quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Cento e nove dias antes

NO JANTAR DO DIA SEGUINTE, o restaurante serviu bolo de carne, um dos raros pratos que não eram fritos e, talvez justamente por isso, o maior fracasso de Maureen – uma coisa fibrosa, boiando em molho, que não tinha aparência de bolo e muito menos gosto de carne. Embora eu não o conhecesse, Alasca aparentemente tinha um carro e se ofereceu para levar o Coronel e eu ao McDonald´s, mas o Coronel estava sem grana, e eu também, pois sustentava sua extravagante obsessão por cigarros.
Então, em vez disso, o Coronel e eu esquentamos bufritos de dois dias – ao contrário das batatas fritas, por exemplo, um bufrito aquecido no micro-ondas não perdia nada de seu sabor e de sua deliciosa superfície crocante. Depois o Coronel insistiu em assistir ao primeiro jogo da Creek na temporada de basquete.
— Basquete no outono? — perguntei ao Coronel. — Não sou especialista no assunto, mas não é futebol americano que se joga nessa época?
— As escolas da liga são pequenas demais para terem times de futebol americano, por isso jogamos basquete no outono. Se bem que, cara, o time de futebol da Culver Creek ia ser uma beleza. Você, com seu corpo franzino, poderiam até começar como atacante. De todo modo, os jogos de basquete são o máximo.
Eu detestava jogos esportivos. Detestava jogos esportivos e todos os que praticavam jogos esportivos, detestava as pessoas que assistiam e detestava as pessoas que não detestavam quem assistia ou pratica jogos esportivos. Na terceira série – último ano em que se podia jogar T-Ball -, minha mãe queria que eu fizesse amigos e me forçou a entrar para o time dos Piratas de Orlando. Fiz amizades, sim, mas foi com um bando de garotos do jardim de infância – o que não me tornou muito popular junto aos meus pares. Como eu pairava acima do resto dos jogadores, quase entrei para o time dos astros daquele ano. O garoto que me venceu, Clay Wurtzel, só tinha um braço. Eu era um terceiranista estranhamente alto com dois braços, e fui derrotado por Clay Wurtzel, do jardim de infância. E não foi porque tive pena do garoto. Clay Wurtzel realmente sabia rebater, ao passo que eu, ás vezes, errava a bola mesmo quando a colocavam em cima de um apoio. Uma das coisas que mais me atraíram para Culver Creek foi o fato de meu pai ter dito que as aulas de educação física não eram obrigatórias.
— Só deixei de lado meu ódio pelos Guerreiros de Dia de Semana e seus tacos de golfe uma única vez, — o Coronel me disse: — Foi quando eles restauraram o ar-condicionado do ginásio para que pudéssemos jogar o bom e velho basquete em Culver Creek. Você não pode perder o primeiro jogo do ano.
Caminhando para o hangar de avião que era nosso ginásio, que eu já tinha visto, mas do qual não quisera me aproximar, o Coronel me explicou a coisa mais importante sobre nosso time de basquete: ele não era lá muito bom. O “astro” do time, disse o Coronel, era um veterano chamado Frank Walsten, que jogava como pivô apesar de só ter um metro e setenta. Ele era famoso no campus por ter maconha, e o Coronel me disse que nos últimos quatros anos Hank não jogara nem sequer uma partida sóbrio.
— Ele gosta de maconha tanto quanto Alasca gosta de sexo, — disse o Coronel. — Estamos falando do cara que uma vez construiu um narguilé usando apenas o cano de uma espingarda de ar comprimido, uma pêra madura e um pôster de vinte por vinte e cinco da Anna Kournikova. Ele não é nenhum gênio, mas temos de admirar sua devoção às drogas.
Depois de Hank, o Coronel disse, a coisa só piorava ate chegar a Wilson Carbod, o segundo pivô, que tinha quase um metro e oitenta.
— Somos tão ruins, — disse o Coronel, — que nem mesmo temos uma mascote. Eu chamo o time de os Nada de Culver Creek.
— Então eles jogam mal? É isso? — perguntei. Não entendia por que alguém iria querer ver seu time perdendo de lavada para o adversário, embora o ar condicionado já fosse um excelente motivo para mim.
— Jogam mal, sim, — o Coronel respondeu. — Mas sempre trucidamos o time de basquete da escola para cegos e surdos. — Pelo visto, o basquete não era uma das prioridades da escola para cegos e surdos do Alabama, por isso sempre terminávamos a temporada com uma vitória.
Quando chegamos, o ginásio estava apinhado de alunos da Culver Creek – reparei, por exemplo, nas três góticas da escola, sentadas na ultima fileira da arquibancada, retocando a pintura dos olhos.
Eu nunca tinha assistido uma partida de basquete em minha outra escola, mas duvidava que a multidão fosse tão variada. Mesmo assim, fiquei surpreso quando ninguém menos que Kevin Richmann se sentou na minha frente, enquanto as animadoras de torcida do time adversário (as cores da escola eram lamentáveis, marrom-lama e amarelo-mijo-desidratado) tentavam levantar o pequeno grupo de torcedores visitantes. Kevin se virou e encarou o Coronel.
Como a maioria dos Guerreiros, Kevin só usava roupa de mauricinho, como se estivesse esperando virar um desses advogados que gostam de jogar golfe. E seus cabelos loiros e bagunçados, curto dos lados, espetados no alto, estavam sempre tão encharcados de gel que pareciam eternamente molhados. Eu não o odiava como o Coronel, claro, porque o Coronel o odiava por princípio, e esse tipo de ódio é muito mais forte do que um simples: “Cara, não gostei de você ter me mumificado e me atirado no lago.” Mesmo assim, tentei encará-lo ameaçadoramente enquanto ele olhava para o Coronel, mas era difícil esquecer que ele tinha visto meu corpo magricela só de cueca samba-canção fazia algumas semanas.
— Você dedurou o Paul e a Marya. Nós retribuímos. Trégua? — Kevin perguntou.
— Eu não dedurei ninguém. O Gordo aqui certamente não dedurou ninguém, mas vocês quiseram descontar nele, não foi? Trégua? Vejamos... vou fazer uma rápida pesquisa. — As animadoras de torcida se sentaram com os pompons grudados no peito, como se estivessem rezando. — Escuta, Gordo, — disse o Coronel. — O que você acha de uma trégua?
— Isso me lembra de quando os alemães exigiram que os Estados Unidos se rendessem na Batalha de Bastogne, — eu disse. — Acho que diria para eles o mesmo que o General McAuliffe disse para os alemães. Tolice.
— Porque você quis matar esse cara, Kevin? Ele é um gênio. Sua trégua é uma tolice.
— Vamos lá, cara. Eu sei que você dedurou os dois. Nós tivemos que defender nosso amigo, mas agora acabou. Vamos botar um fim nesta historia. — Ele parecia bastante sincero, talvez devido á reputação do Coronel como pregador de peças.
— Vamos fazer um acordo. Você escolhe um presidente norte-americano que já morreu. Se o Gordo não souber as ultimas palavras dele, teremos uma trégua. Mas, se eles souberem você vai passar o resto da sua vida lamentando o dia em que urinou no meu tênis.
— isso é ridículo.
— Tudo bem. Nada de trégua. — O Coronel retorquiu.
— Tudo bem. MIllard Fillmore. — Kevin disse. O Coronel olhou depressa para mim, os olhos perguntando. Esse cara foi presidente? Eu apenas sorri.
— Quando estava morrendo, Fillmore sentiu muita fome. Mas o médico não queria alimentar sua febre ou algo assim. Fillmore não parava de falar que queria comer, então o médico deu para ele uma colherzinha de sopa. Sarcástico, Fillmore disse: “A refeição estava deliciosa”, e morreu. Nada de trégua.
Kevin revirou os olhos e se afastou, e me ocorreu que eu poderia ter inventado quaisquer ultimas palavras para Millard Fillmore, e Kevin teria acreditado, contando que eu usasse aquele tom de voz, a confiança do Coronel passando para mim.
— Essa é a primeira vez que você banca o malvado! — O Coronel riu. — É verdade que eu dei um alvo fácil para você. Mesmo assim, parabéns!
Infelizmente para os Nada de Culver Creek, nós não estávamos jogando contra a escola dos cegos e surdos. Estávamos jogando contra uma escola católica do centro Birmingham, um time reforçado com enormes, gigantescos homens macacos com barbas cerradas e uma profunda aversão a oferecer a outra face.
No fim do quarto: 20 a 4.
O Coronel liderava a torcida.
— Pão de milho! — ele gritava.
— Galinha! — o coro respondia.
— Arroz!
— PURÊ!
Então todos juntos: — NO VESTIBULAR, VOCÊS VAO VER!
— Sim! Sim! Sim! — o Coronel gritava.
— VÃO TRABALHAR PARA MIM!
As animadoras do time oposto tentavam responder aos nosso gritos com “O teto, o teto, o teto está ruindo! Cedendo, aos seus desejos, para o inferno estarão indo!” Mas sempre rebatíamos com algo melhor.
— Compras!
— LOJAS!
— DESCONTOS!
— GERENTES!
— VOCES SÃO GRANDES, E NÓS INTELIGENTES!
Quando os visitantes vão arremessar um lance livre em qualquer quadra do país, os fãs fazem barulho, gritando e batendo os pés. Não funciona, porque os jogadores aprendem a ignorar o ruído branco. Em Culver Creek tínhamos uma estratégia bem melhor. No começo, todo mundo gritava e berrava como numa partida normal. Então fazíamos “Shhh!”, e ficávamos em absoluto silêncio. Quando nossos detestados oponentes paravam de quicar a bola e se preparavam para o arremesso, o Coronel se levantava e gritava algo como:
— Pelo amor de Deus, depile as suas costas! — Ou: — Preciso ser salvo. Não podem me oficiar um culto depois do arremesso?
Perto do final do terceiro quarto, o treinador da escola cristã pediu tempo e reclamou do Coronel com o juiz, apontando para ele, furioso. Estávamos perdendo de 56 a 13. O Coronel ficou de pé.
O que? Algum problema comigo?
O treinador gritou: — Você esta incomodando os meus jogadores.
— ERA MINHA INTENÇÃO, SHERLOCK! — o Coronel gritou de volta. O juiz veio e o expulsou do ginásio. Eu o segui.
— Fui expulso de trinta e sete jogos consecutivos, — ele disse.
— Caramba.
— É. Já precisei fazer coisas bem malucas. Uma vez, corri para a quadra quando faltavam apenas onze segundos para o fim do jogo e roubei a bola do outro time. Não foi nada bonito. Mas não posso quebrar a sequência.
O Coronel disparou na minha frente, feliz com a expulsão, e eu corri em seu encalço. Eu queria ser uma dessas pessoas que tem uma sequência a manter, que chamuscam o chão com sua intensidade. Mas agora, pelo menos, eu conhecia pessoas desse tipo, e elas precisavam de mim como um cometa precisa de uma cauda.

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