quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Cento e dois dias depois

MEU PAI INTERPRETOU o Dr. William Morse ao telefone, mas o homem que iria interpretá-lo na vida real se chamava Maxx com dois x’s, se bem que seu nome verdadeiro era Stan, e, no Dia do Palestrante, seu nome seria Dr. William Morse, é claro. Ela era uma crise de identidade ambulante, um stripper com mais apelidos que um agente secreto da Cia.
As quatro primeiras “agências” para as quais o Coronel telefonou recusaram o trabalho. Foi somente quando chegamos ao D da seção de “entretenimento” das Páginas Amarelas que encontramos a Despedida de Solteiro para Baixinhos. O dono da empresa gostou bastante da ideia, mas disse: — O Maxx vai amar isso. Porém nada de nudez. Não na frente das crianças. — Concordamos - com certa relutância.
Para garantir que nenhum de nós seria expulso, Takumi e eu coletamos cinco dólares de todos os calouros de Culver Creek para cobrir as despesas do Dr. William Morse, pois duvidávamos que o Águia o pagasse depois de testemunhas, bem, a palestra. Paguei a parte do Coronel.
— Sinto como se tivesse merecido sua caridade, — ele disse, apontando para os cadernos de espiral cheios de planos.
Durante as aulas daquela manhã, não consegui pensar em outra coisa. Todos os calouros da escola sabiam do trote fazia duas semanas, mas, até então, nenhum boato tinha vazado. Mas a Creek era um poço de fofoca – principalmente entre os Guerreiros de Dia de Semana, e, se alguém contasse para um amigo que contasse para um amigo que contasse para o Águia, a coisa toda ia desmoronar.
O ethos do não-dedure-o-colega passou no teste com louvor, mas, quando Maxx/Stan/Dr. Morse não apareceu às 11h50 daquela manhã, pensei que o Coronel fosse surtar. Ele se sentou no para-choque de um carro no estacionamento dos alunos, baixou a cabeça e correu os dedos pela cabeleira escura e desalinhada, como se estivesse tentando encontrar alguma coisa ali dentro. Maxx prometera chegar por volta das 11h40, vinte minutos antes da abertura oficial do Dia do Palestrante, tempo suficiente para aprender suas falas e tudo o mais. Fiquei ao lado do Coronel, preocupado, porém quieto. E esperei. Tínhamos pedido ao Takumi que contatasse a “agência” e descobrisse o paradeiro do “artista”.
— A agência, — Takumi disse, — falou que o artista está a caminho.
— A caminho? — o Coronel disse, mexendo nos cabelos com renovado vigor. — A caminho? Ele já está atrasado.
— Disseram que ele estava... — então nossos temores se dissiparam quando uma minivan azul dobrou a esquina do estacionamento, guiada por um homem de terno.
— É bom que seja o Maxx, — o Coronel disse enquanto o motorista estacionava o carro. E correu até a porta da frente.
— Eu sou o Maxx, — o cara disse quando abriu a porta.
— Eu sou um representante sem nome e sem rosto da turma de calouros, — o Coronel respondeu, apertando a mão de Maxx. Ele devia estar na casa dos trinta, tinha a pele bronzeada e os ombros largos, com um maxilar forte e um cavanhaque escuro e bem aparado.
Demos uma cópia do discurso para o Maxx, e ele o leu rapidamente.
— Alguma dúvida? — perguntei.
— Bem, sim. Dada a natureza do evento, acho que vocês deveriam me pagar adiantado.
Ele me pareceu bastante articulado, quase como um acadêmico, e eu me senti confiante, como se Alasca tivesse colocado em nosso caminho o melhor stripper masculino da região do Alabama.
Takumi abriu o porta-malas de seu utilitário esportivo e pegou um saco de compras de papel com 320 dolares.
— Aqui está, Maxx, — ele disse. — Certo, o Gordo aqui vai se sentar lá dentro com você, porque você é amigo do pai dele. Está tudo escrito. Mas, bem, quando isso terminar, se você for interrogado, agradeceríamos se fizesse a gentileza de dizer que foi contratado pela turma dos calouros numa ligação em conferência, porque não queremos que o Gordo aqui se meta em confusão.
Ele riu.
— Claro, claro. Aceitei este trabalho porque sabia que seria hilário. Queria ter pensado nisso quando estava na escola.
Quando entrei no ginásio – Maxx/ Dr. William Morse ao meu lado, Takumi e o Coronel bem atrás -, sabia que a probabilidade de eu ser pego era maior do que a de qualquer um. Mas tinha lido o regulamento de Culver Creek várias vezes naquelas últimas semanas e me lembrava das duas linhas de defesa para o caso de eu me meter em confusão: (1) Tecnicamente, não existia nenhuma regra que proibisse o aluno de pagar um stripper para dançar na frente da escola. (2) Não teriam como provar que eu tinha sido responsável pelo incidente. Só teriam como provar que eu trouxe uma pessoa para o campus, presumidamente um especialista em sexualidade transgressiva adolescente, mas acabou sendo um verdadeiro transgressor sexual.
Sentei-me com o Dr. William Morse no meio da primeira fila da arquibancada. Alguns alunos da nona série estavam sentados atrás de nós, mas, quando o Coronel apareceu com a Lara, disse-lhes educadamente:
— Obrigado por guardarem nossos assentos, — e os conduziu para longe.
Como fora combinado, Takumi estava no depósito esportivo do segundo andar, conectando seu aparelho de som aos alto-falantes do ginásio. Eu me virei para o Dr. Morse e disse:
— Devemos olhar um para o outro afetuosamente e conversar como se você fosse amigo dos meus pais.
Ele sorriu e assentiu com a cabeça.
— Seu pai é um grande homem. E sua mãe – tão bonita. — Revirei os olhos, um pouco enojado. Mas gostava do nosso amigo stripper.
O Águia chegou ao meio-dia em ponto, cumprimentou o palestrante dos veteranos – um ex-secretário de justiça do estado do Alabama -, depois veio falar com o Dr. Morse, que se levantou com aprumo e se inclinou ligeiramente enquanto apertava a mão do Águia – talvez formal demais. O Águia disse:
— É um grande prazer ter o senhor aqui.
E Maxx respondeu:
— Obrigado. Espero não desapontá-lo.
Eu não tinha medo de ser expulso. Também não tinha medo de causar a expulsão do Coronel, embora talvez devesse. Eu tinha medo que o trote não desse certo, por não ter sido planejado pela Alasca. Talvez os trotes dignos dela só funcionassem com ela.
O Águia assomou por trás do atril.
— Hoje é um dia histórico para Culver Creek. Nosso fundador, Philip Garden, quis que vocês, alunos, e nós, professores, tirássemos um dia por ano para nos beneficiarmos da sabedoria de vozes de fora da escola. Por esse motivo, nós nos reunimos aqui todo ano para aprender com eles, para ver o mundo pelos olhos do outro. Hoje, o palestrante dos calouros é Dr. William Morse, professor de psicologia pela Universidade da Flórida e respeitado acadêmico. Está aqui para nos falar sobre a sexualidade adolescente, um assunto que certamente será do interesse de vocês. Então, por favor, uma salva de palmas para o Dr. Morse.
Aplaudimos. Meu coração batia no peito como se também quisesse aplaudir. Quando Maxx se encaminhou para o atril, Lara inclinou-se para mim e sussurrou:
— Ele é bonitão.
— Obrigado Sr. Starnes. — Maxx sorriu e meneou a cabeça na direção do Águia depois endireitou os papéis e os colocou sobre o atril. Eu mesmo quase acreditei que ele era um professor de psicologia. Imaginei se ele seria um ator tentando complementar sua renda.
Maxx leu diretamente da folha, sem olhar para a plateia, mas leu com o tom de voz confiante e casual de um acadêmico ligeiramente arrogante.
— Estou aqui para lhes falar sobre o fascinante tema da sexualidade adolescente. Meus estudos limitam-se ao campo da linguística sexual, mais especificamente ao modo como os adolescentes falam sobre sexo e questões afins. Então, por exemplo, estou interessado em saber por que a palavra ‘braço’ não faz vocês rirem, ao passo que a palavra ‘vagina’ faz. — Algumas pessoas riram nervosamente na plateia. — O modo como os jovens se referem aos corpos uns dos outros diz muito sobre a nossa sociedade. No mundo de hoje, é muito mais comum que os meninos objetifiquem o corpo das meninas do que o contrario. Eles comentam entre si que determinada menina tem belos peitões, ao passo que elas costumam dizer apenas que este ou aquele menino é fofo, um termo que descreve tanto características físicas quanto emocionais. Com isso, as meninas são transformadas em meros objetos, enquanto os meninos são vistos por elas como pessoas inteiras...
Então Lara ficou de pé e, com seu sotaque suave e inocente, interrompeu o Dr. Morse.
— Você é tão lindo! Por que não cala a boca e tira a roupa?!
Os alunos riram, mas os professores se viraram e olharam para ela, espantados e emudecidos. Ela se sentou.
— Qual seu nome, filha?
— Lara, — ela disse.
— Agora, escute aqui, Lara, — Maxx disse, voltando-se para a folha, tentando se lembrar da próxima fala, — o que temos aqui é um estudo de caso muito interessante – uma mulher está objetificando um homem, no caso eu. Isso é tão incomum que eu só posso supor que seja uma piada.
Lara se levantou novamente e gritou:
— Estou falando sério! Tira a roupa!
Ele olhou para a folha, nervoso, depois se virou para nós, sorrindo.
— Certo, acho que é importante subverter o paradigma patriarcal, e essa é uma maneira de fazer isso. Está bem, — ele disse, dando um passo para a esquerda e se afastando do atril. Depois gritou alto suficiente para Takumi ouví-lo no andar de cima: — Isso é por Alasca Young!
Quando o baixo rápido e ritmado de “Get Off” do Prince começou a tocar nos auto-falantes, o Dr. William Morse agarrou a perna da calça com uma das mãos e a lapela do paletó com a outra. O velcro se abriu e rasgou a fantasia de palco, mostrando o Maxx com dois x’s, um homem incrivelmente musculoso com o abdome definido e fortes músculos peitorais. Ele ficou ali na nossa frente, sorrindo, apenas de sunga, uma sunga de couro preto, quase uma cueca. Eca!
Com os pés bem posicionados, Maxx começou a gingar os braços no ritmo da música, e a plateia explodiu em gargalhadas, aplaudindo contínua e estrepitosamente – de longe a maior ovação da história do Dia do Palestrante. O Águia se levantou num piscar de olhos, e Maxx parou de dançar, simplesmente contraindo os músculos peitorais para que sacolejassem com a música. Então, o Águia, sem rir, mas mordendo os lábios como quem se esforça para não abrir um sorriso, indicou com o polegar que estava na hora de Maxx ir embora, e ele obedeceu.
Meus olhos seguiram Maxx enquanto ele saía do ginásio e deram com o Takumi no vão da porta, os punhos erguidos em triunfo, antes de ele correr para o andar de cima para desligar o som. Fiquei feliz por ele ter podido ver pelo menos um pouco do espetáculo.
Takumi teve bastante tempo para desmontar o equipamento, pois as risadas e o murmurinho se estenderam por vários minutos enquanto o Águia repetia:
— Tudo bem. Tudo bem. Vamos nos acalmar. Gente, vamos nos acalmar.
O palestrante dos veteranos fez seu discurso. Depois foi embora. Enquanto saíamos do ginásio, os alunos não calouros se amontoaram em torno de nós, perguntando: “Foram vocês?”, e eu simplesmente sorria e dizia que não, pois não tinha sido nem eu, nem o Coronel, nem o Takumi, nem a Lara, nem Longwell Chase, nem ninguém ali presente. Fora Alasca o tempo todo. A pior parte do trote, Alasca me dissera certa vez, era não poder assumir a culpa. Mas eu podia assumir a culpa no lugar dela. E, enquanto saíamos lentamente do ginásio, eu dizia para todos os que quisessem ouvir: — Não. Não fomos nós. Foi Alasca.
Nós quatro retornamos para o Quarto 43, exultantes com o sucesso da empreitada, convencidos de que a Creek jamais testemunharia um trote parecido, e eu não achei que pudesse estar encrencado até o Águia abrir a porta do nosso quarto e olhar para nós, balançando a cabeça com desdém.
— Sei que foram vocês, — disse o Águia.
Olhamos para ele sem falar nada. Ele costumava blefar. Talvez fosse um blefe.
— Nunca mais façam uma coisa dessas, — ele disse. — Mas, Deus, ‘subverter o paradigma patriarcal’... Parece até que ela escreveu o discurso. —  Sorriu e fechou a porta.

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