quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Cento e dezoito dias depois

ENTÃO DESISTIMOS. Finalmente me cansei de perseguir um fantasma que não queria ser descoberto. Talvez tivéssemos falhado, mas alguns mistérios jamais serão desvendados. Eu não a conhecia como desejava e acho que jamais a conheceria. Ela tinha tornado isso impossível para mim. E o suicidente, o acicídio, seria eternamente isso. Só me restava perguntar: Será que contribuí para um destino que você não queria, Alasca, ou simplesmente ajudei você a se autodestruir? Porque são crimes diferentes, e eu não sabia se ficava com raiva dela por ter me tornado cúmplice de um suicídio ou se ficava com raiva de mim mesmo por tê-la deixado ir embora.
Mas nós sabíamos o que podia ser descoberto, e, no processo de descoberta, ela nos aproximou – o Coronel, Takumi e eu, pelo menos. E foi só. Ela não me deixou o suficiente para descobrir o Grande Talvez.
— Tem mais uma coisa que podemos fazer, — o Coronel disse enquanto jogávamos videogame com o som desligado – só nós dois, como nos primeiros dias da Investigação.
— Não podemos fazer mais nada.
— Quero passar de carro pelo local, — ele disse. — Como ela fez.
Não podíamos arriscar sair do campus no meio da madrugada como ela tinha feito, por isso saímos cerca de doze horas mais cedo, às 3h da tarde, com o Coronel dirigindo o utilitário esportivo do Takumi. Tínhamos convidado a Lara e o Takumi, mas eles estavam cansados de perseguir fantasmas, e, além do mais, as provas finais estavam chegando.
A tarde estava radiante. O sol fustigava o asfalto fazendo com que as faixas da estrada tremessem com o calor. Seguimos a Rodovia 119 por cerca de um quilômetro e meio, depois pegamos a I-65 no sentido norte, a caminho da cena do acidente e de Vine Station.
O Coronel dirigia em grande velocidade, e nós ficamos em silêncio, fitando a estrada. Tentei imaginar o que ela estaria pensando, novamente tentando enxergar através do tempo e do espaço para entrar em sua cabeça por um único momento. Uma ambulância com as luzes e a sirene acesas passou depressa por nós, no sentido contrário, na direção da escola, e, por um instante, fiquei apreensivo e pensei: Pode ser alguém que eu conheça. Quase desejei que fosse alguém conhecido para dar nova forma e profundidade à tristeza que eu ainda sentia.
O silêncio foi rompido.
— Tinha vezes que eu gostava, — eu disse. — Gostava do fato de ela estar morta.
— Como assim? A sensação era boa?
— Não. Sei lá. A sensação era... pura.
— É, — ele disse, abrindo mão de sua costumeira eloquência. — É. Eu também. Acho que é normal, deve ser normal.
Sempre me causava espanto perceber que eu não era a única pessoa no mundo que pensava e sentia essas coisas estranhas e horrorosas.
Oito quilômetros ao norte da escola, o Coronel passou para a pista da esquerda da interestadual e começou a acelerar. Cerrei os dentes, e, então, à nossa frente, os caquinhos de vidro brilharam a luz do sol como se a estrada estivesse incrustada de jóias. Era ali. Ele ainda estava acelerando.
Pensei: Não seria um jeito ruim de morrer.
Pensei: Rápida e diretamente. Talvez ela tivesse decidido no último segundo.
E, PUF, atravessamos o momento de sua morte. Estamos passando por onde ela não passou, pelo asfalto que ela nunca viu, e não estamos mortos. Não estamos mortos! Estamos respirando, chorando e, agora, diminuindo a velocidade e voltando para a pista da direita.
Pegamos o retorno seguinte, sem dizer nada. Quando fomos trocar de motorista, passamos pela frente do carro e nos encontramos. Eu o abracei, meus punhos cerrados em suas costas. Ele me envolveu com seus braços curtos e me apertou com força, e eu senti seu peito arfar enquanto percebíamos repetidas vezes que estávamos vivos. A compreensão chegava em ondas. Nós nos abraçamos e choramos, e eu pensei: Meu Deus, que cena estamos fazendo, mas isso não importava para quem tinha acabado de perceber, depois de tanto tempo, que ainda estava vivo.

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