
– Mas que é que isso faz?
– Diz a verdade. Quanto à maneira de operar, você vai ter que descobrir sozinha.
Agora vá, está clareando. Corra de volta ao seu quarto antes que alguém a veja.
Ele dobrou o veludo sobre o instrumento e colocou-o nas mãos dela. Era
surpreendentemente pesado. Então ele colocou as mãos de cada lado da cabeça da
menina e segurou-a de leve por um instante.
Ela tentou erguer os olhos para ele e perguntou:
– Que era que o senhor ia dizer do meu tio Asriel?
– O seu tio presenteou-o à Faculdade Jordan há alguns anos. Ele podia...
Antes que ele pudesse terminar a frase, ouviu-se uma batida leve na porta. Ela
sentiu as mãos dele estremecerem.
– Vá depressa, agora, criança – ele disse baixinho. –Os poderes deste mundo
são muito grandes. Homens e mulheres são movidos por ondas muito mais violentas do
que você pode imaginar, que nos arrastam a todos na correnteza. Vá em paz, Lyra.
Seja discreta.
– Obrigada, Reitor – ela disse em tom formal.
Apertando o pacote de encontro ao peito, ela saiu do escritório pela porta para o
jardim, olhando de relance para trás e vendo o daemon do mestre observando-a do
peitoril da janela. O céu já estava mais claro; havia um cheiro novo no ar.
– Que é isso aí? – perguntou a Sra. Lonsdale, fechando a pequena e maltratada
mala.
– O Reitor me deu. Será que vai caber na mala?
– Tarde demais. Não vou tornar a abrir. Seja o que for, vai ter que ir no bolso do
seu casaco. Vá depressa para a Cantina; não faça os outros esperarem...
Só depois de se despedir dos poucos criados que estavam acordados e da Sra. Lonsdale foi que ela se lembrou de Roger, e então sentiu-se culpada por não ter
pensado nele uma só vez depois que conhecera a Sra. Coulter. Como as coisas tinham
acontecido depressa!
E agora ela estava a caminho de Londres; sentada junto à janela num zepelim,
com as pequenas e afiadas garras das patas traseiras de arminho de Pantalaimon
enfiadas em sua coxa, enquanto as patas dianteiras do seu daemon apoiavam-se na
vidraça através da qual ele espiava. Ao lado de Lyra, a Sra. Coulter trabalhava em
alguns papéis, mas logo guardou-os e se pôs a conversar. Que conversa interessante!
Lyra ficou deslumbrada; dessa vez a conversa não era sobre o Norte, mas sobre
Londres, os restaurantes e salões de baile, as festas nas Embaixadas e nos
Ministérios, as fofocas entre White Hall e Westminster.
Para Lyra a conversa rivalizava em fascínio com a paisagem mutante vista da
aeronave. O que a Sra. Coulter estava dizendo parecia ser acompanhado de um
perfume de "adultez", alguma coisa ao mesmo tempo perturbadora e atraente: era o
cheiro do luxo.
A aterrissagem em Falkeshall Gardens, a viagem de barco atravessando o rio
marrom, o quarteirão de mansões imponentes no Embankment, onde um mensageiro
corpulento (uma espécie de carregador de bagagem condecorado) cumprimentou a
Sra.Coulter e piscou para Lyra, que o estudou com expressão impassível. E depois o
apartamento...
Lyra só fazia abrir a boca.
Em sua curta vida, ela já havia visto muita beleza, mas era uma beleza jordaniana,
uma beleza oxfordiana – imponente, pétrea, masculina. Na Faculdade Jordan, muita
coisa era grandiosa, mas nada era mimoso; no apartamento da Sra. Coulter tudo era
mimoso. Ele era cheio de luz, pois as janelas largas eram viradas para o sul, e as
paredes eram cobertas de um delicado papel listado em branco e dourado. Quadros
encantadores em molduras douradas, um espelho antigo, arandelas interessantes
servindo de base para luminárias anbáricas com cúpulas embabadadas; e babados nas
almofadas, também, e sanefas estampadas de flores escondendo o trilho das cortinas,
e um macio tapete verde estampado de folhas; e aos olhos inocentes de Lyra parecia
que cada superfície estava coberta de lindas caixinhas, pastoras e arlequins de
porcelana.
A Sra. Coulter sorriu da admiração da menina.
– É, Lyra, há tanta coisa para lhe mostrar! Tire o casaco e vou levá-la até o
banheiro. Você pode se lavar, depois vamos almoçar e fazer compras...
     O banheiro era outra maravilha. Lyra estava acostumada a lavar-se com um
grosseiro sabão amarelo numa bacia trincada, onde a água que pingava das torneiras
nunca ficava mais do que morna, e muitas vezes vinha pintalgada de ferrugem; mas ali
a água era quente, o sabão era cor-de-rosa e as toalhas eram felpudas e macias como
nuvens. E em volta da borda do espelho fumê havia pequenas luzes cor-de-rosa, de
modo que quando Lyra olhou-se ao espelho ela viu uma figura iluminada suavemente,
bem diferente da Lyra que ela conhecia.
     Pantalaimon, que procurava imitar a forma do daemon da Sra. Coulter, estava agachado na beirada da bacia, fazendo caretas para ela. Ela o empurrou para dentro da água ensaboada e de repente lembrou-se do aletômetro no bolso do casaco. Tinha deixado o casaco numa cadeira na sala. Tinha prometido ao Reitor guardar segredo da
Sra. Coulter...
   Ah, aquilo era confuso. A Sra. Coulter era tão boa e sábia, ao passo que Lyra tinha visto o Reitor tentando envenenar tio Asriel. A qual dos dois ela devia mais obediência?
    Enxugou-se às pressas e correu de volta para a sala, onde seu casaco ainda
estava intocado, naturalmente.
–Pronta? Acho que podemos ir almoçar no Régio Instituto do Pólo Ártico. Sou
uma das poucas mulheres membros, de modo que é melhor usar os privilégios que
tenho.
    Uma caminhada de vinte minutos levou-as a um imponente prédio com fachada em
pedra, onde elas se sentaram num amplo salão de refeições com toalhas brancas
como neve e talheres de prata brilhante sobre as mesas, e comeram fígado de vitela e
bacon.–
    O fígado de vitela não faz mal, e nem o de foca, mas se você ficar sem comida
no Ártico, não deve comer fígado de urso. Ele é cheio de um veneno que mata em
poucos minutos.
    Enquanto comiam, a Sra. Coulter comentava sobre alguns dos membros nas
outras mesas.
– Está vendo aquele senhor idoso, de gravata vermelha? É o Coronel Carborn.
Ele fez o primeiro voo de balão por cima do Pólo Norte. E o homem alto perto da
janela, aquele que acaba de se levantar, é o Dr. Flecha Partida.
– Ele é escraelingue?
– É, sim. Foi ele quem mapeou as correntes oceânicas do Grande Oceano
Ártico...
    Lyra contemplou todos aqueles grandes homens com curiosidade e respeito.
Eram estudiosos, sem dúvida, mas eram exploradores também. O Dr. Flecha Partida
sabia sobre o fígado dos ursos; ela duvidava que o Bibliotecário da Jordan soubesse.
     Depois do almoço, a Sra. Coulter mostrou-lhe algumas das preciosas relíquias do
Ártico na Biblioteca do Instituto: o arpão que matara a grande baleia Grimssdur, a pedra com a inscrição numa linguagem desconhecida encontrada na mão do explorador Lorde Rukh, morto por congelamento na solidão da sua barraca, um acendedor de fogo usado pelo Capitão Hudson em sua famosa viagem à Terra de Van Tieren. Ela contou a história de cada relíquia, e Lyra sentiu o coração fremir de admiração por aqueles grandes heróis corajosos e distantes.
    Depois foram às compras. Tudo naquele dia extraordinário era uma experiência nova para Lyra, mas fazer compras foi a mais estonteante. Entrar num prédio enorme cheio de roupas lindas, onde as pessoas deixavam a gente experimentar, onde a gente se olhava nos espelhos... E as roupas eram tão bonitinhas... As roupas de Lyra tinham vindo através da Sra. Lonsdale, e muitas delas eram usadas e bastante remendadas.
     Ela raramente teve alguma coisa nova, e quando tinha, era uma roupa escolhida pela
praticidade, não pela aparência; ela nunca escolhera alguma coisa para si. E agora,
com a Sra. Coulter sugerindo isto, elogiando aquilo e pagando tudo, e mais ainda...
Quando terminaram, Lyra estava corada e tinha os olhos brilhantes de cansaço. A Sra. Coulter instruiu que a maior parte das roupas fosse embalada e entregue em sua casa, mas levou uma ou duas coisas consigo quando ela e Lyra caminharam de volta para o apartamento.
Depois, um banho com espuma espessa e perfumada. A Sra.Coulter entrou no
banheiro para lavar os cabelos de Lyra, e ela não esfregava e arranhava como a Sra.
Lonsdale. Ela era delicada. Pantalaimon observava com intensa curiosidade até que a
Sra. Coulter olhou para ele, que entendeu o que ela queria dizer e virou-se de costas,
desviando pudicamente o olhar daqueles mistérios femininos, como o macaco dourado
estava fazendo. Ele antes disso nunca tinha precisado desviar os olhos de Lyra.
Então, depois do banho, um leite quente com ervas; e uma camisola nova de
flanela com estampado de flores e bainha recortada, e chinelos de lã de carneiro
tingida de azul-claro; e depois para a cama.
Tão macia, aquela cama! Tão delicada, a luz anbárica na mesa-de-cabeceira! E o
quarto tão aconchegante, com as pequenas mesas-de-cabeceira e a penteadeira e a
cômoda onde seriam guardadas suas roupas novas, e um tapete de uma parede à
outra, e lindas cortinas cobertas de estrelas, luas e planetas! Lyra, tensa, estava
cansada demais para dormir, encantada demais para questionar qualquer coisa.
Depois que a Sra. Coulter lhe desejou uma boa noite e saiu do quarto,
Pantalaimon puxou-lhe o cabelo. Ela o afastou com um gesto, mas ele sussurrou:
– Onde está o negócio?
Ela sabia o que ele queria dizer. O casaco velho e humilde estava pendurado no
armário; segundos depois ela estava de volta na cama, sentada de pernas cruzadas à
luz da luminária, com Pantalaimon observando atentamente enquanto ela desdobrava o
veludo preto e contemplava aquilo que o Reitor lhe dera.
– Como foi que ele chamou? – ela cochichou.
– Aletômetro.
Não adiantava perguntar o que isso significava. O objeto pesava nas mãos dela, a
face de cristal brilhando, o corpo de bronze primorosamente usinado. Era muito
parecido com um relógio, ou uma bússola, pois havia ponteiros apontando para lugares
em volta do mostrador, mas em vez de horas ou pontos cardeais havia várias figuras
pequeninas, todas pintadas com precisão extraordinária, como se fosse em marfim
com o mais fino e delicado pincel de visom. Ela girou o mostrador nas mãos para
observar todas elas. Havia uma âncora; uma ampulheta encimada por uma caveira; um
touro, uma colméia... Ao todo eram 36 desenhos, e ela nem imaginava o que
significavam.
– Há um botão, olhe – Pantalaimon avisou. – Veja se consegue dar corda nele.
Na verdade, havia três pequenos pinos giratórios facetados, e cada um
movimentava um dos três ponteiros menores, que se moviam em volta do mostrador
numa série de pequenos estalidos. Podiam ser apontados para qualquer uma das
figuras; e uma vez entrando em posição, apontando exatamente para o centro de cada
uma, eles não podiam ser movidos.
O quarto ponteiro era mais comprido e fino, e parecia ser feito de metal menos
brilhante do que os outros três. Lyra não conseguiu controlar o movimento dele; ele ia
para onde queria, como a agulha de uma bússola, mas não parava.
– O final "metro" significa "medida" – Pantalaimon declarou. – Como termômetro.
O Capelão nos ensinou isso.
– É, mas essa é a parte fácil – ela respondeu num cochicho. – Para que será que
serve?
Nenhum dos dois conseguiu adivinhar. Lyra passou muito tempo movendo os
ponteiros para apontar para um ou outro símbolo (anjo, elmo, golfinho; globo, bandolim,
bússolas; vela, raio, cavalo) e observando o ponteiro grande mover-se de modo
errático e incessante; embora não tenha entendido coisa alguma, ela ficou intrigada e
deliciada com a complexidade e o detalhamento. Pantalaimon transformou-se num rato
para poder chegar mais perto e descansou as patas minúsculas na borda, os olhinhos
redondos negros de curiosidade enquanto ele observava os movimentos do ponteiro.
– Que é que acha que o Reitor quis dizer sobre o tio Asriel? – ela perguntou.
– Talvez a gente tenha que manter isto em segurança e depois entregar a ele.
– Mas o Reitor ia envenenar tio Asriel! Talvez seja o contrário. Talvez ele fosse
dizer: não entregue ao seu tio.
– Não – contradisse Pantalaimon. – É dela que temos que manter isto
escondido...
Ouviram-se batidas leves na porta. A Sra. Coulter disse:
– Lyra, se eu fosse você, apagava a luz. Você está cansada, e teremos muito
trabalho amanhã.
Lyra tinha depressa enfiado o aletômetro debaixo das cobertas.
– Está certo, Sra. Coulter – disse.
– Então boa noite.
– Boa noite.
Ela deitou-se e apagou a luz. Antes de adormecer, enfiou o aletômetro debaixo do
travesseiro, por medida de segurança.

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