sábado, 18 de outubro de 2014

9- Os Espiões

     Durante os dias seguintes, Lyra inventou uma dúzia de planos e descartou
todos eles com impaciência, pois no fundo todos consistiam em ir como
clandestina, e como alguém poderia esconder-se num barco pequeno?
    Naturalmente a viagem em si seria feita num navio de verdade, e ela conhecia
histórias suficientes para imaginar que num navio havia muitos esconderijos: nos
porões, ou até nos escaleres, fosse lá o que fosse isso; mas primeiro ela teria que
chegar até o navio, e o percurso dos Pântanos até o navio seria feito à moda
gípcia.E mesmo se ela conseguisse chegar sozinha à costa, podia acabar
escondida no navio errado. E seria mesmo uma gracinha esconder-se num navio e
acordar a caminho do Alto Brasil...
     Enquanto isso, à volta dela o trabalho hercúleo de preparar a expedição
continuava noite e dia. Ela ficou por perto de Adam Stefanski, observando enquanto ele
escolhia os voluntários para a força de guerra. Encheu Roger van Poppel de sugestões
sobre os suprimentos que seriam necessários: ele tinha se lembrado dos óculos de
neve? E por acaso conhecia o melhor lugar para encontrar mapas da Região Ártica? O
homem que ela mais queria ajudar era Benjamin de Ruyter, o espião. Mas ele tinha
partido na madrugada seguinte ao segundo Encontro, e naturalmente ninguém sabia
informar para onde ele tinha ido ou quando voltaria. Assim, Lyra grudou-se a Farder
Coram.
– Acho que seria melhor aceitar minha ajuda, Farder Coram, porque eu
provavelmente sei mais coisas sobre os Papões do que qualquer outra pessoa, pois eu
quase fui um deles.
Provavelmente o senhor vai precisar de mim para ajudar a decifrar as mensagens
do Sr. de Ruyter.
Ele ficava com pena da menina corajosa e desesperada e não a mandava
embora; em vez disso conversava com ela e escutava as lembranças dela de Oxford e
da Sra. Coulter, e ficava observando enquanto ela lia o aletômetro.
– Onde está o tal livro que tem todos os símbolos? –ela lhe perguntou um dia.
– Em Heidelberg – ele informou.
– E só existe esse?
– Pode haver outros, mas esse é o único que eu já vi.
– Aposto que tem um na Biblioteca Bodley's em Oxford.
Ela mal conseguia tirar os olhos do daemon de Farder Coram, que era o mais
bonito que ela já vira. Quando Pantalaimon era gato, ele era magro, maltratado e
bravo, mas Sophonax, que era o nome dele, tinha olhos dourados e era
indescritivelmente elegante, duas vezes maior do que um gato de verdade e com uma
pelagem maravilhosa. Quando a luz do sol o tocava, iluminava mais tons de castanhomarrom-
bege-areia-dourado do que Lyra conseguiria distinguir. Sua vontade de tocar
naquela pele, esfregar o rosto nela, era enorme, mas naturalmente nunca fez isso, pois
a maior grosseria imaginável era tocar no daemon de outra pessoa. Os daemons
podiam tocar-se uns aos outros, naturalmente, ou brigar; mas a proibição contra o
contato gente daemon era tão séria que nem mesmo na batalha um guerreiro tocava no
daemon do inimigo. Era proibido. Lyra não se lembrava de ter ouvido isso de alguém,
mas sabia instintivamente, como sabia que vomitar era ruim, e o conforto era bom.
Assim, embora admirasse a pelagem de Sophonax e até mesmo especulasse como ele
seria, nunca fez a menor menção de tocá-lo, e nunca faria.
Sophonax era tão esguio e cheio de saúde quanto Farder Coram era velho e
fraco. Talvez por doença, ou por ter sofrido um grande golpe, o fato era que ele não
conseguia caminhar sem se apoiar em duas bengalas, e tremia constantemente, como
uma folha ao vento. Porém tinha a mente clara, aguçada e poderosa, e depressa
conquistou Lyra com seu conhecimento das coisas e a firmeza com que a instruía.
– O que significa esta ampulheta, Farder Coram? –ela perguntou, debruçada
sobre o aletômetro, numa manhã ensolarada no barco dele. – Ela está sempre voltando
para lá.
– Costuma haver uma pista, se você olhar com atenção. Que é essa coisinha em
cima dela?
Ela franziu os olhos para olhar.
– É uma caveira!
– Então que é que você acha que isso significa?
– A morte... Isso é a morte?
– Isso mesmo. De modo que nos significados da ampulheta está a morte. Aliás,
depois da passagem do tempo, que é o primeiro, vem a morte em segundo lugar.
– Sabe uma coisa que eu percebi, Farder Coram? O ponteiro pára em cima dela
na segunda volta! Na primeira volta, ele só estremece, e na segunda ele pára. Isso
quer dizer que é o segundo significado?
– Provavelmente. Que é que você está perguntando, Lyra?
– Eu estou pensando... – Ela se interrompeu, surpresa ao descobrir que estava
mesmo fazendo uma pergunta sem perceber.
– Eu só juntei três figuras porque... Eu estava pensando no Sr.de Ruyter,
entende... e juntei a serpente, o cadinho e a colmeia, para perguntar como ele está
indo com a sua espionagem, e...
– Por que escolheu esses três símbolos?
– Porque eu achei que a serpente era esperta, como um espião tem que ser, e o
cadinho podia significar conhecimento, uma coisa que é destilada, e a colmeia era o
trabalho, porque as abelhas estão sempre trabalhando; então, do trabalho e da
esperteza vem o conhecimento, entende, que é a missão do espião; apontei para os
três e pensei na pergunta, e o ponteiro parou na morte... Acha que isto está mesmo
funcionando, Farder Coram?
– Está funcionando, sim, Lyra. O que não sabemos é se estamos lendo direito.
Isto é uma arte muito sutil. Será que...
Antes que ele pudesse terminar a frase, bateram na porta, e um jovem gípcio
entrou.
– Com licença, Farder Coram, Jacob Huismans acabou de voltar, e ele está muito
ferido.–
Ele estava com Benjamin de Ruyter – disse Farder Coram. – Que foi que
aconteceu?
– Ele não quer falar – disse o rapaz. – É melhor vir logo, Farder Coram, porque
ele não vai durar muito, está sangrando por dentro.
Farder Coram e Lyra trocaram um olhar assustado e perplexo, mas só por um
segundo; Farder Coram saiu caminhando, apoiado em suas bengalas, com a maior
velocidade possível, seu daemon andando na frente. Lyra foi também, saltando de
impaciência.
O rapaz levou-os até um barco atracado, onde uma mulher com um avental de
flanela vermelha abriu a porta para eles. Vendo o olhar de suspeita que ela lançou a
Lyra, Farder Coram disse:
– É importante que a menina escute o que Jacob tem a dizer, senhora.
Então a mulher deixou-os entrar e ficou para trás, com seu daemon-esquilo
empoleirado no relógio de madeira. Numa cama, sob uma colcha de retalhos, estava
deitado um homem com o rosto branco coberto de suor e os olhos embaçados.
– Já mandei vir o médico, Farder Coram – disse a mulher com voz trêmula. – Por
favor não deixe ele ficar agitado. Está sofrendo muito de dor. Ele chegou no barco de
Peter Hawker há poucos minutos.
– Onde está Peter?
– Está atracando. Foi ele que disse que eu tinha que chamar o senhor .
– Está certo. Agora, Jacob, está me ouvindo?
Jacob girou os olhos para olhar para Farder Coram sentado na cama oposta, a
meio metro dele.
– Olá, Farder Coram – murmurou.
Lyra olhou para o daemon dele. Era uma fuinha, deitada imóvel junto à cabeça
dele, enrodilhada mas não adormecida, pois tinha os olhos abertos e embaçados como
os dele.
– Que foi que aconteceu? – Farder Coram perguntou.
– Benjamin está morto – foi a resposta. – Está morto, e Gerard foi preso.
Tinha a voz rouca e a respiração difícil. Quando parou de falar, seu daemon
desenrodilhou-se dolorosamente e lambeu a face dele; retirando forças desse gesto,
ele continuou:
– Estávamos entrando no Ministério da Teologia, porque Benjamin tinha ouvido, de
um dos Papões que aprisionamos, que o quartel-general era lá e que era de lá que
saíam todas as ordens...
Ele tornou a silenciar .
– Vocês capturaram Papões? – perguntou Farder Coram.
Jacob assentiu e olhou para seu daemon. Era incomum os daemons falarem com
outros humanos além dos seus, mas às vezes acontecia, e nessa ocasião ele falou:
– Pegamos três Papões em Clerkenwell e os obrigamos a nos contarem para
quem estavam trabalhando e de onde vinham as ordens, coisas assim. Eles não sabiam
para onde estavam levando as crianças, a não ser que era para o Norte, para a
Lapônia...
Ela teve que parar, ofegante, o pequeno peito arfando, e descansar um pouco,
antes de conseguir continuar.
– E então os Papões nos falaram do Ministério da Teologia e de Lorde Boreal.
Benjamin disse que ele e Gerard Hook deviam entrar no Ministério, e Frans Broekman e
Tom Mendham deviam ir descobrir mais sobre Lorde Boreal.
– Eles conseguiram?
– Não sabemos. Eles não voltaram. Farder Coram, parecia que tudo que
fazíamos eles ficavam sabendo antes, e pelo que sabemos, Frans e Tom foram
engolidos vivos assim que chegaram perto de Lorde Boreal.
– Vamos voltar a Benjamin – disse Farder Coram, percebendo a respiração de
Jacob se tornar cada vez mais ofegante e vendo seus olhos fecharem-se de dor.
O daemon de Jacob soltou um pequeno miado de preocupação e amor, e a
mulher aproximou-se alguns passos, com as mãos junto à boca; mas não falou, e o
daemon continuou em voz fraca:
– Benjamin, Gerard e nós fomos para o Ministério em White Hall e descobrimos
úma portinha lateral que não estava muito vigiada. Ficamos de vigia do lado de fora
enquanto eles abriam a fechadura e entravam. Não havia se passado um minuto
quando ouvimos um grito de medo e o daemon de Benjamin veio voando, fez um gesto
nos chamando e tornou a entrar, e nós pegamos nossa faca e corremos atrás dele; só
que o lugar estava escuro, cheio de formas e sons que nos confundiam com seus
movimentos horríveis; tentamos lutar, mas houve uma confusão mais em cima, e um
grIto, e Benjamin com seu daemon caíram de uma escadaria alta, o daemon tentando
segurá-lo em vão, pois eles se esborracharam no chão de pedra e morreram. Não
conseguíamos saber de Gerard, mas ouvimos a voz dele soltando um urro lá em cima,
e ficamos aterrorizados e confusos demais para fazer alguma coisa, e então uma
flecha nos atingiu no ombro e penetrou profundamente...
A voz do daemon estava mais débil, e do homem ferido veio o som de um gemido.
Farder Coram inclinou-se e com delicadeza puxou a colcha, e ali, saindo do ombro do
ferido, havia a ponta cheia de plumas de uma flecha, numa massa de sangue
coagulado.
O resto da flecha estava tão enterrado no peito do pobre homem que só aqueles
dez centímetros ficavam fora da pele. Lyra sentiu uma vertigem.
Houve um ruído de passos e vozes lá fora, no ancoradouro.
Farder Coram endireitou-se.
– Chegou o médico, Jacob. Vamos sair agora. Quando você estiver se sentindo
melhor, conversaremos com mais calma.
A caminho da porta, ele colocou a mão sobre o ombro da mulher. No
ancoradouro, Lyra ficou perto dele, porque já havia um ajuntamento de pessoas
cochichando e apontando. Farder Coram deu ordem a Peter Hawker para ir
imediatamente chamar John Faa, depois disse:
– Lyra, assim que soubermos se Jacob vai viver ou morrer precisamos ter outra
conversa sobre aquele aletômetro. Vá se ocupar em outro lugar, minha filha; nós
mandaremos chamá-la.
Lyra afastou-se sozinha e foi sentar-se na margem cheia de vegetação, pondo-se
a jogar lama dentro da água. Sabia de uma coisa: não estava feliz ou orgulhosa por
conseguir ler o aletômetro – estava com medo. Fosse qual fosse o poder que fazia
aquele ponteiro andar e parar, ele sabia coisas, como um ser inteligente.
– Acho que é um espírito – disse ela, e por um instante ficou tentada a jogar o
pequeno instrumento no meio do pântano.
– Eu veria o espírito, se houvesse um aí dentro –disse Pantalaimon. – Como o
fantasma velho em Godstow. Eu vi, e você não.
– Existe mais de um tipo de espírito – disse Lyra em tom de reprovação. – Você
não consegue ver todos. De qualquer maneira, e aqueles Catedráticos mortos sem
cabeça? Eu vi, lembra-se?
– Aquilo foi só um pesadelo.
– Não foi, não. Eram espíritos, mesmo, e você sabe disso. Mas seja qual for o
espírito que está movendo esse maldito ponteiro, não é daquele tipo de espírito.
– Pode não ser um espírito – teimou Pantalaimon.
– Que mais poderia ser?
– Poderia ser... Poderiam ser partículas elementares.
Ela soltou uma risadinha de desprezo.
– Poderiam, sim – ele insistiu. – Lembra-se daquela ventoinha movida a luz que
eles têm na Gabriel? Então?
Na Faculdade Gabriel, havia um objeto muito sagrado que ficava guardado no
altar principal do Oratório, coberto (agora Lyra pensava nisso) com um pano de veludo
preto, como o que embrulhava o aletômetro. Ela o tinha visto quando acompanhou o
Bibliotecário da Jordan num culto religioso. No auge da cerimônia, o Intercessor
levantou o pano e revelou na penumbra um domo de vidro; dentro dele havia alguma
coisa distante demais para ser vista, até que ele puxou um cordão preso a uma
persiana lá em cima, deixando um raio de sol cair exatamente sobre o domo. Então
ficou claro o que era: uma coisinha como uma ventoinha, com quatro pás pretas de um
lado e brancas do outro, que começaram a girar quando a luz bateu nela. O Intercessor
disse então que aquilo ilustrava uma lição moral, pois o negror da ignorância fugia da
luz, ao passo que a alvura da sabedoria era atraída por ela. Lyra acreditou naquilo; de
qualquer maneira, fosse qual fosse o significado, as pequenas pás giratórias eram
lindas; o movimento era impulsionado pela força dos fótons, disse o Bibliotecário
enquanto voltavam para a Jordan.
Então talvez Pantalaimon tivesse razão. Se as partículas elementares conseguiam
fazer girar uma ventoinha, sem dúvida podiam mover um ponteiro com muito mais
facilidade; mas isso ainda a preocupava.
– Lyra! Lyra!
Era Tony Costa, acenando para ela do ancoradouro.
– Venha até aqui – ele chamou. – Você tem que ir falar com John Faa no Zaal.
Depressa, garota, é urgente!
Ela encontrou John Faa com Farder Coram e os outros chefes, parecendo
preocupados. John Faa falou:
– Lyra, minha filha, Farder Coram me contou sobre a sua leitura daquele
instrumento. E lamento dizer que o coitado do Jacob acaba de morrer. Acho que vamos
ter que levar você conosco afinal, contra a minha vontade. Estou muito preocupado com
isso, mas parece que não temos alternativa. Assim que Jacob for enterrado, segundo a
tradição, nós vamos partir. Você compreende, Lyra: vai também, mas não é uma
ocasião de alegria. Há problemas e perigos esperando por todos nós. Vou colocá-la
sob os cuidados de Farder Coram. Não lhe cause problemas ou riscos, senão vai sentir
a força da minha cólera. Agora vá explicar para Mãe Costa e fique preparada para
partir.
As duas semanas seguintes foram as mais atarefadas da vida de Lyra.
Atarefadas, mas não rápidas, pois havia tediosos períodos de espera, de esconder-se
em armários apertados e úmidos, de contemplar a paisagem triste e chuvosa de outono
passando pela janela, de esconder-se outra vez, de dormir perto do escapamento do
motor e acordar com uma terrível dor de cabeça e – pior de tudo – nem uma vez ter
permissão para sair para o ar fresco, correr pela margem, subir ao convés, agarrar
uma corda jogada da margem.
Mas naturalmente ela devia ficar escondida. Tony Costa contou-lhe o boato nas
tavernas da costa: que, por todo o reino, caçava-se uma menininha loura, com uma
grande recompensa pela sua descoberta e severos castigos para quem a escondesse.
Havia também uns boatos estranhos: as pessoas diziam que ela era a única
criança que conseguira escapar dos Papões e que possuía segredos terríveis. Outro
boato dizia que ela não era uma criança humana, mas sim um par de espíritos em
forma de criança e daemon, enviados a este mundo pelos poderes infernais para
causar grande mal; no entanto, outro boato dizia que não se tratava de uma criança
mas de um humano adulto, encolhida por magia e trabalhando para os tártaros, para vir
espionar o bom povo inglês e preparar o caminho para uma invasão tártara.
Lyra escutava estas histórias a princípio achando graça, mais tarde com
desânimo. Todas aquelas pessoas com medo e raiva dela! E ansiava por sair daquela
cabine estreita e apertada. Ansiava por já estar no Norte, na neve sob a cintilante
Aurora Boreal. E às vezes ansiava por estar de volta à Faculdade Jordan, pulando
pelos telhados com Roger e o sino do Administrador batendo a meia-hora para o jantar,
e os ruídos de louça, de fritura e de gritos na Cozinha... Então desejava
apaixonadamente que nada tivesse mudado, que nada jamais mudasse, que ela
pudesse ser para sempre a Lyra da Faculdade Jordan.
A única coisa que lhe tirava o tédio e a irritação era o aletômetro. Ela o lia todos
os dias, às vezes com Farder Coram e às vezes sozinha, e descobriu que era cada vez
mais fácil entrar no estado de calma em que os significados dos símbolos se
esclareciam, e aquelas altas montanhas tocadas pelo sol emergiam em sua visão.
Ela esforçou-se para explicar como era, a Farder Coram.
– É quase como conversar com alguém, só que a gente não consegue ouvir as
outras pessoas e fica se sentindo meio burra porque as outras são mais inteligentes
que a gente, só que elas nunca ficam zangadas nem nada... E elas sabem tanta coisa,
Farder Coram! Quase como se soubessem tudo! A Sra. Coulter era inteligente, sabia
muita coisa, mas isto aqui é um tipo de conhecimento diferente... É como compreender,
eu acho...
Ele fazia perguntas específicas, e ela procurava as respostas.
– Que é que a Sra. Coulter está fazendo agora? –ele perguntava; as mãos dela
moviam- se no mesmo instante, e ele pedia: – Diga-me o que está fazendo.
– Bem, a Madona é a Sra. Coulter, e penso "mamãe" quando coloco o ponteiro
ali; e a formiga é atarefada – essa é fácil, é o primeiro significado; e a ampulheta tem
"passagem do tempo" entre seus significados, e no meio da lista está "agora", e eu fixo
o pensamento nisso.
– E como sabe o que são esses significados?
– É como se eu visse. Ou melhor, sentisse, como descer uma escada à noite, a
gente baixa o pé e acha outro degrau. Bom, eu baixo o pensamento e acho outro
significado, e eu sinto qual é. Então junto tudo. Existe um truque, como desfocar os
olhos.
– Faça isso então, e veja o que ele diz.
Lyra obedeceu. O ponteiro grande começou a girar no mesmo instante, parou,
continuou, tornou a parar, numa série precisa de movimentos e pausas. Era uma
sensação de tamanha graciosidade e tamanho poder que Lyra, compartilhando dele,
sentiu-se como um filhote de passarinho aprendendo a voar. Farder Coram,
observando do outro lado da mesa, anotou os lugares onde o ponteiro parava e
observava a menininha segurando os cabelos longe do rosto e mordiscando de leve o
lábio inferior, os olhos a princípio seguindo o ponteiro, mas depois, quando este
regularizava seu movimento, olhando para outras partes do mostrador.
Mas não ao acaso. Farder Coram era jogador de xadrez, e sabia como os
jogadores ficavam durante uma partida. Um bom jogador parecia ver linhas de força e
influência sobre o tabuleiro, seguia as linhas importantes e ignorava as fracas; e os
olhos de Lyra moviam-se do mesmo modo, segundo algum campo magnético
semelhante que ela conseguia enxergar e ele, não.
O ponteiro parou no raio, no menino, na serpente, no elefante e numa criatura cujo
nome Lyra não sabia: uma espécie de lagarto de olhos grandes e um rabo enrolado em
volta do galho onde ele estava empoleirado. Enquanto Lyra observava, o ponteiro
repetiu várias vezes esta seqüência.
– Qual é o significado deste lagarto? – perguntou Farder Coram, interrompendo a
concentração dela.
– Não entendo... Vejo o que ele está dizendo, mas acho que estou lendo errado.
O raio eu acho que é raiva, e a criança...acho que sou eu... Eu estava conseguindo um
significado para o lagarto, Farder Coram, mas o senhor falou comigo e ele sumiu. Está
vendo, ele está indo para qualquer lugar.
– É, estou vendo. Sinto muito, Lyra. Está cansada? Quer parar?
– Não quero, não.
Mas seu rosto estava vermelho e os olhos brilhantes. Tinha todos os sinais de
uma superexcitação, intensificada pelo longo confinamento naquela cabine abafada.
Ele olhou pela janela. Estava quase escuro, e eles viajavam ao longo do último
trecho de rio antes de chegar à costa. Sob um céu encoberto estendia-se a amplidão
marrom de um estuário até um grupo distante de tanques de álcool de carvão,
enferrujados e trespassados por canos, junto a uma refinaria onde uma mancha
espessa de fumaça subia com relutância para juntar-se às nuvens.
– Onde é que nós estamos? – Lyra perguntou. –Posso ir lá fora só um pouquinho,
FarderCoram?
– Aqui é a água do Colby – ele disse. – O estuário do rio Cole. Quando
chegarmos à cidade, vamos atracar junto ao Mercado de Defumados e vamos a pé até
o porto. Estaremos lá dentro de uma ou duas horas...
Mas estava ficando escuro, e na desolação do rio nada se movia além do barco
deles e uma distante balsa de carvão indo para a refinaria; e Lyra estava tão vermelha
e cansada, e tinha ficado tanto tempo fechada, que Farder Coram continuou:
– Bem, acho que não tem importância alguns minutinhos ao ar livre. Não posso
chamar de ar fresco, pois ele só é fresco quando sopra do mar; mas você pode se
sentar lá em cima e apreciar a paisagem até chegarmos mais perto.
Lyra deu um salto, e Pantalaimon no mesmo instante transformou-se numa
gaivota, ansioso por estender as asas a céu aberto. Mas estava frio lá fora e, embora
estivesse bem agasalhada, logo Lyra estava tremendo. Pantalaimon, por outro lado,
girava no ar com pios de felicidade, dando rasantes em volta do barco.
Lyra adorou isso, sentindo-se como ele enquanto ele voava e insistindo
mentalmente para que ele fosse desafiar o daemon-biguá do velho piloto para uma
corrida. Mas o daemon ignorou Pantalaimon e acomodou-se sonolentamente na roda
do timão, perto do seu humano.
Naquela amplidão árida e marrom, não havia vida, e apenas o ruído constante do
motor e o som abafado da água no casco rompiam o silêncio. Nuvens pesadas cobriam
o céu sem oferecer chuva; o ar estava cheio de fumaça. Só a elegância do vôo de
Pantalaimon possuía alguma vida e alegria.
Enquanto ele saía de um rasante com as asas brancas contra o cinzento, alguma
coisa o atingiu. Ele caiu de lado, cheio de choque e dor, e Lyra gritou, sentindo
também. Outra coisa escura juntou-se à primeira; não se moviam como pássaros, mas
como besouros voadores, pesados e diretos, com um zumbido forte. Enquanto
Pantalaimon caía, tentando virar-se para alcançar o barco e os braços desesperados
de Lyra, as coisas pretas não paravam de atacá-lo. Lyra estava quase louca com o
medo de Pantalaimon e o seu próprio, mas então alguma coisa passou por ela e se
elevou.
Era o daemon do piloto do barco; com toda a sua aparência desajeitada e
pesada, seu vôo era poderoso e rápido. Ela virava a cabeça para os lados – houve um
clarão de asas escuras, um estremecimento branco e uma coisinha preta caiu sobre o
teto da cabine enquanto Pantalaimon pousava na mão estendida dela.
Antes que ela pudesse acariciá-lo, ele mudou para sua forma de gato-do-mato e
saltou sobre a criatura, empurrando-a da borda do telhado para onde ela estava
tentando fugir. Pantalaimon segurou-a firmemente com as garras e ergueu os olhos
para o céu que escurecia, onde as asas escuras da biguá faziam círculos enquanto ela
procurava a outra criatura.
Então a biguá voltou voando e grasnou alguma coisa para o piloto, que disse:
– Fugiu. Não deixe essa outra escapar. Tome aqui. Ele derramou o resto do
líquido da caneca de lata e jogou-a para Lyra, que no mesmo instante prendeu o animal
que zumbia e roncava como uma máquina.
– Segure firme – pediu Farder Coram atrás dela, para em seguida ajoelhar-se e
enfiar um pedaço de papelão sob a caneca.
– Que é isso, Farder Coram? – ela perguntou, trêmula.
– Vamos lá para baixo dar uma olhada. Leve com cuidado, Lyra. Segure com
força. Ao passar, ela olhou para o daemon do piloto, pretendendo agradecer-lhe, mas
ela havia fechado os olhos. Então Lyra agradeceu ao piloto.
–Você devia ter ficado lá embaixo – foi tudo que ele disse.
Ela levou a caneca para a cabine, onde Farder Coram tinha encontrado um copo
de cerveja. Ele segurou a caneca de cabeça para baixo sobre o copo e então retirou o
cartão, de modo que a criatura caiu dentro do copo. Ele segurou o copo de modo que
ambos pudessem ver claramente a coisinha furiosa.
Tinha o tamanho do polegar de Lyra e era verde-escuro, não preta. As asas
estavam eretas, como uma joaninha prestes a voar, e batiam tão furiosamente que
eram apenas um borrão. As seis pernas tentavam segurar-se na superfície de vidro.
– Que é isso? – ela perguntou.
Pantalaimon, ainda um gato-do-mato, estava agachado sobre a mesa, os olhos
verdes seguindo os círculos da criatura dentro do copo.
– Se a gente abrir isso aí, não vai encontrar vida. Não é animal nem inseto. Já vi
uma dessas antes, e nunca pensei que fosse ver outra aqui tão ao norte. São
africanas. Têm um mecanismo dentro, e preso na mola um espírito mau com um feitiço
atravessando o coração.
– Mas quem foi que mandou isso?
– Você não precisa ler os símbolos, Lyra; pode adivinhar tão bem quanto eu.
– A Sra. Coulter?
– Claro. Ela não explorou só o Norte; estão acontecendo muitas coisas estranhas
lá pelas lonjuras do Sul. Foi em Marrocos que vi pela última vez uma dessas coisas. O
perigo delas é mortal; enquanto o espírito estiver dentro, ela nunca pára, e quando a
gente liberta o espírito, ele está tão furioso que mata a primeira coisa que encontra.
– Mas que é que ela estava procurando?
– Estava espionando. Fui um idiota em deixá-la ir lá fora. E devia ter deixado você
decifrar os símbolos, em vez de interromper.
– Agora estou entendendo! – Lyra exclamou de repente.
– Significa "ar" aquele lagarto! Eu vi isso, mas não conseguia ver onde se
encaixava, de modo que tentei entender e perdi o pensamento.
– Ah, então também estou vendo – disse Farder Coram.
– Não é um lagarto, é por isso; é um camaleão. E significa ar porque eles não
comem nem bebem, vivem de ar.
– E o elefante...
– A Africa – ele completou. – Ah!
Eles se entreolharam. A cada revelação do poder do aletômetro, eles ficavam
mais impressionados.
– Ele estava nos falando destas coisas o tempo todo – disse Lyra. – Devíamos
ter escutado. Mas o que podemos fazer com esta aí, Farder Coram? Podemos matar,
ou coisa assim.
– Acho que não podemos fazer nada. Vamos ter que prender isso aí numa caixa e
nunca mais soltar. O que me preocupa mais é o outro, o que fugiu. Ele agora deve
estar voando de volta para a Sra. Coulter, com a notícia de que encontrou você. Droga,
Lyra, sou um idiota.
Ele remexeu num armário e encontrou uma lata de guardar folhas de fumar com
cerca de dez centímetros de diâmetro. Ela tinha sido usada para guardar parafusos,
mas ele esvaziou-a e limpou o interior com um pano antes de inverter o copo sobre ela
com o cartão ainda no lugar. Depois de um momento de perigo, quando uma perna da
criatura escapou e afastou a lata com força surpreendente, eles conseguiram prendê-la
na lata e enroscar a tampa com força.
– Assim que chegarmos ao navio, vou colocar uma solda em volta, como
segurança disse Farder Coram.
– Mas a corda não vai acabar?
– Se fosse um mecanismo comum, sim. Mas, como eu disse, este aqui fica
sempre esticado pelo espírito preso no meio.
Quanto mais ele luta, mais a corda é dada, e maior é a força. Agora vamos
guardar esse sujeito...
Ele enrolou a lata num pedaço de flanela para abafar o zumbido incessante e
escondeu-a debaixo da cama.
Já estava escuro, e Lyra contemplava pela janela as luzes de Colby cada vez
mais próximas. O ar pesado transformava-se em neblina, e quando atracaram ao lado
do Mercado de Defumados, tudo em volta estava desfocado. A escuridão transformada
em véus cinza-prateados cobria os caixotes e os depósitos, as barraquinhas de
madeira e o prédio de granito com muitas chaminés, que davam nome ao mercado,
onde dia e noite havia peixes sendo defumados pela perfumada fumaça do carvalho. As
chaminés contribuíam para o ar abafado, e o cheiro agradável de peixe defumado –
arenque, cavala e hadoque – parecia sair das pedras do chão. Lyra, enrolada numa
capa de chuva e com um enorme capuz escondendo os cabelos indiscretos, caminhava
entre Farder Coram e o piloto. Todos os três daemons estavam alertas, vigiando as
esquinas à frente, vigiando atrás, tentando escutar as mais leves passadas.
Mas eles eram as únicas figuras à vista. Os cidadãos de Colby estavam todos
dentro de casa, provavelmente bebericando aguardente de cereais junto a uma lareira
quentinha. Não encontraram ninguém até chegarem ao porto, e o primeiro homem que
viram foi Tony Costa, vigiando os portões.
– Graças a Deus vocês chegaram – disse ele baixinho, deixando-os passar. –
Acabamos de saber que Jack Verhoeven levou um tiro e o barco dele foi afundado, e
ninguém sabia onde vocês estavam. John Faa já está no navio, louco para partir.
Lyra achou o navio imenso. Tinha no centro a casa do leme e a chaminé, o
castelo da proa bem alto e um guindaste acima de uma grande abertura coberta por
uma lona; luz amarela brilhando nas escotilhas e na ponte, e luz branca no topo do
mastro; e três ou quatro homens no convés, trabalhando apressadamente em coisas
que ela não conseguia enxergar.
Ela subiu depressa a rampa de madeira, passando à frente de Farder Coram, e
olhou em volta com excitação. Pantalaimon tornou-se um macaco e imediatamente pôsse
a subir pelo guindaste, mas ela o chamou de volta; John Faa conversava baixinho
com Nicholas Rokeby, o gípcio encarregado do navio. John Faa não fazia nada às
pressas. Lyra estava esperando que ele a cumprimentasse, mas ele terminou o que
dizia sobre a maré e a pilotagem antes de virar-se para os recém-chegados.
– Boa noite, amigos. O coitado do Jack Verhoeven está morto, talvez vocês já
saibam. E os filhos dele foram capturados.
– Nós também temos más notícias – disse Farder Coram, e relatou o encontro
com os espíritos voadores.
John Faa sacudiu a cabeça, mas não os repreendeu.
– Onde está a criatura agora? – perguntou.
Farder Coram pegou a lata e colocou-a sobre a mesa. De dentro vinha um
zumbido tão furioso que a própria lata movia-se lentamente sobre o tampo de madeira.
– Já ouvi falar desses demônios mecânicos, mas nunca os tinha visto – disse John
Faa. – Não há jeito de domesticá-lo ou acabar com a corda, isso eu sei. Também não
adianta colocar um peso de chumbo e jogar no fundo do mar, porque um dia a lata iria
enferrujar, o demônio iria sair e ir atrás da garota onde quer que ela estivesse. Não,
vamos ter que guardar e vigiar.
Sendo Lyra a única mulher a bordo (pois John Faa, depois de muito meditar, tinha
resolvido não levar mulheres), ela tomou uma cabine só para si. Não muito grande,
naturalmente; na verdade, era pouco mais que um armário com uma cama e uma
escotilha. Ela guardou seus poucos pertences na gaveta sob a cama e subiu correndo,
excitada, para debruçar-se sobre a amurada e contemplar a Inglaterra desaparecendo
lá atrás, descobrindo então que a maior parte da Inglaterra tinha desaparecido na
neblina antes que ela subisse.
Mas o ruído da água lá embaixo, o movimento no ar, as luzes do navio brilhando
corajosamente na escuridão, o ronco do motor, o cheiro de sal, de peixe e de álcool de
carvão eram suficientemente excitantes. Não demorou que outra sensação se somasse
àquelas, quando o navio começou a balançar nas ondulações do Oceano Germânico.
Quando alguém chamou Lyra para jantar, ela descobriu que tinha menos fome do que
imaginara, e depois de algum tempo achou que seria uma boa idéia deitar-se – por
causa de Pantalaimon, porque a pobre criatura estava se sentindo pouco à vontade.
E assim começou a viagem dela para o Norte.

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