quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Capítulo Dezenove

Ele saiu do hospital e foi para casa alguns dias depois, final e irrevogavelmente esvaziado de suas ambições. Passou a precisar de mais remédios para acabar com a dor. Ele se mudou para o andar de cima permanentemente, para uma cama de hospital colocada perto da janela da sala de estar.
Aqueles foram dias de pijamas e barba por fazer, de murmúrios, de pedidos e do Gus agradecendo sem parar a todo mundo por tudo o que estavam fazendo por ele. Uma tarde, ele apontou vagamente para o cesto de roupa suja no canto do cômodo e me perguntou:
— O que é aquilo?
— O cesto de roupa suja?
— Não, ao lado dele.
— Não vejo nada ao lado dele.
— Meu último resquício de dignidade. É muito pequeno.


* * *


No dia seguinte, entrei sem bater. Eles não queriam mais que eu tocasse a campainha porque isso poderia acordar o Gus. As irmãs dele estavam lá com os maridos banqueiros e três crianças, todas meninos, que correram até mim e cantaram quem é você quem é você quem é você, correndo em círculos pelo hall de entrada como se a capacidade pulmonar fosse um recurso renovável. Eu já havia sido apresentada às irmãs, mas nunca às crianças ou aos pais delas.
— Meu nome é Hazel — falei.
— Gus tem namorada — um dos meninos disse.
— Eu sei que o Gus tem namorada — falei.
— Ela tem peito — um dos outros disse.
— Mesmo?
— Por que você carrega isso? — o primeiro perguntou, apontando para o carrinho do oxigênio.
— Ele me ajuda a respirar — respondi. — O Gus está acordado?
— Não, ele está dormindo.
— Ele está morrendo — falou outro.
— Ele está morrendo — confirmou o terceiro, repentinamente sério.
Tudo ficou em silêncio por alguns instantes e eu fiquei tentando imaginar o que deveria dizer, mas então um deles chutou o do lado e os três saíram de novo em disparada, um caindo por cima do outro num
furacão que migrava para a cozinha.
Segui até a sala de estar para ver os pais do Gus e conheci os cunhados, Chris e Dave.
Eu não tinha chegado a conhecer as meias-irmãs direito, mas ambas me abraçaram mesmo assim. A Julie estava sentada na beira da cama, falando com um Gus adormecido exatamente com o mesmo tom de voz que alguém usaria para falar para uma criança que ela era adorável, dizendo:
— Ah, Gussy Gussy, nosso pequeno Gussy Gussy.
Nosso Gussy? Elas tinham comprado ele?
— E aí, Augustus? — falei, tentando reproduzir um modelo de comportamento apropriado.
— Nosso belo Gussy — disse a Martha, se inclinando para a frente, mais para perto dele.
Comecei a me perguntar se o Gus estava dormindo de verdade ou se tinha pressionado sem parar a bombinha que liberava os analgésicos a fim de evitar o Ataque das Irmãs Bem-intencionadas.


* * *


Ele acordou depois de um tempo e a primeira coisa que disse foi:
— Hazel.
O que, tenho de admitir, me deixou feliz, como se eu também fizesse parte da família dele, talvez.
— Lá fora — ele falou, baixinho. — Podemos ir?
Fomos todos: a mãe empurrando a cadeira de rodas, as irmãs, os cunhados, o pai, os sobrinhos e eu seguindo em procissão. O dia estava nublado, ainda, e quente, pois o verão havia chegado de vez. O Gus estava com uma camiseta de manga comprida azul-marinho e calça de moletom.
Por algum motivo, sentia frio o tempo todo. Ele pediu água, então seu pai foi e buscou um copo cheio.
A Martha tentou puxar conversa com ele, ajoelhando-se a seu lado, dizendo:
— Você sempre teve olhos tão bonitos.
Ele assentiu com a cabeça, devagarinho.
Um dos maridos colocou um dos braços no ombro do Gus e falou:
— O que está achando desse ar puro?
O Gus deu de ombros.
— Você quer seus remédios? — a mãe dele perguntou, se juntando à roda de pessoas ajoelhadas à sua volta.
Dei um passo atrás, vendo os sobrinhos destruírem um canteiro de flores a caminho do pequeno gramado no quintal do Gus. Eles começaram imediatamente a brincar de jogar um ao outro no chão.
— Crianças! — a Julie gritou sem muita convicção. — Só espero —ela disse, se virando de novo para o Gus — que eles cresçam e sejam o tipo de jovem atencioso e inteligente que você se tornou.
Resisti à vontade de fingir que ia enfiar o dedo na garganta.
— Ele não é tão inteligente assim — falei para a Julie.
— Ela tem razão. É só que a maioria das pessoas muito bonitas é burra, por isso eu supero as expectativas.
— É isso aí. Ele é basicamente sensual — falei.
— A minha sensualidade pode meio que cegar — ele disse.
— Como de fato cegou o nosso amigo Isaac — falei.
— Uma tragédia sem precedentes, aquela. Mas dá para eu conter a minha beleza mortal? — Não, não dá.
— É minha sina, esse rosto lindo.
— Isso sem falar no seu corpo.
— Na moral, não vou nem começar a falar do meu corpo sexy. Você não ia querer me ver nu, Dave. Na verdade, me ver pelado foi o que fez a Hazel Grace perder o ar — ele falou, fazendo um gesto com a cabeça na direção do cilindro de oxigênio.
— Tá, já chega — o pai do Gus disse, e então, do nada, me abraçou e beijou a minha cabeça, sussurrando:
— Eu agradeço a Deus todos os dias por você existir, menina.
Bem, de qualquer jeito, aquele foi o último dia bom que passei com o Gus até o Último Dia Bom.

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