quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Capítulo Três

Fiquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer. (Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max
Mayhem, era ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira. Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular, que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe.
Mamãe me conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula.
— Foi aquele menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena — continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso. Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje — gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos. Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? — ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um programa legal — respondi.


* * *


Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos. Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn respondeu.

Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32? 

A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:

Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação. 

Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem para Mayhem, os volumes seguintes da série "O preço do alvorecer".
Depois fui andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha, sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho, perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou
para me abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se incomodava.
Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis. Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo — ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?


* * *


Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: "Essas ficariam lindas em você", o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então, quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais, eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava, carregando algum sapato fechado, e perguntava: "Esse?", e eu tentava fazer algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço, como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo. Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses, chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o
Alvoradas à meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1, e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito "técnica", mas o que eu gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer. Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar. Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai? (Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)

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