quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Cento e dez dias antes

ACOMPANHAR AS AULAS acabou sendo mais fácil do que eu esperava. Minha tendência natural a passar a maior parte do tempo no quarto, lendo, me deu uma vantagem sobre a média dos alunos de Culver Creek. Na terceira semana de aula, muitos já tinham ficados queimados de sol, morenos e trigueiros como um bufrito, devido as longas conversas no gramado descoberto durante os períodos livres. Eu nem mesmo estava rosado: eu estudava.
E também prestava atenção às aulas, mas, naquela manhã de quarta-feira, quando o Sr. Hyde começou a dizer que, para os budistas, todas as coisas estavam interligadas, eu me peguei olhando pela janela. Estava observando o morro arborizado e em suave declive para além do lago. E, vistas dali, da sala do Sr. Hyde, as coisas realmente pareciam interligadas: as árvores pareciam vestir o morro, e, assim como eu jamais pensaria em reparar num determinado fio de algodão da camiseta regata cor de laranja e esplendorosamente apertada que Alasca estava usando, também não seria capaz de discernir as árvores da floresta ˗ tudo fora tecido de maneira tão intrincada que não fazia sentido pensar nas árvores sem pensar no morro. Então ouvi meu nome e soube que estava encrencado.
— Sr. Halter, — disse o Velho. — Estou aqui forçando meus pulmões em benefício da sua instrução. E, no entanto, algo lá fora parece ter chamado sua atenção de uma maneira que não fui capaz de fazer. Por favor, me diga: o que descobriu de tão interessante lá fora?
Agora eu é que sentia sem fôlego, a classe inteira olhando para mim, dando graças a Deus por não estarem em meu lugar. O Sr. Hyde já o tinha feito três vezes, expulsar da sala quem não prestava atenção ou passava bilhetinhos.
— Bem, é que eu estava olhando pela janela, sabe, olhando para o morro e estava pensando que, bem, as árvores e a floresta, como o senhor estava dizendo antes...
O Velho, que obviamente não tolerava digressões em voz alta, me interrompeu.
— Vou pedir ao senhor que se retire da sala, Sr. Halter, para que possa ir até lá e descobrir a relação entre as bem-árvores e a sabe-floresta. E, amanhã, quando estiver pronto para levar esta aula a sério, será bem-vindo.
Continuei sentado, a caneta parada na mão, o caderno aberto, o rosto fogueado, o maxilar projetado para a frente, um velho truque para quando eu não queria parecer triste ou amedrontado. Duas fileiras atrás de mim, ouvi uma cadeira se arrastar, olhei para trás e vi Alasca de pé, atirando a mochila por cima do ombro.
— Desculpa, mas isso é ridículo. Não pode simplesmente expulsá-lo de sala. O senhor fica aí falando nesse tom monótono durante uma hora todos os dias, e não temos o direito de dar uma espiada pela janela?
O Velho olhou para Alasca como se fosse um touro diante de um toureiro, depois levou a mão ao rosto murcho e coçou lentamente a barba por fazer.
— Durante cinquenta minutos por dia, cinco dias por semana, vocês seguirão as minhas regras. Ou serão reprovados. A escolha é de vocês. Saiam os dois.
Enfiei o caderno na mochila e saí, humilhado. Quando a porta se fechou atrás de mim, senti uma batidinha no ombro esquerdo. Virei para olhar, mas não encontrei ninguém. Então virei para o outro lado, e Alasca estava sorrindo para mim, a pele entre os olhos e as têmporas encrespada como os raios de uma estrela.
— É o truque mais velho do universo, — ela disse, — mas todos caem.
Tentei sorrir, mas não conseguia parar de pensar no Sr. Hyde. Aquilo era pior do que o Episódio da Fita Adesiva, porque eu já sabia que os Kevin Richman desse mundo não gostavam de mim. Mas meus professores sempre foram membros de carteirinha do Fã-Clube de Miles Halter.
— Falei que ele era um babaca, — ela disse.
— Ainda acho que ele é um gênio. Ele estava certo. Eu não estava prestando atenção.
— Tudo bem, mas ele não precisava ter sido tão estúpido. Como se tivesse de humilhar os outros para mostrar poder?! Além do mais, os verdadeiros gênios são os artistas: Yeats, Picasso, García Márquez ˗ gênios. Sr. Hyde ˗ velho amargo.
Ela disse que íamos procurar trevos de quatro folhas até a aula acabar e que, então, fumaríamos com o Coronel e o Takumi, “que eram ambos”, acrescentou, “tremendos idiotas por não terem marchado para fora de sala junto conosco.”
Quando Alasca Young está sentada com as pernas cruzadas num frágil canteiro de trevos verdes, inclinando-se para pegar os de quatro folhas e deixando ver claramente a pele branca de seu volumoso decote, é um fato inegável da fisiologia humana que se torna impossível de ajudá-la. Eu já tinha arranjado problemas demais por olhar para onde não devia, mesmo assim...
Depois de passar quase dois minutos vasculhando o canteiro com as unhas longas e sujas, Alasca encontrou um trevo com três folhas normais e uma quarta minúscula e se voltou para mim, mal me dando tempo de desviar os olhos.
— Você obviamente não se esforçou para encontrar o trevo, seu tarado, — ela disse, ironicamente. — Mesmo assim, eu lhe daria este aqui. Só que sorte é coisa de otário. — Ela apertou o folíolo subdesenvolvido entre as unhas do polegar e do indicador e o arrancou. — Pronto, — ela disse para o trevo depois de jogá-lo no chão. — Agora você não é mais uma anomalia genética.
— Hmm, obrigado, — eu disse. O sino tocou. Takumi e Coronel foram os primeiros a sair da sala. Alasca olhou com raiva para eles.
— Que foi? — perguntou o Coronel. Mas ela simplesmente revirou os olhos e começou a andar. Nós a seguimos em silêncio, cruzando o gramado, depois o campo de futebol. Entramos no bosque disfarçadamente, seguindo a trilha quase invisível ao redor do lago ate chegarmos a uma estrada de terra. O Coronel correu para alcançar Alasca, e eles começaram a discutir tão baixinho que eu não pude discernir suas palavras, apenas um tom mútuo de irritação, então perguntei para o Takumi aonde estávamos indo.
— A estrada acaba num celeiro, — ele disse. — Talvez estejamos indo para lá. Ou para o Buraco do Fumo, é mais provável. Vamos ver.
Ali de perto, o bosque tornava-se algo inteiramente diferente do que se via da sala do Sr. Hyde. O chão estava coberto por uma grossa camada de galhos quebrados, folhas de pinheiro em decomposição e arbustos verdes espinhosos. O caminho serpeava entre pinheiros altos e esguios, as folhas hirsutas fornecendo uma malha de sombras que protegia do forte calor do sol. E os carvalhos e os bordos mais baixos, que vistos da sala do Sr. Hyde se ocultavam sob os majestosos pinheiros, mostravam sinais do outono-que-ainda-não-se-fizera-sentir-na-temperatura: as folhas verdes começavam a murchar.
Topamos com uma pontezinha deplorável ˗ tábuas grossas de madeira compensada sobre uma base de concreto ˗ que atravessava o Culver Creek, o regato que serpeava pelas cercanias do campus. Do outro lado da ponte, havia uma pequena trilha que descia bruscamente. Não chegava a ser uma trilha, era mais como uma série de indícios ˗ um galho quebrado, um pedaço de relva pisada ˗ de que alguém tinha passado por ali. Seguindo em fila indiana, Alasca, o Coronel e Takumi, cada um por sua vez, seguraram um pesado galho de bordo, de modo a abrir passagem para o que vinha atrás, até que eu, o último da fila, o larguei e o vi retornar para seu lugar de origem num movimento brusco. E lá, embaixo da ponte, um oásis. Uma laje de concreto, de um metro de largura por três de comprimento, com cadeiras azuis de plástico, roubadas de alguma sala de aula havia muito tempo. Refrescado pelo regato e pela sombra da ponte, aquela era a primeira vez em semanas que eu não sentia calor.
O Coronel distribuiu os cigarros. Takumi não quis. Acendemos os nossos.
— Só acho que ele não tem o direito de nos tratar com tanta arrogância, — Alasca disse, continuando a conversa com o Coronel. — O Gordo não vai mais olhar pela janela, e eu não vou mais me exaltar por causa disso, mas ele é um péssimo professor, e vocês não vão me convencer do contrário.
— Está bem, — disse o Coronel. — Só não faça outra cena. Santo Deus! Você quase matou o velho!
— É verdade, você só tem a perder deixando o Hyde zangado, — disse Takumi. — Ele vai comer sua cabeça, depois vai cagar e mijar em cima. O que, por sinal, é o que devemos fazer com quem dedurou a Marya. Ouviram alguma novidade?
— Deve ter sido um dos Guerreiros de Dia de Semana, — Alasca disse. — Mas, pelo visto, estão pensando que foi o Coronel. Vai saber. Talvez o Águia tenha dado sorte. Ela foi burra; foi pega; foi expulsa; fim da linha. É isso o que acontece com quem é burro e se deixa apanhar. — Alasca fez um “O” com os lábios, mexendo a boca como um peixinho dourado, tentando soprar anéis de fumaça, sem sucesso.
— Poxa! — disse Takumi, — se algum dia eu for expulso, me lembre de ir à forra sozinho, já que não posso contar com você.
— Não seja ridículo, — ela respondeu, sem se zangar, apenas afastando a ideia. — Só não entendo por que você fica tão obcecado, querendo desvendar tudo o que acontece por aqui, como se tivéssemos de solucionar todos os mistérios. Deus do céu! Já passou. Takumi, você precisa parar de roubar os problemas dos outros e arranjar seus próprios problemas. — Takumi recomeçou, mas Alasca fez um gesto como se quisesse encerrar o assunto.
Eu não disse nada ˗ não conhecia Marya e, além do mais, “ouvir em silêncio” era meu modo de conviver em sociedade.
— Que seja, — Alasca me disse. — Não gostei do jeito como ele tratou você. Deu vontade de chorar. Quase dei um beijinho para ver se passava.
— Pena que não deu, — eu disse, sério, e todos riram.
— Você é uma gracinha, — ela disse. Senti a intensidade de seus olhos em mim e desviei o olhar nervosamente. — Pena que gosto do meu namorado. — Fiquei olhando para o emaranhado de raízes na margem do regato, tentando fazer cara de quem não tinha acabado de ser chamado de gracinha.
Takumi também não acreditou. Veio até mim, bagunçou meu cabelo e começou a fazer um rap para a Alasca:
— Yeah! O Gordo é uma graça./ Mas é boa-praça./ Não faz arruaça./ E o Jake... Droga. Droga! Quase consegui quatro rimas com 'aça'! Pensei em carpaça, mas isso não é palavra.
Alasca riu.
— Só por isso já não estou mais zangada com você. Rap é tão sexy! Gordo, sabia que estamos na presença do melhor MC do Alabama?
— Hmm, não.
— Faz uma batida, Coronel-Catástrofe, — Takumi disse, e eu ri da ideia de que um cara tão baixinho e esquisito como o Coronel pudesse ter um apelido de rap. O Coronel colocou as mãos em concha sobre a boca e começou a fazer ruídos estranhíssimos, tentando fazer uma batida, imaginei. Puh-chi. Puh-PuhPuh-Chi. Takumi riu.
— Aqui, perto do rio, pediram para eu arrasar./ Se fumaça fosse doce, eu comia até enjoar./ Sou bom, rapaz, se liga./ Meu rap é clássico, à moda antiga./ A batida está mais morta que o caixeiro-viajante./ Às vezes me acusam de ser meio arrogante/ Porque eu falo devagar, EuFaloBemDepressa./ Não gostou, por quê? Sai dessa!
Ele parou, respirou fundo e concluiu.
— Na rima imperfeita, da Emmy DickinSON/ O rap acabou, se liga, meu irmão.
Eu não entendia de rimas, perfeitas ou imperfeitas, mas fiquei impressionado. Takumi recebeu uma salva de palmas. Alasca terminou o cigarro e o atirou no rio.
— Por que você fuma tão depressa? — perguntei.
Ela me olhou e abriu um sorriso largo, e um sorriso assim tão largo em seu rosto estreito talvez lhe desse um ar meio tolo não fosse a inquestionável elegância de seus olhos verdes. Ela sorriu com todo um encantamento de uma criança na noite de Natal e disse:
— Vocês fumam para saborear. Eu fumo para morrer.

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