quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Capítulo Quinze

Alguns dias depois, na casa do Gus, os pais dele, os meus pais, o Gus e eu estávamos todos espremidos à mesa de jantar, comendo pimentões recheados sobre uma toalha que, de acordo com o pai do Gus, tinha sido usada pela última vez no século passado.
Meu pai: "Emily, este risoto…"
Minha mãe: "Está uma delícia."
Mãe do Gus: "Ah, obrigada. Terei o maior prazer em dar a receita para você."
Gus, engolindo uma garfada: "Sabe, o gosto que estou sentindo é não Oranjee."
Eu: "bem observado, Gus. Esta comida, mesmo deliciosa, não tem o mesmo gosto da comida do Oranjee."
Minha mãe: "Hazel."
Gus: "Tem gosto de…"
Eu: "Comida."
Gus: "É, exatamente. Tem gosto de comida, muito bem preparada. Mas o gosto não parece… como posso dizer isso de um jeito delicado…?"
Eu: "Não parece que Deus, em pessoa, preparou o paraíso numa série de cinco pratos, os quais lhe foram servidos acompanhados de várias bolhas luminosas de plasma fermentado e espumante, enquanto pétalas de
flores verdadeiras e literais flutuavam por toda a superfície do canal ao lado da sua mesa de jantar."
Gus: "Bem colocado."
Pai do Gus: "Nossos filhos são estranhos."
Meu pai: "Bem colocado."


* * *


Uma semana depois do nosso jantar, o Gus foi parar na Emergência com dores no peito e acabou sendo internado no meio da noite. Fui de carro até o Memorial na manhã seguinte e o visitei no quarto andar. Eu não ia ao Memorial desde a visita ao Isaac. Ali não havia nenhuma parede pintada com cores exageradamente vivas nem as pinturas emolduradas de cães ao volante de veículos que se via no Hospital Pediátrico, mas a esterilidade completa do lugar me fez sentir saudade daquela aura boba de "criança
feliz". O Memorial era tão funcional… Era tipo um depósito. Um prematório.
Quando as portas do elevador se abriram no quarto andar, vi a mãe do Gus andando de um lado para outro na sala de espera, falando ao celular.
Ela desligou rapidamente e me abraçou, se oferecendo para carregar meu carrinho.
— Não precisa, obrigada — falei. — Como está o Gus?
— Ele teve uma noite ruim, Hazel — ela respondeu. — O coração dele está sobrecarregado. O Gus precisa diminuir o ritmo. Daqui para a frente é só cadeira de rodas. Ele está sendo medicado com uma substância nova que deve funcionar melhor no combate à dor. As irmãs dele acabaram de parar o carro no estacionamento.
— Tá — falei. — Posso ver o Gus?
Ela colocou o braço no meu ombro e apertou-o com a mão. A sensação foi esquisita.
— Você sabe que nós a amamos, Hazel, mas nesse momento precisamos ficar apenas em família. O Gus concorda com isso. Tudo bem?
— Tudo — respondi.
— Vou dizer a ele que você esteve aqui.
— Tá — falei. — Só vou ficar por aí lendo um pouco, acho.


* * *


Ela andou até o fim do corredor, de volta ao lugar onde ele estava. Eu compreendia, mas ainda assim sentia falta dele e imaginava que talvez estivesse perdendo a última chance de ver o Gus, de me despedir, ou sei
lá. A sala de espera era toda forrada de carpete marrom e mobiliada com estofados de tecido marrom. Eu me sentei num sofá por um tempo, o carrinho do oxigênio enfiado debaixo dos meus pés. Eu tinha colocado meus Chuck Taylors e minha camiseta do Ceci n’est pas une pipe, o mesmo figurino que usei duas semanas antes no fim de tarde do diagrama de Venn, e ele nem ia ver. Comecei a olhar as fotos do meu celular, um álbum de trás para a frente dos últimos meses, começando com ele e o Isaac do lado de fora da casa da Monica, e terminando com a primeira foto que tirei dele, a caminho dos Ossos Maneiros. Parecia que tinha sido, tipo, há uma eternidade, como se tivéssemos vivido uma breve, mas infinita, eternidade. Alguns infinitos são maiores que outros.


* * *


Duas semanas depois, fui empurrando a cadeira de rodas do Gus pelo parque atrás do museu, em direção aos Ossos Maneiros, com uma garrafa cheia de um champanhe muito caro e meu cilindro de oxigênio no colo dele. O champanhe tinha sido doado por um dos médicos do Gus, o Gus sendo o tipo de pessoa que inspira médicos a darem suas garrafas de champanhe mais especiais para crianças. Ficamos ali sentados, ele na cadeira e eu na grama úmida, o mais perto dos Ossos Maneiros que conseguimos chegar com a cadeira de rodas. Apontei para as crianças que encorajavam umas às outras a pular da caixa torácica até o ombro, e o Gus fez um comentário, a voz dele alta só o suficiente para que eu conseguisse escutá-lo com todo aquele barulho.
— Da última vez me imaginei como sendo uma das crianças. Dessa vez sou o esqueleto.
Nós bebemos o champanhe em copos de papel do Ursinho Pooh.

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