quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Capítulo Dezoito

Acordei com meu telefone tocando uma música do The Hectic Glow. A preferida do Gus. Aquilo significava que era ele quem estava me ligando… ou que alguém estava me ligando do celular dele. Dei uma olhada no relógio: 2h35 da manhã. Ele se foi, pensei enquanto tudo dentro de mim colapsava para uma singularidade.
Mal consegui dizer:
— Alô?
Esperei pelo som da voz devastada de um pai ou uma mãe.
— Hazel Grace — o Augustus disse baixinho.
— Ai, graças a Deus é você. Oi. Oi, eu te amo.
— Hazel Grace, estou no posto de gasolina. Tem alguma coisa errada. Você precisa me ajudar.
— O quê? Onde você está exatamente?
— Na esquina da Rua 86 com a Avenida Ditch. Eu fiz alguma besteira com o tubo de alimentação e não sei o que foi e…
— Vou ligar para uma ambulância — falei.
— Não não não não não, eles vão me levar para um hospital. Hazel, preste atenção. Não ligue para uma ambulância nem para os meus pais, eu nunca vou perdoar você, não faça isso, só venha aqui, por favor, e conserte a desgraça do meu tubo de alimentação. É só que, cara, isso é a maior estupidez. Não quero que meus pais saibam que saí. Por favor. Estou com o remédio aqui; só não consigo colocá-lo para dentro. Por favor.
Ele estava chorando. Nunca o tinha ouvido chorar daquele jeito, exceto quando eu estava do lado de fora da casa dele antes de Amsterdã.
— Tá — falei. — Estou indo agora.
Removi o BiPAP e me conectei a um cilindro de oxigênio. Coloquei-o no carrinho, calcei um tênis que combinava com a calça de pijama de algodão cor-de-rosa e com a camiseta de malha do time de basquete da Universidade de Butler, que tinha sido do Gus. Peguei as chaves na gaveta da cozinha onde mamãe as guardava e escrevi um bilhete para o caso de os dois acordarem enquanto eu estivesse fora.

Fui ver o Gus. 
É importante. Foi mal. 
Com amor, H

Enquanto eu percorria de carro os poucos quilômetros até o posto de gasolina, despertei o suficiente para tentar imaginar por que o Gus tinha saído de casa no meio da noite. Talvez ele estivesse tendo alucinações, ou suas fantasias de martírio o tivessem derrotado.
Pisei fundo na Avenida Ditch passando por sinais de trânsito que piscavam no amarelo, indo rápido demais meio que para chegar logo e meio que na esperança de que um policial fosse me fazer encostar o carro e me dar um motivo para dizer a alguém que meu namorado moribundo estava empacado num posto de gasolina com um tubo de alimentação defeituoso. Mas nenhum policial apareceu para tomar aquela decisão por mim.


* * *


Só havia dois carros estacionados em frente à loja de conveniência do posto. Parei o meu ao lado do dele. Abri a porta. A luz interna se acendeu.
O Augustus estava sentado no banco do motorista, coberto de vômito, as mãos pressionando a barriga no local onde o tubo de alimentação entrava.
— Oi — ele murmurou.
— Ai, meu Deus, Augustus, nós temos que ir para um hospital.
— Dê só uma olhada aqui, por favor.
Tive ânsia de vômito mas me inclinei a fim de checar o local acima do umbigo onde o tubo havia sido cirurgicamente instalado. A pele estava quente e muito vermelha.
— Gus, acho que infeccionou. Não vou conseguir resolver. Por que você está aqui? Por que não está em casa?
Ele vomitou, sem energia nem para virar o rosto e poupar seu colo.
— Ah, meu amor — falei.
— Eu queria comprar um maço de cigarros — ele balbuciou. — Perdi o meu. Ou então esconderam de mim. Não sei. Eles disseram que iam me comprar outro, mas eu quis… fazer isso sozinho. Fazer uma coisa simples sem ajuda. Ele estava olhando fixamente para a frente. Devagarinho, peguei meu celular e olhei para o teclado a fim de discar 911.
— Sinto muito — falei para ele. Nove-um-um, qual é a sua emergência?
— Oi, eu estou na esquina da Rua 86 com a Avenida Ditch e preciso de uma ambulância. O amor da minha vida está com um tubo de alimentação defeituoso.


* * *


Ele levantou os olhos para me olhar. Foi horrível. Eu mal conseguia encará-lo. O Augustus Waters dos sorrisos tortos e dos cigarros apagados já era, substituído por uma criatura deploravelmente humilhada sentada ali abaixo de mim.
— É o fim. Não consigo nem mais não fumar.
— Gus, eu te amo.
— Onde está a minha chance de ser o Peter Van Houten de alguém? — O Gus bateu sem força no volante, o carro buzinando enquanto ele chorava. Inclinou a cabeça para trás, olhando para cima. — Eu me odeio
eu me odeio eu odeio isso eu odeio isso eu tenho nojo de mim eu odeio isso eu odeio isso eu odeio isso deixe eu morrer de uma vez.
De acordo com as convenções do gênero, o Augustus Waters manteve o senso de humor até o fim, nem por um momento abandonou sua coragem, e seu espírito elevou-se como uma águia indomável até que o mundo em si não conseguiu conter sua alma repleta de júbilo.
Mas essa era a verdade: um garoto digno de pena que queria desesperadamente não ser digno de pena, gritava e chorava, sendo envenenado pelo tubo de alimentação infectado que o mantinha vivo, mas não o suficiente.
Limpei o queixo dele e segurei seu rosto nas minhas mãos, me ajoelhando a fim de poder ver seus olhos, que ainda tinham vida.
— Sinto muito. Queria que fosse como naquele filme, com os persas e os espartanos.
— Eu também — ele disse.
— Mas não é — falei.
— Eu sei — ele completou.
— Não tem nenhum cara do mal aqui.
— É.
— Nem o câncer é um bandido de verdade: o câncer só quer viver.
— É.
— Está tudo bem — falei para ele.
E pude ouvir as sirenes.
— Tudo bem — ele falou.
Estava perdendo a consciência.
— Gus, você tem que me prometer que não vai fazer mais isso. Eu compro cigarros para você, tá? — Ele me olhou. Seus olhos nadavam nas órbitas. — Você tem que me prometer.
Ele fez que sim com a cabeça, de leve, e então fechou os olhos, a cabeça pendendo do pescoço.
— Gus — falei. — Fique aqui comigo.
— Leia alguma coisa para mim — ele disse, enquanto a desgraça da ambulância passava direto por nós.
Então, enquanto eu esperava que eles dessem a volta e nos encontrassem, recitei o único poema que me veio à cabeça: "O Carrinho de Mão Vermelho", de William Carlos Williams.

Tanta coisa depende
De um

Carrinho de mão
Vermelho

Esmaltado de água de
Chuva

Ao lado das galinhas
Brancas.

Williams era médico. Aquele parecia, para mim, um poema de médico. Tinha acabado, mas a ambulância ainda se afastava de nós, então fui compondo o poema.


* * *


E tanta coisa depende, falei para o Augustus, de um céu azul descortinado pelos galhos das árvores. Tanta coisa depende do tubo de alimentação transparente erupcionando das vísceras do garoto de lábios cianóticos.
Tanta coisa depende desse observador do universo. Só metade consciente, ele olhou para mim e murmurou:
— E você ainda diz que não escreve poesia.

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