quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Capítulo Sete

Gritei para acordar meus pais e eles entraram no quarto como dois furacões, mas não havia nada que pudessem fazer para diminuir a intensidade da supernova que explodia na minha cabeça, uma cadeia interminável de fogos de artifício intracranianos que me fizeram pensar que minha hora tinha chegado de vez, e tentei me convencer —como já tinha feito antes — de que o corpo desliga quando a dor fica insuportável demais, que a consciência é temporária e que tudo vai passar.
Mas, como sempre, não desmaiei. Fui deixada na areia com as ondas batendo em mim, sem poder me afogar.
Papai foi dirigindo enquanto falava com o hospital ao celular, eu deitada no banco de trás com a cabeça apoiada no colo da minha mãe.
Não havia nada a fazer: gritar só piorava. Para falar a verdade, qualquer estímulo só piorava.
A única solução seria tentar desmanchar o mundo, torná-lo negro e silencioso e inabitado de novo, voltar ao momento anterior ao Big Bang, no começo, quando havia o Verbo, e viver naquele espaço não criado e vazio sozinha com o Verbo. As pessoas falam da coragem dos pacientes de câncer, e eu não a nego. Por vários anos fui cutucada, cortada e envenenada, e segui em frente. Mas não se enganem: naquele momento, eu teria ficado muito, muito feliz em morrer.


* * *


Acordei na UTI. Pude perceber que era a UTI porque não estava num quarto particular, e porque havia vários aparelhos bipando, e porque eu estava sozinha: eles não deixam a família ficar na UTI do Hospital Pediátrico vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana porque isso representaria risco de infecção. Ouvi um choro vindo do fim do corredor. O filho de alguém tinha morrido. Eu estava sozinha. Apertei o botão vermelho para chamar alguém.
Uma enfermeira apareceu alguns segundos depois.
— Oi — falei.
— Oi, Hazel. Sou Alison, sua enfermeira — ela disse.
— Oi, Alison Minha Enfermeira — falei.
Depois disso comecei a me sentir muito cansada de novo. Mas fiquei acordada por um tempo quando meus pais entraram, chorando, e me deram vários beijos. Tentei erguer o tronco para abraçar os dois, e tudo em mim doeu quando os abracei, e mamãe e papai me contaram que não havia nenhum tumor no meu cérebro, e que minha dor de cabeça tinha sido causada por má oxigenação, o que por sua vez foi provocado pelo fato de meus pulmões estarem nadando em líquido, um litro e meio (!!!!) que tinha sido drenado com sucesso do meu peito, e era por isso que eu talvez fosse sentir um leve desconforto ao deitar de lado, onde havia, ei, veja isso, um tubo que ia do meu peito até um recipiente de plástico com líquido até a metade, que, juro, parecia a cerveja preferida do meu pai. Mamãe me disse que eu iria para casa, de verdade, que só teria de fazer essa drenagem de vez em quando e que precisaria voltar a usar o BiPAP, o equipamento noturno que força a entrada e a saída de ar dos meus pulmões de araque.
Mas eu tinha feito uma tomografia computadorizada de corpo inteiro na primeira noite no hospital, segundo eles, e a notícia era boa: nenhum crescimento de tumor. Nada de novos tumores. A dor no meu ombro tinha
sido falta de oxigenação. Dores de um coração trabalhando mais que o normal.
— Hoje de manhã a Dra. Maria nos disse que continua otimista — papai falou.
Eu gostava da Dra. Maria, e ela não era de mentir, por isso adorei ouvir aquilo.
— Isso é só um detalhe, Hazel — minha mãe disse. — É um detalhe com o qual conseguiremos conviver. Assenti com a cabeça, e então a Minha Enfermeira Alison meio que fez com que eles saíssem, educadamente. Ela me perguntou se eu queria umas pedrinhas de gelo e eu disse que sim, e aí ela se sentou na cama comigo e me deu as pedrinhas na boca, de colher.
— Então você ficou fora do ar alguns dias — a Alison disse.
— Humm… O que você perdeu?… Uma celebridade se drogou. Políticos brigaram. Uma outra celebridade usou um biquíni que revelou uma imperfeição corporal. Um time venceu um campeonato, mas outro time perdeu. — Eu sorri.
— Você não pode continuar se isolando do mundo assim, Hazel. Você perde muita coisa.
— Mais? — interroguei, fazendo um gesto com a cabeça na direção do copo branco de isopor que estava na mão dela.
— Eu não deveria — ela respondeu —, mas sou rebelde. — E me deu outra colherada do gelo triturado.
Murmurei um "obrigada". Graças a Deus pelas boas enfermeiras.
— Está ficando cansada? — ela perguntou.
Fiz que sim.
— Durma um pouco — ela completou. — Vou tentar mexer uns pauzinhos e lhe dar algumas horas antes que entre alguém para verificar seus sinais vitais e coisas do gênero.
Agradeci mais uma vez. Em hospitais, você agradece o tempo todo.
Tentei me ajeitar no leito.
— Você não vai perguntar nada sobre seu namorado? — ela me questionou.
— Eu não tenho namorado — falei.
— Bem, um garoto mal saiu da sala de espera desde que você chegou aqui — ela disse.
— Ele não me viu assim, viu?
— Não. Só a família.
Assenti com a cabeça e mergulhei num sono aquoso.


* * *


Ainda faltariam seis dias para eu voltar para casa, seis dias perdidos olhando para o isolamento acústico no teto, vendo televisão, dormindo, sentindo dor e querendo que o tempo passasse logo. Não vi o Augustus
nem ninguém além dos meus pais. Meu cabelo parecia um ninho de passarinho; meu passo de cágado, o de um paciente com demência. Mas a cada dia me sentia ligeiramente melhor: cada sono acabava revelando uma criatura que se parecia um pouco mais comigo. O sono combate o câncer, disse meu médico, Jim, pela milésima vez quando pairou sobre mim certa manhã, rodeado por um grupo de estudantes de medicina.
— Então eu sou uma máquina de combate ao câncer — disse para ele.
— Isso você é mesmo, Hazel. Continue descansando e, com sorte, poderemos mandá-la para casa logo.


* * *


Na terça-feira, eles me disseram que eu iria para casa na quarta. Na quarta, dois residentes minimamente supervisionados removeram o dreno do meu tórax. A sensação foi de estar levando uma facada de dentro para fora, o que, no fim das contas, não saiu como deveria, por isso eles decidiram que eu teria de ficar até quinta. Já estava começando a pensar que eu era objeto de algum experimento existencialista de gratificação postergada em modo contínuo quando, na sexta-feira de manhã, a Dra.
Maria apareceu, me farejou por um minuto e me disse que eu poderia ir embora.
Aí a mamãe abriu sua enorme bolsa e mostrou que lá dentro estavam, desde sempre, minhas Roupas de Ir Para Casa. Uma enfermeira veio e retirou os aparatos da terapia intravenosa. Eu me senti livre, mesmo ainda tendo de carregar o cilindro de oxigênio para todo lado. Entrei no banheiro, tomei meu primeiro banho em uma semana e me vesti. Quando saí, estava tão cansada que tive de deitar para recuperar o fôlego.
— Você quer ver o Augustus? — minha mãe perguntou. — Pode ser — respondi, após alguns instantes.
Eu me levantei e me transferi para uma das cadeiras de plástico encostadas na parede, enfiando o cilindro debaixo dela. Aquilo acabou comigo.
Papai voltou com o Augustus minutos depois. O cabelo dele estava bagunçado, caindo na testa. Seu rosto se iluminou com um legítimo Sorriso Bobo à la Augustus Waters quando me viu, e também não consegui evitar um sorriso. Gus se sentou na poltrona reclinável azul de couro falso que estava perto da minha cadeira. Ele se inclinou para a frente, se aproximando de mim, aparentemente incapaz de conter o sorriso.
Mamãe e papai nos deixaram sozinhos, o que foi meio constrangedor.
Eu me esforcei para olhar nos olhos dele, embora fossem tão lindos que eram quase impossíveis de encarar.
— Estava com saudade de você — o Augustus disse.
Minha voz saiu mais baixa do que eu gostaria.
— Obrigada por não tentar me ver quando eu parecia ter saído do inferno.
— Para falar a verdade, sua aparência ainda não está lá essas coisas.
Eu ri.
— Senti saudade de você também. Só não quero que você veja… tudo isso. Só quero, tipo… Não tem importância. Não é sempre que a gente pode ter o que quer.
— Sério? — ele perguntou. — Sempre pensei que o mundo fosse uma fábrica de realização de desejos.
— Acontece que não é esse o caso — falei. Ele era tão belo…
Levantou a mão para pegar a minha mas eu balancei a cabeça negativamente. — Não — falei baixinho. — Se vamos ficar juntos, tem de ser, tipo, não assim.
— Tá — ele disse.
— Bem, eu tenho boas e más notícias no campo da realização de desejos.
— Então? — falei.— A má notícia é que, obviamente, não vamos poder ir a Amsterdã até você melhorar. Mas os Gênios vão executar a famosa magia deles quando estiver se sentindo bem o suficiente.
— Essa é a boa notícia?
— Não. A boa notícia é que, enquanto você dormia, Peter Van Houten compartilhou um pouco mais de sua mente genial conosco.
Ele aproximou a mão da minha de novo, dessa vez para colocar nela uma folha bem dobrada, um papel timbrado sob o nome de Peter Van Houten, Romancista Emérito.


* * *


Não li a carta até entrar em casa e deitar na minha enorme cama vazia, sem qualquer chance de interrupção médica. Levei horas tentando decifrar a escrita inclinada e garranchosa de Van Houten.

Caro Sr. Waters,
Acabei de receber sua correspondência eletrônica com data de 14 de abril e estou devidamente impressionado com a complexidade shakespeariana de seu drama. Todos nessa história têm uma harmatia
sólida como uma rocha: a dela, estar tão doente; a sua, estar tão bem. Se ela estivesse melhor ou o senhor, mais doente, então as estrelas não estariam tão terrivelmente cruzadas, mas é da natureza das estrelas se
cruzar, e nunca Shakespeare esteve tão equivocado como quando fez Cássio declarar: "A culpa, meu caro Bruto, não é de nossas estrelas / Mas de nós mesmos." Fácil falar quando se é um nobre romano (ou
Shakespeare!), mas não há qualquer escassez de culpa em meio às nossas estrelas.
Permanecendo no assunto das falhas do bom e velho William, seu texto acerca da jovem Hazel me fez recordar o soneto cinquenta e cinco do bardo, que, como o senhor deve saber, começa assim: "Nem o mármore, nem os áureos mausoléus / De reis hão de durar mais que meu verso ardente; / Mas nele brilhareis mais refulgentemente / Do que a pedra largada aos ultrajes do tempo." (Fugindo um pouco do assunto, mas: que meretriz é o tempo. Nos fode a todos.) É um lindo poema, porém, enganoso: com certeza, nos lembramos dos versos ardentes de Shakespeare, mas o que temos em mente sobre a pessoa que ele homenageia? Nada. Temos quase certeza de que se trata de um homem; tudo mais é suposição. Shakespeare nos revelou muito pouco sobre o homem que sepultou em seu sarcófago linguístico. (Perceba também que, quando falamos de literatura, o fazemos no tempo presente. Quando falamos dos mortos, não somos tão generosos.) Não se imortaliza a perda escrevendo sobre eles. A escrita enterra, mas não ressuscita. (Declaração total e irrestrita: não sou o primeiro a fazer esta observação. Cf. o poema de MacLeish "Nem o mármore, nem os áureos mausoléus‚, que contém o verso heroico: ‚Direi que morrerás e não se lembrarão de teu passado.")
Estou a divagar, mas eis a falha: os mortos são visíveis apenas através do terrível olho vigilante da memória. Os vivos, graças aos céus, mantêm a capacidade de surpreender e de decepcionar. Sua Hazel está viva, Waters, e o senhor não deve impor sua vontade sobre a decisão de outrem, em particular uma decisão que foi tomada após muita ponderação. Ela deseja salvaguardá-lo da dor, e o senhor deve deixar que ela assim o faça. É possível que não ache a lógica da jovem Hazel persuasiva, mas tenho atravessado esse vale de lágrimas há mais tempo que o senhor e, do meu ponto de vista, não é ela a lunática.

Atenciosamente,
Peter Van Houten

Tinha sido mesmo escrita por ele. Lambi o dedo, umedeci o papel e a tinta borrou um pouco, e foi assim que soube que era verdadeiramente verdadeira.
— Mãe — disse.
Não falei muito alto, mas não precisava mesmo. Ela estava sempre à espera. Sua cabeça apareceu por trás da porta. — Está tudo bem, querida?
— Podemos ligar para a Dra. Maria e perguntar se uma viagem internacional me mataria?

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