quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Catorze dias depois

SINAIS DE RISCO DE SUICÍDIO, o Coronel e eu achamos na internet:
- Ter histórico de tentativas de suicídio
- Ameaçar se matar verbalmente
- Desfazer-se de objetos estimados
- Buscar e discutir formas de se matar
- Exprimir desesperança a respeito de si mesmo ou do mundo
- Escrever, falar, ler e desenhar coisas que tenham por tema a morte e a depressão
- Sugerir que não sentiriam sua falta em caso de morte
- Machucar o próprio corpo
- Ter perdido recentemente um amigo ou um ente familiar por doença ou suicídio
- Piorar o desempenho acadêmico súbita e drasticamente
- Ter distúrbios alimentares, insônia, excesso de sono, dores de cabeça crônicas
- Usar (ou abusar) de substâncias que alteram a percepção
- Não demonstrar interesse por sexo, hobbies e outras atividades apreciadas anteriormente.
Alasca apresentava dois desses sinais de risco. Tinha perdido a mãe, embora não muito recentemente. E seus porres, sempre constantes, decerto tinham se agravado em seu último mês de vida. Ela falava em morrer, mas sempre parecia estar brincando, pelo menos em parte.
— Eu faço piada sobre isso o tempo todo, — o Coronel disse. — Semana passada, falei que ia me enforcar com a gravata. Mas não vou me matar. Então essa não conta. Ela não se desfez de nada e, com certeza, não perdeu o interesse por sexo. A pessoa tem de gostar muito de sexo para querer beijar um magricela como você.
— Que engraçado, — eu disse.
— Eu sei. Meu Deus, sou um gênio. As notas dela eram boas. E também não me lembro de ela falar em suicídio.
— Teve uma vez, lembra? Sobre os cigarros? ‘Vocês fumam para saborear. Eu fumo para morrer.’
— Isso foi uma piada.
Mas, incitado pelo Coronel, talvez querendo lhe mostrar que eu me lembrava da Alasca tal como ela realmente era e não apenas como eu queria que fosse, mencionei as vezes em que ela fora cruel e mal-humorada, quando não quisera responder às perguntas com comoquandopor quequem e o quê.
— Às vezes ela ficava tão zangada! — pensei em voz alta.
— O quê? E eu não fico? — o Coronel retorquiu. — Eu fico zangado o tempo todo, Gordo. E você também não tem sido um poço de serenidade, mas isso não significa que você vai se matar. Ou vai?
— Não, — eu disse. E talvez fosse apenas porque a Alasca não conseguia pisar no freio e eu no acelerador. Talvez ela possuísse um tipo estranho de coragem que me faltava, mas não.
— Fico feliz em ouvir isso. Mas é. Ela tinha seus altos e baixos – do fogo e do enxofre à fumaça e às cinzas. Mas, pelo menos este ano, isso foi em parte por causa da Marya. Olha só, Gordo, ela obviamente não estava pensando em se matar quando beijou você. Depois disso, ela dormiu até o telefone tocar. Então deve ter resolvido se matar em algum momento entre o telefonema e a batida. Ou foi um acidente.
— Mas por que se afastar dez quilômetros do campus para se matar? — perguntei.
Ele suspirou e balançou a cabeça.
— Ela gostava de um mistério. Talvez quisesse que fosse assim. — Eu ri, e o Coronel disse: — O que foi?
— Estava pensando: Por que alguém se choca de frente contra um carro de polícia com a sirene ligada?, então pensei: Bem, ela odiava as figuras de autoridade.
O Coronel riu.
— Olha só. O Gordo fez uma piadinha!
Foi quase natural. A distância entre mim e o ocorrido pareceu evaporar, e eu me vi novamente no ginásio, ouvindo a notícia pela primeira vez, as lágrimas do Águia pingando em sua calça. Olhei para o Coronel e pensei em todo o tempo que tínhamos perdido naquele sofá de espuma nas últimas duas semanas — e em tudo o que ela tinha estragado. Irritado demais para chorar, eu disse:
— Isso só está me fazendo odiá-la. Não quero odiá-la. Para que continuar com isso, se vou me sentir assim? — Ela ainda se negava a responder aos “comos” e aos "por quês”. Ainda teimava em se envolver numa aura de mistério.
Inclinei-me para a frente, a cabeça entre os joelhos, e o Coronel colocou a mão em minhas costas, logo abaixo da nuca.
— Sempre há uma resposta, Gordo. — Soprou o ar com força por entre os lábios encrespados, e pude ouvir o tremor de raiva em sua voz enquanto ele repetia: — Sempre há uma resposta. Só precisamos ser espertos. Vimos na internet que o suicídio geralmente envolve planos bem-elaborados. Então, obviamente, ela não se suicidou. — Senti-me envergonhado por ainda estar em frangalhos depois de duas semanas enquanto o Coronel tomava seu remédio estoicamente. Aprumei as costas.
— Tudo bem, — respondi. — Então não foi suicídio.
— Mas, por outro lado, também não faz sentido ter sido acidente — o Coronel disse.
Eu ri.
— Estávamos fazendo grande progresso.
Fomos interrompidos por Holly Moser, a veterana que eu conhecia principalmente porque tê-la visto nua em seus autorretratos durante o feriado de Ação De Graças com Alasca. Holly ficava com os Guerreiros de Dia de semana, o que explicava o fato de eu ter trocado apenas duas palavras com ela em toda minha vida. Mesmo assim, ela entrou sem bater e disse que tivera um sinal místico da presença de Alasca.
— Eu estava na Casa do Waffle e, de repente, todas as luzes se apagaram, exceto a lâmpada acima da minha mesa, que começou a piscar. A lâmpada ficou acessa por um tempo, depois se apagou, depois se acendeu, tipo, por uns dois segundos, depois se apagou. Foi então que eu percebi que era a Alasca. Acho que ela estava tentando se comunicar comigo com código Morse. Mas, tipo, eu não conheço o código Morse. Ela provavelmente não sabia disso. Que seja. Achei que vocês gostariam de saber.
— Obrigado, — eu disse, curto e grosso. Ela ficou ali parada por um tempo, olhando para nós, a boca aberta como se fosse falar mais alguma coisa, e o Coronel a encarou com os olhos semicerrados, o maxilar projetado para fora, mal conseguindo conter sua raiva. Eu sabia o que ele estava sentindo: eu também não acreditava em fantasmas que se comunicavam em código Morse com pessoas de quem eles não gostavam. E eu odiava pensar que Alasca tranquilizaria outra pessoa além de mim.
— Meu Deus, pessoas assim deveriam ser proibidas de viver, — ele disse depois que ela saiu.
— Isso foi bem idiota.
— Não é só idiota, Gordo. Como se a Alasca fosse falar com a Holly Moser! Santo Deus! Odeio essa gente que finge estar triste. Vaca idiota.
Quase lhe disse que Alasca não teria gostado de ouvir uma mulher sendo chamada de vaca, mas era inútil discutir com o Coronel.

Nenhum comentário:

Postar um comentário