quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Cento e trinta e seis dias depois

DUAS SEMANAS DEPOISeu ainda não tinha terminado o trabalho final do Velho, e faltavam apenas 24 horas para o fim do semestre. Eu estava voltando de uma prova, uma aguerrida, porém (eu esperava) bem-sucedida batalha com o Pré-Cálculo que me daria o B que eu tanto desejava. Lá fora o tempo estava bastante quente, como ela. Eu me sentia bem. No dia seguinte, meus pais viriam buscar minhas coisas, assistiríamos à cerimônia de formatura, depois voltaríamos para a Flórida. O Coronel voltaria para a casa da mãe para ver a soja crescer, mas eu podia fazer interurbanos, então nos falaríamos bastante. Takumi passaria as férias no Japão, e Lara voltaria para casa novamente numa limusine verde. Eu estava pensando que não era tão ruim não saber onde Alasca estava ou para onde estaria indo naquela noite, quando abri a porta do quarto e vi uma folha de papel dobrado no piso de linóleo. Era um papel de carta verde-limão. Em cima, lia-se em caligrafia:

Da mesa de... Takumi Hikohito
Gordo/ Coronel,
Peço desculpas por não lhes ter contato antes. Não vou ficar para a formatura. Viajo para o Japão amanhã de manhã. Por muito tempo, fiquei furioso com vocês. Fiquei magoado por me deixarem de fora de todas as coisas, então guardei para mim o que eu sabia. No entanto, mesmo quando já não estava furioso, não lhes disse nada, nem sei por quê. O Gordo tinha aquele beijo, eu acho. Eu tinha esse segredo.
Vocês devem ter deduzido, mas a verdade é que eu a vi naquela noite. Tinha ficado acordado até tarde com a Lara e mais algumas pessoas, e estava quase caindo no sono quando ouvi seu choro pela janela dos fundos do meu quarto. Devia ser umas 3h 15 da madrugada. Fui lá fora, e ela estava correndo pelo campo de futebol. Tentei conversar, mas ela estava com pressa. Fazia oito anos que sua mãe tinha morrido. Ela costumava levar flores ao túmulo nos aniversários de morte, mas, naquele ano, tinha esquecido. Estava procurando por flores, mas era cedo demais  estava frio demais. Foi assim que eu descobri sobre o dia 10 de janeiro. Mas continuo sem saber se foi suicídio.
Ela estava tão triste. Eu não sabia o que dizer, não sabia o que fazer. Acho que ela contava comigo para ser a pessoa que sempre diria e faria a coisa certa para ajudá-la, mas não consegui. Pensei que ela estivesse procurando flores. Não sabia que pretendia sair. Ela estava bêbada, bêbada de cair no chão. Não pensei que fosse dirigir ou algo assim. Pensei que fosse chorar até dormir e que fosse visitar o túmulo da mãe no dia seguinte ou algo assim. Ela saiu caminhando, então ouvi o motor de carro. Não sei no que eu estava pensando.
Então acho que eu também a deixei ir. Sinto muito. Sei que vocês a amavam. Era difícil não amá-la.
Takumi

Saí correndo do quarto, como se nunca tivesse fumado um cigarro, como na Noite do Celeiro com o Takumi. Atravessei o círculo dos dormitórios, mas ele tinha ido embora. A cama era puro vinil; a escrivaninha estava vazia; uma moldura de poeira onde o estéreo costumava ficar. Ele tinha ido embora, e eu não pude lhe dizer o que acabara de descobrir: que eu o perdoava, que ela nos perdoava, que tínhamos de perdoar para sobreviver no labirinto. Tantos de nós teríamos de conviver com coisas feitas e deixadas de fazer naquele dia. Coisas que terminaram mal, coisas que pareceram normais na hora, porque não tínhamos como prever o futuro. Se ao menos conseguíssemos enxergar a infinita cadeia de consequências que resulta das nossas pequenas decisões. Mas só percebemos tarde demais, quando perceber é inútil.
A caminho do quarto para mostrar o bilhete para o Coronel, percebi que jamais saberia. Jamais a conheceria suficientemente bem para saber se passara em sua cabeça naqueles últimos instantes, jamais saberia se ela tinha nos deixado de propósito. Mas o fato de não saber não me impediria de me importar. Eu sempre amaria Alasca Young, minha vizinha pervertida, com todo o meu pervertido coração.
Entrei no Quarto 43, mas o Coronel não estava lá, então deixei o bilhete no beliche de cima, sentei-me ao computador e escrevi minha saída do labirinto.
Antes de vir para cá, pensei por um bom tempo que para sair do labirinto fosse necessário fingir que ele não existia, construir um mundo pequeno, porém autossuficiente num rincão longínquo desse infinito labirinto e fingir que eu não estava perdido, mas em casa. Só que isso tinha me conduzido a uma vida solitária, tendo por companhia unicamente as últimas palavras dos já-mortos. Então vim para cá em busca de um Grande Talvez, de amigos verdadeiros e de uma vida maior do que a minha vidinha. Mas estraguei tudo, o Coronel estragou tudo, Takumi estragou tudo, e ela escorreu por entre nossos dedos. E não adianta embelezar a verdade: Ela merecia amigos melhores.
Depois que estragou tudo, tantos anos atrás, apenas uma garotinha imobilizada pelo terror, Alasca desmoronou em seu próprio enigma. Eu poderia ter tomado o mesmo rumo, mas sabia onde aquilo ia dar. Então continuo acreditando num Grande Talvez e sou capaz de acreditar nele apesar de tê-la perdido.
Pois, sim, vou esquecê-la. Aquilo que é construído desmorona imperceptivelmente devagar. Vou esquecê-la, mas ela perdoará meu esquecimento, assim como eu a perdôo por ter se esquecido de mim, do Coronel e de todo mundo, lembrando-se apenas de si mesma e de sua mãe naqueles últimos minutos que passou como pessoa. Hoje sei que ela me perdoa por ter sido burro e medroso, por ter tomado uma atitude burra e medrosa. Sei que ela me perdoa, assim como sua mãe também a perdoa. Eis por que sei disso:
Pensei, no começo, que ela fosse apenas um cadáver. Apenas escuridão. Apenas um corpo a ser comido pelos vermes. Pensei muito nela assim, como a refeição de algum bicho. O Que ela fora – olhos verdes, um meio sorriso, as curvas suaves da perna – em breve seria um nada, apenas ossos que eu não tinha visto. Pensei no lento processo de tornar-se esqueleto, depois fóssil, depois carvão, e, dali a milhares de anos, ser extraído pelas pessoas do futuro, que aqueceriam suas casas com ela e a transformariam em fumaça, ondulando numa chaminé, cobrindo a atmosfera. Às vezes, ainda acho que a “outra vida” é algo que inventamos para apaziguar a dor da perda, para tornar nosso tempo no labirinto suportável. Talvez ela fosse apenas matéria, e a matéria se recicla.
Mas, para ser sincero, não acredito que ela fosse só matéria. O resto dela também precisa ser reciclado. Hoje, acredito que somos mais do que a soma das nossas partes. Se pegássemos seu código genético, suas experiências de vida, seus relacionamentos com outras pessoas e os enxertássemos num corpo do mesmo tamanho e com as mesmas proporções, ainda assim não teríamos outra Alasca. Existe algo mais. Uma parte que é maior do que a soma das suas partes cognoscíveis. E essa parte tem de ir para algum lugar, pois não pode ser destruída.
Embora ninguém possa me acusar de ser um grande estudioso das ciências exatas, se tem uma coisa que aprendi nas aulas de Física é que a energia não se cria nem se destrói. E, se Alasca realmente tirou sua própria vida, esse é o tipo de esperança que eu gostaria de lhe ter dado. Esquecer e abandonar a mãe, os amigos, as próprias expectativas – eram coisas horríveis, mas ela não precisava ter se metido em si mesma e se autodestruído. Somos capazes de sobreviver a essas coisas horríveis, pois somos tão indestrutíveis quanto pensamos ser. Quando os adultos dizem: “Os adolescentes se acham invencíveis”, com aquele sorriso malicioso e idiota estampado na cara, eles não sabem quanto estão certos. Não devemos perder a esperança, pois jamais seremos irremediavelmente feridos. Pensamos que somos invencíveis porque realmente somos. Não nascemos, nem morremos. Como toda energia, nós simplesmente mudamos de forma, de tamanho e de manifestação. Os adultos se esquecem disso quando envelhecem. Ficam com medo de perder e de fracassar. Mas essa parte que é maior do que a soma das partes não tem começo e não tem fim, e, portanto, não pode falhar.
Eu sei que ela me perdoa, assim como eu a perdôo. As últimas palavras de Thomas Edson foram: “O outro lado é muito bonito.” Eu não sei onde fica o outro lado, mas acredito que seja em algum lugar e espero que seja bonito.

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