quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Capítulo Vinte e Quatro

Três dias depois, no terceiro dia DG, o pai do Gus me ligou de manhã. Eu ainda estava conectada ao BiPAP, por isso não atendi, mas ouvi o recado deixado na caixa postal assim que o celular apitou avisando do recebimento.

"Hazel, oi, aqui é o pai do Gus. Eu achei um Moleskine preto no revisteiro que estava do lado da cama de hospital, acho que próximo o suficiente para ele alcançá-lo. Infelizmente não há nada escrito nele. As 
páginas estão todas em branco. Mas as primeiras, acho que umas três ou quatro, foram arrancadas. Vasculhamos a casa toda à procura delas, mas 
não as encontramos. Por isso não sei o que pensar. Mas talvez fosse a essas páginas que o Isaac estava se referindo. De qualquer forma, espero que esteja bem. Você está em nossas orações todos os dias, Hazel. Então, tá. Um beijo. Tchau."

Três ou quatro páginas arrancadas de um Moleskine e que não estavam mais na casa do Augustus Waters. Onde ele as teria deixado para mim? Presas com fita adesiva nos Ossos Maneiros? Não, ele não estava em condições de ir até lá. O Coração Literal de Jesus. Talvez ele tivesse deixado as páginas lá para mim no seu Último Dia Bom.
Por causa disso, saí para ir ao Grupo de Apoio no dia seguinte vinte minutos mais cedo. Fui dirigindo até a casa do Isaac, ele entrou no carro e nós seguimos para o Coração Literal de Jesus com as janelas da minivan abertas, ouvindo o novo álbum do The Hectic Glow, recentemente disponibilizado na rede. Que o Gus nunca ouviria.
Pegamos o elevador. Guiei o Isaac até uma cadeira na Roda da Esperança e depois fui percorrendo vagarosamente todo o Coração Literal.
Olhei em todos os lugares: debaixo das cadeiras, em volta do púlpito atrás do qual eu tinha ficado enquanto lia meu elogio fúnebre, debaixo da mesa de biscoitos, no quadro de avisos cheio de desenhos do amor divino feitos pelas crianças que frequentavam a escola dominical. Nada. Aquele foi o único lugar onde tínhamos estado juntos nos últimos dias, além da casa dele. Ou as páginas não estavam ali ou eu estava esquecendo de procurar em algum lugar. Talvez ele as tivesse deixado para mim no hospital, mas, se fosse esse o caso, elas com certeza foram jogadas fora depois da morte dele.
Eu estava realmente sem fôlego quando, por fim, me sentei numa cadeira ao lado do Isaac, e me dediquei, durante todo o depoimento da ausência de bolas do Patrick, a dizer a meus pulmões que eles estavam
bem, que podiam respirar, que havia oxigênio suficiente. O líquido deles havia sido drenado uma semana antes da morte do Gus. Fiquei vendo a água cancerosa cor de âmbar pingar para fora de mim pelo tubo. E mesmo assim tinha a sensação de que estavam cheios de novo. Fiquei tão concentrada em dizer a mim mesma para respirar que, num primeiro momento, não reparei que o Patrick tinha dito o meu nome. Retomei a atenção num estalo.
— Sim? — perguntei.
— Como você está?
— Estou bem, Patrick. Um pouco sem fôlego.
— Gostaria de compartilhar com o grupo uma lembrança que tem do Augustus?
— Eu só queria poder morrer, Patrick. Alguma vez você já sentiu vontade de simplesmente morrer?
— Já — o Patrick disse, sem fazer a pausa costumeira. — Já, é claro.
Então por que você não morre?
Pensei naquilo. Minha resposta, retirada de um estoque antigo, era que eu queria continuar viva pelos meus pais, porque eles ficariam arrasados e sem filhos depois de mim, e aquilo ainda era meio verdade,
mas não era bem isso, exatamente.
— Não sei.
— Porque você tem esperança de melhorar?
— Não — falei. — Não, não é isso. Eu realmente não sei. Isaac? —passei a bola.
Estava cansada de falar.
O Isaac começou a falar do amor verdadeiro. Eu não poderia dizer a eles o que tinha em mente porque soava brega, mas o que eu estava pensando era no universo querendo ser notado e em como eu havia reparado nele da melhor forma possível. Eu me sentia em dívida com o universo, uma dívida que só a minha atenção poderia saldar, e, além disso, me sentia em dívida com todo mundo que deixou de ser uma pessoa e com todo mundo que ainda não tinha chegado a ser uma pessoa. Tudo o que meu pai tinha me dito, basicamente.
Fiquei em silêncio até o fim da reunião do Grupo de Apoio, o Patrick me dedicou uma oração especial, o nome do Gus foi adicionado à longa lista de mortos — quatorze para cada um de nós — todos prometemos
viver o melhor da nossa vida hoje, e aí eu levei o Isaac para o carro.


* * *


Quando cheguei de volta à minha casa, mamãe e papai estavam à mesa de jantar, cada um com seu laptop, e assim que entrei pela porta mamãe fechou a tampa do dela.
— O que tem no computador?
— Só algumas receitas antioxidantes. Preparada para o BiPAP e para o America’s Next Top Model? — ela perguntou.
— Só vou me deitar um minuto.
— Você está bem?
— Estou, só um pouco cansada.
— Bem, você precisa comer antes de…
— Mãe, eu não estou com a menor fome.
Dei um passo na direção da porta, mas ela me parou.
— Hazel, você precisa comer. Só um pouco de…
— Não. Estou indo deitar.
— Não — mamãe falou. — Você não vai. Olhei para o meu pai, que só deu de ombros. — É a minha vida — falei.
— Você não vai ficar com fome até morrer só porque o Augustus se foi. Você vai jantar.
Fiquei muito irritada, por algum motivo.
— Eu não consigo comer, mãe. Não consigo. Tá?
Tentei passar por ela, mas a mamãe me segurou pelos ombros e disse:
— Hazel, você vai jantar. Você precisa se manter saudável.
— NÃO! — gritei. — Não vou jantar e não posso me manter saudável porque não sou saudável. Estou morrendo, mãe. Vou morrer e deixar você aqui sozinha, e você não vai mais ter uma "eu" para pairar em torno, e você não vai mais ser mãe, e eu sinto muito, mas não há nada que eu possa fazer a respeito, tá?!
Eu me arrependi de ter dito aquilo assim que fechei a boca. — Você ouviu o que eu disse.
— O quê?
— Você ouviu quando eu disse isso ao seu pai? — Ela arregalou os olhos. — Você escutou? — Eu fiz que sim. — Ai, meu Deus, Hazel. Sinto muito. Eu estava errada, querida. Aquilo não era verdade. Eu falei num
momento de desespero. Não é algo em que eu acredite. — ela disse e se sentou, e eu me sentei junto.
Fiquei pensando que deveria simplesmente ter vomitado algum macarrão por ela, em vez de ter ficado tão irritada.
— Em que você acredita, então? — perguntei.
— Enquanto uma de nós estiver viva, eu serei sua mãe — ela falou.
— Mesmo se você morrer, eu…
— Quando — falei.
Ela assentiu com a cabeça.
— Mesmo quando você morrer, eu ainda serei sua mãe, Hazel. Não vou deixar de ser sua mãe. Você deixou de amar o Gus?
Balancei a cabeça negativamente.
— Bem, então como eu poderia deixar de amar você?
— Tá — falei. Meu pai começou a chorar.
— Eu quero que vocês vivam a vida de vocês — continuei. — Eu fico com medo de vocês não terem uma vida para viver, de ficarem sentados aqui o dia todo sem um "eu" para cuidar, olhando para as paredes,
querendo dar o fora.
Depois de um minuto, a mamãe disse:
— Eu estou fazendo um curso. A distância, da Universidade de Indiana. Para obter um diploma de mestrado em serviço social. Na verdade, eu não estava lendo receitas de antioxidantes; estava fazendo um
trabalho do curso.
— Sério?
— Não quero que pense que estou imaginando um mundo sem você.
Mas se conseguir o mestrado poderei ajudar famílias que estejam em momentos difíceis ou liderar grupos que lidam com as doenças dos familiares deles ou…
— Peraí, você vai virar um Patrick?
— Bem, não exatamente. Existem vários tipos de trabalho de assistência social.
Papai falou:
— Nós dois ficamos preocupados achando que você poderia se sentir abandonada. É importante que você saiba que sempre estaremos aqui para você, Hazel. Sua mãe não vai a lugar algum.
— Não, isso é ótimo. Isso é fantástico! — Eu estava sorrindo de verdade. — A mamãe vai virar um Patrick. Ela vai ser um ótimo Patrick!
Ela vai ser tão melhor nisso que o Patrick!
— Obrigada, Hazel. Isso significa muito para mim.
Eu balancei a cabeça. E comecei a chorar. Não consegui conter a felicidade que estava sentindo, chorando lágrimas verdadeiras de felicidade pela primeira vez em sei lá quanto tempo, imaginando minha mãe como um Patrick. Aquilo me fez pensar na mãe da Anna. Ela também teria dado uma ótima assistente social. Depois de um tempo, ligamos a TV e assistimos ao ANTM. Mas dei uma pausa no programa cinco segundos após o início porque tinha várias perguntas a fazer para a mamãe.
— Quanto falta para você terminar o curso?
— Se eu for a Bloomington e passar uma semana lá nesse verão, pode ser que consiga terminar em dezembro.
— Há quanto tempo exatamente você vem escondendo isso de mim?
— Há um ano.
— Mãe.
— Eu não queria magoar você, Hazel. Incrível.
— Então, quando você está esperando por mim do lado de fora do MCC ou do Grupo de Apoio ou sei lá o quê, você está sempre…
— Estou. Fazendo trabalhos ou lendo.
— Isso é tão maravilhoso! Quando eu morrer, quero que você saiba que estarei suspirando para você lá do céu cada vez que pedir a alguém que compartilhe seus sentimentos.
Meu pai riu.
— E eu vou estar com você, filha — ele me garantiu.
Por fim, assistimos ao ANTM. O papai fez um esforço enorme para não morrer de tédio e toda hora confundia quem era quem entre as garotas, e perguntava:
— Nós gostamos dessa?
— Não, não. Nós odiamos a Anastasia. Nós gostamos da Antonia, a outra loira — a mamãe explicou.
— Elas todas são altas e horríveis — papai retrucou. — Perdão por não conseguir distingui-las.
Papai esticou o braço por cima do meu colo para pegar a mão da mamãe.
— Vocês acham que vão continuar juntos se eu morrer? — perguntei.
— Hazel, o quê? Querida. — A mamãe procurou o controle remoto e deu uma pausa na TV de novo. — O que a preocupa?
— É só que, vocês acham que vão continuar juntos?
— Sim, é claro. É claro — o papai disse. — Sua mãe e eu nos amamos, e se perdermos você, vamos enfrentar isso juntos.
— Jure por Deus — falei.
— Eu juro por Deus — ele disse.
Olhei para a mamãe.
— Juro por Deus — ela concordou. — Mas por que é que você está preocupada com isso?
— Só não quero estragar a vida de vocês nem nada.
A mamãe se inclinou para a frente e encostou o rosto no meu cabelo bagunçado, me beijando no alto da cabeça.
Falei para o papai:
— Não quero que você se torne um alcoólatra desempregado e patético ou coisa assim.
Minha mãe sorriu.
— Seu pai não é o Peter Van Houten, Hazel. Você, mais que qualquer pessoa, sabe que é possível conviver com a dor.
— É, tá — falei, e mamãe me abraçou, e eu deixei que ela fizesse isso, mesmo, no fundo, não querendo.
— Tá, você pode dar play agora — falei.
A Anastasia foi eliminada. Ela fez um escândalo. Foi incrível. Comi um pouco no jantar, farfalle com molho pesto, e consegui fazer com que a comida continuasse dentro de mim.

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