quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Capítulo Vinte e Um

O Augustus Waters morreu oito dias depois do seu pré-enterro, no Memorial, na UTI, quando o câncer, que era feito dele, finalmente parou seu coração, que também era feito dele. Ele estava com a mãe, o pai e as irmãs. A mãe do Gus me ligou às três e meia da madrugada. Eu já sabia, obviamente, que ele estava para partir. Tinha falado com o pai dele antes de dormir, e ele me disse: "É possível que não passe de hoje", mas, ainda assim, quando peguei o celular da mesa de cabeceira e vi Mãe do Gus na identificação da chamada, tudo dentro de mim desmoronou. Ela só chorava do outro lado da linha, e me disse que sentia muito, eu disse que sentia muito também, e ela me contou que ele havia ficado inconsciente por algumas horas antes de morrer.
Meus pais entraram no meu quarto nessa hora, me olhando na expectativa, e eu simplesmente assenti com a cabeça. Eles se abraçaram, sentindo, tenho certeza, o terror harmônico que viria direcionado especificamente para eles dali a algum tempo.
Liguei para o Isaac, que xingou a vida, o universo e até o próprio Deus, e perguntou onde estavam os raios dos troféus para se quebrar quando mais se precisava deles. Foi então que me dei conta de que não havia mais ninguém para quem ligar, o que era muito triste. A única pessoa com quem eu queria falar sobre a morte do Augustus Waters era o Augustus Waters. Meus pais ficaram comigo no quarto por uma eternidade, até quando já era de manhã e o papai finalmente perguntou:
— Você quer ficar sozinha?
Eu fiz que sim com a cabeça e a mamãe completou:
— Estaremos logo ali atrás da porta. E eu pensei: não duvido nada.


* * *


Foi insuportável. A coisa toda. Cada segundo pior que o anterior. Eu só ficava pensando em ligar para ele, tentando imaginar o que aconteceria, se alguém atenderia o celular. Nas últimas semanas, nós nos limitamos a passar o nosso tempo juntos relembrando o passado, mas isso não significava mais nada: o prazer de lembrar tinha sido tirado de mim, porque não havia mais ninguém com quem compartilhar as lembranças.
Parecia que a perda do colembrador representava a perda da própria memória, como se as coisas que tínhamos feito juntos fossem menos reais e importantes do que eram algumas horas antes.
Quando você chega à Emergência de um hospital, uma das primeiras coisas que eles pedem é que você dê uma nota para a sua dor numa escala de um a dez. A partir daí eles decidem que medicamentos prescrever e a velocidade com que têm de ser administrados. Passei por essa situação centenas de vezes no decorrer dos anos, e me lembro de uma vez, logo no início, em que eu não estava conseguindo respirar e parecia que meu peito pegava fogo, as chamas lambendo meu tórax por dentro, tentando encontrar um jeito de sair e queimar o lado de fora, e meus pais me levaram para a Emergência. Uma enfermeira me perguntou sobre a dor e eu não conseguia nem falar, então mostrei nove dedos.
Depois, quando eles já tinham me dado alguma coisa, a enfermeira voltou e ficou meio que acariciando minha mão enquanto media a minha pressão arterial, então disse: "Sabe como eu sei que você é guerreira? Você chamou um dez de nove."
Mas não foi exatamente o que aconteceu. Eu chamei aquilo de nove porque estava poupando o meu dez. E aqui estava ele, o grande e terrível dez me açoitando sem parar, e eu ali sozinha, deitada na minha cama,
olhando fixamente para o teto, as ondas me jogando de encontro às pedras e depois me puxando de volta para o mar a fim de poderem me lançar mais uma vez na face chanfrada do penhasco, me abandonando na água, boiando, o rosto virado para cima sem me afogar.
Acabei ligando para ele. O telefone tocou cinco vezes e a caixa postal atendeu. "Esta é a caixa postal do Augustus Waters", ele disse, a voz de clarim pela qual eu tinha me apaixonado. "Deixe uma mensagem." E o
bipe. O silêncio na linha era muito horripilante. Eu só queria voltar com ele para aquela terceira dimensão secreta e pós-terrestre que visitávamos quando falávamos ao telefone. Esperei por aquele sentimento, mas não veio: o silêncio na linha não me trouxe nenhum conforto, e, por fim, desliguei.
Peguei meu laptop, que estava debaixo da cama, apertei o botão de ligar e fui direto no perfil dele, onde as mensagens de pêsames já inundavam o mural. A mais recente dizia:

Eu te amo, irmão. Te vejo do outro lado. 

…Escrita por alguém de quem eu nunca tinha ouvido falar. Na verdade, quase todos os posts no mural dele, que chegavam quase na mesma velocidade que eu levava para acabar de ler cada um, foram escritos por pessoas que não conheci e das quais ele nunca tinha falado,
pessoas que estavam exaltando as diversas virtudes dele agora, depois de
morto, mesmo eu tendo certeza de que não viam o Gus havia vários meses
e nem tinham feito qualquer esforço para visitá-lo. Fiquei tentando
imaginar se meu mural ficaria assim quando eu morresse, ou se eu já tinha
ficado longe da escola e da vida tempo suficiente para escapar da
memorialização generalizada. Continuei lendo.

Já sinto saudade de você, irmão. 
Eu te amo, Augustus. 
Deus te abençoe e te guarde. 
Você vai viver para sempre em nossos corações, grande.

(Essa, em particular, me irritou, porque implicava a imortalidade daqueles que ficaram para trás: você vai viver para sempre na minha memória, porque eu vou viver para sempre! EU SOU SEU DEUS AGORA, GAROTO MORTO! EU POSSUO VOCÊ! Achar que você não vai morrer é, também, mais um efeito colateral de se estar morrendo.)

Você sempre foi um amigo tão legal que sinto muito por não ter te visto mais depois que saiu da escola, irmão. Aposto que já está batendo uma bola no paraíso.

Imaginei qual seria a análise do Augustus Waters àquele comentário.
Se estou jogando basquete no paraíso, isso implica a existência física de um paraíso contendo bolas de basquete físicas? Quem faz as bolas de basquete em questão? Existem almas menos afortunadas no paraíso que trabalham numa fábrica de bolas de basquete celestial para que eu possa jogar? Ou será que foi um Deus onipotente que criou as bolas de basquete a partir do vácuo no espaço? Este paraíso fica localizado em algum tipo de universo não observável no qual as leis da física não se aplicam? Caso isso seja verdade, por que raios eu estaria jogando basquete quando poderia estar voando, lendo, admirando pessoas bonitas ou fazendo qualquer outra coisa de que realmente gosto? É quase como se o modo como você imagina meu "eu" morto dissesse mais sobre você do que sobre a pessoa que eu era ou sobre o que quer que eu seja agora.


* * *


Os pais dele ligaram por volta do meio-dia para dizer que o enterro estava marcado para dali a cinco dias, no sábado. Imaginei uma igreja cheia de pessoas que achavam que ele gostava de basquete e quis vomitar, mas sabia que precisava ir, já que teria de falar, e tudo mais. Quando desliguei o telefone, voltei a ler o mural:

Acabei de saber que o Gus Waters morreu depois de uma longa batalha contra o câncer. 
Descanse em paz, cara. 

Eu sabia que aquelas pessoas estavam sinceramente tristes e que eu
não estava com raiva delas de verdade. Estava com raiva era do universo. Mesmo assim, aquilo me deixou furiosa: você ganha todos esses amigos justo quando não precisa mais. Escrevi um comentário àquele post:

Nós vivemos num universo dedicado à criação e à erradicação da consciência. Augustus Waters não morreu depois de uma longa batalha contra o câncer. Ele morreu depois de uma longa batalha contra a consciência humana, uma vítima — como você será — da necessidade do universo de fazer e desfazer tudo o que é possível.

Postei aquilo e esperei que alguém respondesse, atualizando a página várias vezes. Nada. Meu comentário se perdeu na nevasca dos novos posts.
Todo mundo ia sentir muita falta dele. Todos estavam rezando pela família dele. Eu me lembrei da carta do Van Houten: A escrita não ressuscita. Ela enterra.


* * *


Depois de um tempo, fui para a sala de estar a fim de me sentar com meus pais e ver TV. Não sabia dizer que programa era aquele, mas, num determinado momento, minha mãe disse:
— Hazel, há alguma coisa que possamos fazer por você? — Só balancei a cabeça. E comecei a chorar de novo. — O que podemos fazer? — ela insistiu.
Eu dei de ombros.
Mas ela continuou perguntando, como se houvesse algo que pudesse fazer, até que, por fim, eu meio que me arrastei pelo sofá para o colo dela, e meu pai chegou mais para perto e segurou minhas pernas com firmeza.
Eu abracei minha mãe pela cintura e eles ficaram me segurando horas enquanto a maré se avolumava sobre mim.

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