sábado, 18 de outubro de 2014

5- A Festa

     Nos dias que se seguiram, Lyra foi a toda parte com a Sra. Coulter, quase
como se ela própria fosse um daemon. A Sra. Coulter conhecia muita gente, e as
duas frequentavam vários tipos de lugares. De manhã podia haver uma reunião de
geógrafos no Régio Instituto do Pólo Ártico, a que Lyra assistia; depois a Sra.
Coulter podia almoçar com um político ou um clérigo num restaurante elegante,
onde todos eram muito simpáticos com Lyra e lhe ofereciam pratos especiais, e
ela aprendeu a comer aspargos e o sabor de tripas de carneiro. A tarde talvez
fossem às compras, pois a Sra. Coulter estava preparando sua expedição – era
preciso comprar peles, lonas e botas à prova d' água, assim como sacos de
dormir, facas e instrumentos de desenho que deliciaram Lyra.
     Depois disso talvez fossem tomar chá com algumas damas tão bem vestidas
quanto a Sra. Coulter, embora não tão belas ou elegantes: eram mulheres tão
diferentes das catedráticas, ou das mães de família dos barcos gípcios, ou das criadas
das faculdades, que quase pareciam ser de um sexo diferente, com perigosos poderes
e qualidades tais como elegância, charme e graça. Lyra vestia-se com apuro para
essas ocasiões, e as damas a paparicavam, incluindo-a em suas conversas sutis e
agradáveis, que eram sempre sobre pessoas: um artista, um político, dois amantes.
     E quando chegava a noite, a Sra. Coulter talvez levasse Lyra ao teatro, onde
também haveria muitas pessoas elegantes com quem conversar e por quem ser
admirada, pois parecia que a Sra. Coulter conhecia todas as pessoas importantes de Londres.
     Nos intervalos de tantas atividades, a Sra. Coulter ensinava-lhe os rudimentos de
geografia e matemática. A cultura de Lyra tinha grandes lacunas, como um mapa-múndi
roído pelos ratos, pois na Jordan ensinavam-lhe desordenadamente: designavam um Professor-assistente para ensinar-lhe certas matérias e ela comparecia às aulas relutantemente durante uma semana, mais ou menos, até que "se esquecia" de aparecer, para grande alívio do Professor. Ou então um Catedrático esquecia-se do que deveria ensinar a ela e lhe aplicava um curso intensivo sobre a sua pesquisa na época, qualquer que fosse; assim, não é de admirar que seu conhecimento se
assemelhasse a uma colcha de retalhos.
    Ela conhecia alguma coisa sobre átomos e partículas elementares, cargas
anbaromagnéticas, as quatro forças fundamentais e mais um ou outro item da teologia
experimental, mas nada sobre o sistema solar. Na verdade, quando a Sra. Coulter percebeu isso e lhe explicou que a Terra e os outros cinco planetas giravam ao redor do sol, Lyra riu da piada.
No entanto estava ansiosa para mostrar que sabia algumas coisas, e quando a
Sra. Coulter estava lhe falando dos elétrons, ela afirmou, com ar de sapiência:
– É, são partículas com carga negativa. Um pouco parecidos com o Pó, mas o Pó
não tem carga.
Assim que ela disse isso, o daemon da Sra. Coulter ergueu a cabeça para olhar
para ela, e todos os pêlos dourados eriçaram-se, como se eles próprios fossem
carregados. A Sra. Coulter pousou a mão no dorso do daemon.
– Pó? – ecoou, em tom de pergunta.
– Sim. Do espaço, a senhora sabe. Aquele Pó.
– Que é que você sabe sobre isso, Lyra?
– Ah, que ele vem do espaço e acende as pessoas, se a gente tiver uma câmera
especial para filmar. Mas as crianças não. Ele não afeta as crianças.
– Onde foi que aprendeu isso?
A essa altura, Lyra percebia que havia uma forte tensão no ar, porque
Pantalaimon tinha se esgueirado como um arminho para o colo dela, e tremia
violentamente.
– Uma pessoa lá na Jordan – disse a menina em tom vago.
– Não me lembro quem. Acho que foi um dos Catedráticos.
– Foi durante uma aula?
– É, pode ter sido, ou então pode ter sido dito de passagem. É, acho que foi isso.
Aquele Professor, acho que ele era da Nova Dinamarca, ele estava conversando com o
Capelão sobre o Pó, eu estava passando e achei interessante. Então tive que parar e
escutar. Foi isso.
– Entendo – fez a Sra. Coulter.
– Está correto o que ele me disse? Eu entendi errado?
– Bem, não sei. Tenho certeza de que você sabe muito mais que eu. Vamos voltar
para os elétrons...
Mais tarde Pantalaimon disse:
– Lembra quando o daemon dela arrepiou-se todo? Eu estava atrás dele, e ela
agarrou a pele dele com tanta força, que os nós dos dedos dela ficaram brancos. Não
dava para você ver. Demorou muito até ele voltar ao normal. Pensei que ia pular em
cima de você.
   A quilo era estranho, sem dúvida; mas nenhum deles tinha ideia do porquê.
   E finalmente havia outro tipo de aulas, dadas com sutileza que não pareciam
aulas: como lavar os cabelos, escolher as cores que a favoreciam, como dizer não de maneira tão encantadora que não causasse ofensa, como passar batom, pó, perfume. É verdade que a Sra. Coulter não ensinou estas últimas artes diretamente, mas sabia que Lyra estava observando enquanto ela se maquilava, e tomava cuidado para que Lyra visse onde ela guardava os cosméticos e para lhe proporcionar um tempo livre para explorá-los e experimentá-los.
   O tempo passou, e o outono começou a virar inverno. De vez em quando Lyra
pensava na Faculdade Jordan, que lhe parecia pequena e sossegada, em comparação
com a vida agitada que ela levava agora. De vez em quando, pensava em Roger,
também, e ficava inquieta, mas havia sempre uma ópera, ou um vestido novo, ou uma
visita ao Régio Instituto do Pólo Ártico, e ela tornava a esquecer-se dele.
    Quando já havia cerca de seis semanas que Lyra morava lá, a Sra. Coulter
resolveu dar uma festa. Lyra tinha a impressão de que havia uma coisa a ser
comemorada, embora a Sra. Coulter não dissesse o que era. Ela encomendou flores,
debateu drinques e canapés com a firma do bufê, passou horas com Lyra decidindo
quem convidar.
– Temos que chamar o Arcebispo. Não posso deixá-lo de fora, embora ele seja
um velho odiento e esnobe. O Lorde Boreal está na cidade; ele é divertido. E a
Princesa Postnikova. Acha que seria correto convidar Erik Andersson? Não sei se já
está na hora de admiti-lo...
Erik Andersson era o mais recente dançarino da moda. Lyra não tinha idéia do
que significava "admitir", mas mesmo assim gostava de dar sua opinião. Anotou todos
os nomes que a sra. Coulter sugeriu, com muitos erros de ortografia, depois riscava-os
quando a Sra. Coulter resolvia não convidá-los. Quando Lyra foi deitar-se, Pantalaimon
cochichou-lhe:
– Ela nunca irá para o Norte! Vai nos prender aqui para sempre. Quando é que
vamos fugir?
– Vai, sim – Lyra cochichou de volta. – É que você não gosta dela. Bem, azar o
seu; eu gosto dela. E por que ela ia nos ensinar navegação se não pretende nos levar
para o Norte?
– Para que você não fique impaciente, só por isso. Você, na verdade, não vai
querer ficar plantada na festa sendo simpática e bonitinha. Ela está fazendo de você
um bichinho de estimação.
Lyra virou-lhe as costas e fechou os olhos. Mas o que Pantalaimon tinha dito era
verdadeiro: ela vinha se sentindo presa e oprimida por aquela vida de etiqueta, por
mais luxuosa que fosse. A garota daria qualquer coisa por um dia com seus amigos
moleques de Oxford, com uma batalha nos Barreiros e uma corrida ao longo do canal.
A única coisa que lhe fazia ser educada e atenta com a Sra. Coulter era a tentadora
esperança de ir para o Norte – talvez encontrassem Lorde Asriel, talvez ele e a Sra.
Coulter se apaixonassem, se casassem e adotassem Lyra, e salvassem Roger dos
Papões.
Na tarde da festa, a Sra. Coulter levou Lyra a um cabeleireiro da moda, onde
seus rebeldes cachos louros foram amaciados e penteados, e suas unhas foram
lixadas e pintadas; aplicaram-lhe até um pouco de maquilagem nos olhos e nos lábios,
para ensinar como fazer isso. Depois elas foram buscar o vestido que a Sra. Coulter
tinha mandado fazer para Lyra, e compraram sapatos de verniz; então chegou a hora
de voltar para o apartamento, verificar as flores e vestir-se.
Lyra saiu do quarto radiante com a sensação da sua própria formosura.
– A bolsa a tiracolo, não, querida – disse a Sra. Coulter.
Lyra tinha o hábito de levar sempre consigo uma bolsinha a tiracolo de couro
branco, para ter o aletômetro sempre perto.
A Sra. Coulter, ajeitando um buquê de rosas que tinha sido mal colocado dentro
de um vaso, viu que Lyra não se movia, e olhou fixamente para a porta.
– Ah, por favor, Sra. Coulter, eu adoro esta bolsa!
– Não dentro de casa, Lyra. É absurdo usar uma bolsa a tiracolo em sua própria
casa. Guarde-a imediatamente e venha me ajudar a verificar essas taças...
Não foi apenas o tom irritado como também as palavras "em sua própria casa"
que fizeram Lyra resistir com teimosia.
Pantalaimon voou para o chão e imediatamente tornou-se um gambá, arqueando
as costas contra as meias soquetes brancas que ela usava. Assim encorajada, Lyra
disse:
– Mas ela não vai atrapalhar. E é a única coisa que eu gosto mesmo de usar.
Acho que ela realmente combina com...
Ela não terminou a frase, pois o daemon da Sra. Coulter saltou do sofá como um
raio dourado e prendeu Pantalaimon no tapete antes que esse pudesse se mover. Lyra
soltou uma exclamação de susto, depois de medo e dor, enquanto Pantalaimon se
contorcia, guinchando e rosnando, sem conseguir soltar-se das garras do macaco
dourado. Poucos segundos depois, o macaco tinha uma das patas negras em volta da
garganta de Pantalaimon e as duas patas traseiras prendendo as pernas do gambá;
com a outra pata dianteira o macaco agarrou uma das orelhas de Pantalaimon e pôs-se
a puxá-la como sequisesse arrancá-la. Não parecia fazer aquilo com raiva, mas com
uma força fria que era horrível de ver e ainda pior de sentir.
Lyra chorava de terror.
– Não! Por favor! Pare de nos machucar!
A Sra. Coulter ergueu os olhos das flores.
– Então faça o que eu mando – disse.
– Eu prometo!
O macaco dourado largou Pantalaimon, como se de repente se sentisse
entediado. Pantalaimon voou para Lyra, que o pegou no colo para acariciá-lo e beijá-lo.
– Agora, Lyra – disse a Sra. Coulter.
Lyra virou-se de costas, foi para seu quarto batendo a porta atrás de si, mas esta
no mesmo instante tornou a abrir-se; a Sra. Coulter estava parada a menos de um
metro.–
Lyra. se você se comportar desta maneira grosseira e vulgar, vamos brigar, e
eu vou vencer. Largue esta bolsa imediatamente. Desmanche esta careta
desagradável. Nunca mais bata uma porta, na minha presença ou longe dela. Agora, os
primeiros convidados vão chegar em poucos minutos, e vão achar você simpática,
encantadora, inocente, educada, de comportamento impecável. Este é o meu desejo,
está me entendendo, Lyra?
– Sim, Sra. Coulter.
– Então me dê um beijo.
Ela inclinou-se e ofereceu a face; Lyra teve que ficar na ponta dos pés para beijála.
Notou a maciez da pele e o cheiro leve e curioso da carne da Sra. Coulter:
perfumado, mas um pouco metálico. Ela afastou-se e colocou a bolsa sobre a
penteadeira, antes de seguir a Sra. Coulter de volta à sala.
– Que é que está achando das flores, minha cara? – a Sra. Coulter perguntou
como se nada tivesse acontecido. –Escolher rosas é garantia de não errar, mas o
exagero pode ficar feio... Será que o pessoal do bufê trouxe gelo suficiente? Faça-me
esta gentileza, vá verificar. Bebida quente é horrível...
Lyra achou muito fácil fingir estar alegre e simpática, embora o tempo todo
estivesse consciente da contrariedade de Pantalaimon e do ódio dele pelo macaco
dourado. Finalmente soou a campainha da porta, e logo o aposento estava repleto de
senhoras vestidas no rigor da moda e cavalheiros bonitões ou elegantes. Lyra movia-se
entre eles oferecendo canapés ou sorrindo com doçura e dando respostas bonitinhas
quando falavam com ela. Ela se sentia um bichinho de estimação universal; e no
instante em que pensou isso, Pantalaimon estendeu suas asas de pintassilgo e piou
bem alto.
Ela sentiu a satisfação dele ao perceber esses sentimentos dela e ficou um pouco
mais retraída.
– E quando é que vai para a escola, minha cara? –perguntou uma dama idosa,
examinando Lyra através de um pincenê.
– Não vou para a escola – disse-lhe Lyra.
– É mesmo? Pensei que sua mãe ia mandá-la para a escola dela. Um lugar
bastante satisfatório...
Lyra ficou perplexa, até entender o equívoco da velha senhora.
– Ah, ela não é minha mãe! Eu sou só a assistente dela. Sou a secretária – disse,
em tom importante.
– Entendo. E quem são seus pais?
Mais uma vez Lyra teve que raciocinar para entender o que ela queria dizer, antes
de responder:
– Um conde e uma condessa. Morreram num acidente aeronáutico no Norte.
– Que conde?
– O Conde Belacqua. Ele era irmão do Lorde Asriel.
     O daemon da dama, uma espécie de papagaio vermelho, mexeu-se de um pé
para o outro, como se estivesse irritado. A velha senhora estava começando a mostrar
forte curiosidade, de modo que Lyra sorriu com doçura e seguiu em frente.
Estava passando por um grupo de homens e uma mulher jovem perto do sofá
grande quando ouviu a palavra "Pó". A essa altura, ela já conhecia suficientemente a
sociedade para perceber quando homens e mulheres estavam flertando, e observava
fascinada o processo, embora ficasse mais fascinada pela menção ao Pó, e deixou-se
ficar por ali para escutar. Os homens pareciam ser Catedráticos; pelo modo como a
moça os interrogava, Lyra concluiu que ela era estudante.
– Quem descobriu foi um moscovita, um homem chamado Rusakov – dizia um
homem de meia- idade, enquanto a moça o contemplava com admiração. – Se já
souber dessas coisas, me avise. Bom, elas costumam ser chamadas de Partículas de
Rusakov, por causa dele. Partículas elementares que não interagem com outras de
maneira alguma. Muito difíceis de serem detectadas. Mas o extraordinário é que
parece que elas são atraídas pelos seres humanos.
– É mesmo? – fez a jovem, arregalando os olhos.
– Ainda mais extraordinário: alguns seres humanos mais do que outros –
prosseguiu ele. – Os adultos as atraem, mas não as crianças. Pelo menos não muito, e
só depois da adolescência. Aliás, foi exatamente por isso... – Ele baixou a voz e
chegou mais perto da moça, colocando a mão no ombro dela. –Foi exatamente por isso
que o Conselho de Oblação foi criado. Aliás, como a nossa boa anfitriã poderia lhe
contar.
– É mesmo? Ela está envolvida com o Conselho de Oblação?
– Minha cara, ela é o próprio Conselho de Oblação. O projeto é inteiramente
dela... O homem ia contar mais alguma coisa quando reparou em Lyra. Ela o encarou
sem pestanejar, e talvez ele tenha bebido um pouco demais, ou talvez estivesse
ansioso para impressionar a moça, pois disse:
– Esta senhorita sabe tudo sobre isso, aposto. Você está a salvo do Conselho de
Oblação, não está, minha cara?
– Ah, sim – disse Lyra. – Aqui estou a salvo de todo mundo. Onde eu morava, em
Oxford, havia todo tipo de coisas perigosas. Havia os gípcios, eles roubam crianças e
vendem como escravos para os turcos. E em Port Meadow na lua cheia há um
lobisomem que saido velho convento em Gostow. Uma vez eu escutei o uivo dele. E
também os Papões...
– É disso que estou falando – interrompeu o homem. - É assim que chamam o
Conselho de Oblação, não é?
Lyra sentiu Pantalaimon estremecer de repente, mas ele estava muito bem
comportado. Os daemons dos dois adultos, uma gata e uma borboleta, pareciam não
ter percebido.
– Papões? – repetiu a moça. – Que nome estranho! Por que chamam de Papões?
Lyra estava prestes a contar a ela uma das histórias de arrepiar os cabelos que
ela havia inventado para assustar os garotos de Oxford, mas o homem já estava
falando.
– Deve ter sido por causa da lenda de um bicho devorador que come crianças.
Ninguém sabe direito, nem o próprio Conselho de Oblação, mas eles acharam muito
bom incentivar essa teoria do bicho-papão. Conselho Geral de Oblação... Uma idéia
bem antiga, aliás. Na Idade Média, os pais davam os filhos para a Igreja, para serem
monges ou freiras. E as coitadas das crianças eram conhecidas como oblatos. Significa
um sacrifício, uma oferta, algo assim. De modo que essa idéia foi aproveitada quando
estavam pesquisando esse negócio do Pó... como nossa amiguinha provavelmente
sabe. Por que não vai conversar com Lorde Boreal? – acrescentou, dirigindo-se
diretamente a Lyra. – Tenho certeza de que ele gostaria de conhecer a protegida da
Sra. Coulter... É aquele, ali, o homem de cabelos grisalhos e um daemon-serpente.
Lyra sabia que ele queria livrar-se dela para conversar mais tranqüilamente com a
jovem. Mas a jovem, ao que parecia, ainda estava interessada em Lyra e afastou-se do
homem para conversar com ela.
– Espere um instante... qual é o seu nome?
– Lyra.
– Eu sou Adele Starminster. Sou jornalista. Podemos conversar um pouco?
Achando muito natural que as pessoas quisessem conversar com ela, Lyra disse
simplesmente:
– Sim.
O daemon-borboleta ergueu-se no ar, voejando para a esquerda e a direita, e
baixou um pouco para cochichar alguma coisa, e Adele Starminster disse:
– Vamos até o banco da janela.
Era o lugar favorito de Lyra; dali contemplava-se o rio, e àquela hora da noite as
luzes da margem oposta brilhavam acima de seus reflexos na água escura da maré
alta. Uma fila de balsas subia o rio, puxada por um rebocador. Adele Starminster
sentou-se e deslizou pela almofada para deixar lugar para Lyra.
– O Professor Docker disse que você tem uma certa ligação com a Sra. Coulter.
– É verdade.
– Que ligação é? Você não é filha dela, ou algo assim? Acho que eu deveria
conhecer...
– Não! Claro que não. Sou a secretária dela –Lyra esclareceu.
– Secretária dela? Você é um pouco novinha para isso, não é? Pensei que fosse
uma parenta, ou coisa assim. Como é ela?
– É muito inteligente – disse Lyra. Antes dessa noite, ela teria dito muito mais,
porém as coisas estavam mudando.
– Sim, mas pessoalmente – insistiu Adele Starminster. – Quero dizer, ela é
amigável, ou impaciente, ou o quê? Você mora aqui com ela? Como ela é na vida
particular?
– É muito boazinha – disse Lyra, inabalável.
– Que tipo de coisas você faz? Como é o seu trabalho?
– Faço cálculos, coisas assim. Para navegação, por exemplo.
– Ah, entendo... E de onde você vem? Como é mesmo o seu nome?
– Lyra. Venho de Oxford.
– Por que a Sra. Coulter escolheu você para...
De repente ela emudeceu, porque a Sra. Coulter em pessoa tinha aparecido ao
lado dela. Pelo modo como Adele Starminster olhou para ela, e pela agitação da
borboleta esvoaçando em volta da cabeça da jornalista, Lyra percebia que a jovem não
fora convidada para a festa.
– Não sei o seu nome, mas vou descobrir dentro de cinco minutos, e então você
nunca mais vai trabalhar como jornalista – disse a Sra. Coulter em voz baixa. – Agora
levante-se com muita calma, sem fazer cena, e vá embora. Devo acrescentar que quem
quer que tenha trazido você aqui vai sofrer também.
A Sra. Coulter parecia estar carregada de alguma espécie de força anbárica.
Chegava a ter um cheiro diferente: um cheiro quente, como metal aquecido, saía de
seu corpo. Lyra sentira um pouco dele mais cedo, mas agora ela o via dirigido a outra
pessoa, e a pobre Adele Starminster não teve forças para resistir. Seu daemon caiu
em seu ombro e bateu duas vezes as lindas asas antes de desmaiar, e a própria
mulher parecia incapaz de ficar em pé ereta. Com passos tortos e costas ligeiramente
curvadas, ela atravessou a multidão que conversava ruidosamente e saiu pela porta da
sala. Com uma das mãos agarrada ao ombro, ela amparava o daemon desfalecido.
– Bem? – a Sra. Coulter disse para Lyra.
– Não contei nada de importante – Lyra falou.
– Que foi que ela estava perguntando?
– Só o que eu faço e quem eu sou, coisas assim.
Enquanto falava, Lyra percebeu que a Sra. Coulter estava sozinha, sem seu
daemon. Como podia ser isso? Mas, no momento seguinte, o macaco dourado
apareceu ao lado dela e, inclinando-se, ela pegou a mão dele e num gesto gracioso
puxou-o para seu ombro. No mesmo instante, ela pareceu tranqüila novamente.
– Se encontrar qualquer pessoa que flagrantemente não foi convidada, minha
cara, por favor me procure e me avise, está bem?
O cheiro quente de metal estava desaparecendo. Talvez Lyra tivesse apenas
imaginado aquilo. Ela sentia novamente o perfume da Sra. Coulter, e das rosas, e da
fumaça da cigarrilha, e o perfume das outras mulheres. A Sra. Coulter deu a Lyra um
sorriso que parecia dizer "Você e eu compreendemos essas coisas, não é?", e afastouse
para conversar com os convidados.
Pantalaimon cochichou ao ouvido de Lyra:
– Enquanto ela estava aqui, o daemon dela estava saindo do nosso quarto. Andou
espionando por lá. Ele sabe do aletômetro! Lyra sentiu que isso provavelmente era
verdade, mas nada podia fazer a respeito. O que aquele Catedrático estava dizendo
sobre os Papões? Olhou em volta à procura dele, mas, no mesmo instante em que o
avistou, o mensageiro (usando nessa noite um traje de criado) e outro homem tocaram
no ombro do Professor e falaram com ele em voz baixa; ele empalideceu e seguiu-os
para fora da sala. Aquilo não levou mais que dois segundos, e foi feito com tanta
discrição que quase ninguém percebeu. Mas deixou Lyra aflita e se sentindo exposta.
Ela vagou pelas duas amplas salas onde a festa estava acontecendo, mal ouvindo
as conversas à sua volta, meio interessada no sabor dos coquetéis que não tinha
permissão de experimentar, e cada vez mais irritada. Não havia percebido que alguém
a observava até que o mensageiro surgiu ao seu lado e inclinou-se para dizer:
– Srta. Lyra, o cavalheiro perto da lareira gostaria de conversar com você. Se
você não sabe, ele é o Lorde Boreal.
Lyra olhou para o outro lado da sala. O homem grisalho aparentando poder
olhava diretamente para ela; quando os olhares se encontraram, ele assentiu e
chamou-a com um gesto.
De má vontade, porém agora mais interessada, ela atravessou a sala.
– Boa noite, filha – disse ele. Sua voz era suave e cheia de autoridade. A cabeça
escamosa e os olhos cor de esmeralda do seu daemon serpente cintilavam à luz da
luminária de cristal na parede vizinha.
– Boa noite – respondeu Lyra.
– Como vai meu velho amigo, o Reitor da Jordan?
– Muito bem, obrigada.
– Imagino que todos ficaram tristes quando você partiu.
– Ficaram, sim.
– E a Sra. Coulter está mantendo você ocupada? Que é que ela está lhe
ensinando?
Por estar se sentindo revoltada e inquieta, Lyra não respondeu a esta pergunta
paternalista com a verdade, ou com um dos costumeiros produtos da sua imaginação,
mas disse:
– Estou aprendendo tudo sobre as partículas de Rusakov e o Conselho de
Oblação.
Ele imediatamente pareceu se concentrar, como se pode concentrar o facho de
uma lanterna anbárica. Toda a atenção dele jorrava sobre ela com força.
– E se você me contar o que sabe? – disse ele.
– Estão fazendo experiências no Norte – Lyra contou. Agora estava se sentindo
arrojada. – Como o Dr. Grumman.
– Continue.
– Eles têm uma espécie de fotograma especial onde se pode ver o Pó, e quando
agente vê um homem, parece que a luz toda está indo para ele, e nenhuma para uma
criança. Pelo menos não muita.
– A Sra. Coulter lhe mostrou um fotograma assim?
Lyra hesitou, pois isso não era mentir e sim outra coisa, em que ela não tinha
prática.
– Não – respondeu depois de um instante. – Eu vi na Faculdade Jordan.
– Quem foi que lhe mostrou?
– Ele não estava mostrando para mim – Lyra admitiu.
– Eu estava passando e vi. E então meu amigo Roger foi levado pelo Conselho de
Oblação. Mas...
– Quem lhe mostrou o fotograma?
– O meu tio Asriel.
– Quando?
– Na última vez em que ele esteve na Faculdade Jordan.
– Entendo. E que mais você andou aprendendo? Será que ouvi você mencionar o
Conselho de Oblação?
– Foi, sim. Mas não ouvi isso dele, ouvi aqui.
O que era a pura verdade, ela pensou.
Ele a estudava com os olhos apertados. Ela devolveu o olhar com toda a
inocência que possuía. Finalmente ele assentiu.
– Então a Sra. Coulter deve ter resolvido que você está pronta para ajudá-la
nesse trabalho. Interessante. Você já tomou parte?
– Não – disse Lyra.
Ela pensava: de que ele está falando? Pantalaimon, com esperteza, tinha a sua
forma mais inexpressiva, uma mariposa, e não poderia delatar os sentimentos dela; e
ela pensara que conseguiria manter a expressão inocente.
– E ela lhe contou o que acontece com as crianças?
– Não, isso ela não me contou. Eu só sei que tem a ver com o Pó, e elas são uma
espécie de sacrifício.
Também isso não era exatamente uma mentira, ela pensou; afinal, não tinha dito
que a Sra. Coulter lhe contara isso.
– "Sacrifício" é uma palavra meio forte. O que é feito é para o bem delas, assim
como o nosso. E é claro que todas acompanham a Sra. Coulter por vontade própria. É
por isso que ela é tão preciosa. Elas têm que querer fazer parte, e qual a criança que
poderia resistir a ela? E se ela vai usar você também para trazê-las, melhor ainda.
Estou muito contente.
Ele deu um sorriso como o da Sra. Coulter: como se ambos compartilhassem um
segredo. Ela sorriu de volta educadamente, e ele virou-se para conversar com outra
pessoa.
Ela e Pantalaimon sentiam o horror um do outro. Ela queria ficar sozinha e
conversar com ele; tinha vontade de deixar o apartamento; queria voltar para a
Faculdade Jordan e para seu quartinho humilde na Escadaria Doze; queria encontrar
Lorde Asriel...
E como em resposta a esse desejo, ela ouviu o nome dele ser mencionado, e
com o pretexto de se servir de um canapé numa bandeja sobre a mesa, aproximou-se
do grupo que conversava ali perto. Um homem com a púrpura de bispo estava dizendo:
– Não, eu não acho que Lorde Asriel vai nos incomodar por bastante tempo.
– E onde mesmo ele está preso?
– Na fortaleza de Svalbard, me disseram. Vigiado pelos panserbjornes, sabem, os
ursos de armadura. Criaturas tremendas! Ele não vai conseguir escapar nem em mil
anos. O fato é que eu realmente acho que o caminho está bem claro...
– As últimas experiências confirmaram o que eu sempre acreditei: que o Pó é uma
emanação do próprio princípio das trevas e...
– Será que estou detectando a heresia zoroastriana?
– O que costumava ser uma heresia...
– E se pudéssemos isolar o princípio das trevas...
– Você disse Svalbard?
– Ursos de armadura...
– O Conselho de Oblação...
– As crianças não sofrem, tenho certeza disso...
– Lorde Asriel prisioneiro...
Lyra tinha ouvido o suficiente. Ela virou-se, e movendo-se sem ruído, foi para o
seu quarto e fechou a porta, abafando o barulho da festa.
– E então? – cochichou, e Pantalaimon se tornou um pintassilgo no ombro dela.
– Vamos fugir? – ele cochichou em resposta.
– Claro. Se formos agora, com toda essa gente, ela pode não perceber por
algum tempo.
– Mas ele percebe.
Pantalaimon estava falando do daemon da Sra. Coulter.
Quando Lyra pensava naquela figura dourada e esguia, ela sentia náuseas de
medo.–
Desta vez vou lutar com ele – afirmou Pantalaimon corajosamente. – Eu posso
mudar, e ele não pode; vou mudar tão depressa que ele não vai conseguir me segurar.
Desta vez eu vou vencer, você vai ver.
Lyra assentiu distraidamente. Que roupa deveria vestir? Como poderia sair sem
ser vista?
– Você vai ter que ir vigiar – cochichou. – Assim que o caminho estiver livre nós
teremos que correr. Seja mariposa – acrescentou. – Lembre-se, no instante em que
ninguém estiver olhando...
Ela abriu uma fresta da porta, e ele saiu, um pontinho escuro contra a luz quente e
rósea do corredor.
     Enquanto isso, ela vestia as roupas mais quentes que possuía e enfiava mais
algumas numa das bolsas de seda carbonífera comprada na loja elegante que elas
haviam visitado naquela mesma tarde. A Sra. Coulter tinha lhe dado dinheiro como se,
em vez de moedas, fossem biscoitos, e embora Lyra tivesse gastado prodigamente,
ainda sobraram vários soberanos, que ela colocou no bolso do seu casaco de pele de
lobo.
    Finalmente ela guardou o aletômetro dentro do pedaço de veludo preto. Teria
aquele macaco abominável encontrado o aparelho? Certamente que sim; com certeza
tinha contado à Sra. Coulter; ah, se o tivesse escondido melhor...
    Foi pé ante pé até a porta. Por sorte seu quarto dava para o final do corredor
mais perto do saguão, e a maioria dos convidados estava nas duas salas mais
distantes. Havia o som de vozes conversando em voz bem alta, risos, o ruído abafado
de uma descarga sanitária, o tilintar de copos; e então uma vozinha de mariposa disse
em seu ouvido:
– Agora! Depressa!
    Ela esgueirou-se pela porta e saiu para o corredor, e em menos de três segundos
estava abrindo a porta da frente do apartamento. Um instante depois já passara por
ela, fechando-a atrás de si, e com Pantalaimon novamente como pintassilgo, ela correu
para as escadas e fugiu dali.

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