quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Cento e vinte e dois dias antes

DEPOIS DA ÚLTIMA AULA da minha primeira semana em Culver Creek, entrei no Quarto 43 e deparei com uma cena improvável: o Coronel, miúdo e sem camisa, debruçado sobre uma tábua de passar roupa, atacando uma camisa social cor-de-rosa. O suor lhe escorria pela testa e pelo tronco devido ao esforço, o braço direito empurrando o ferro ao longo da camisa com tamanha violência que sua respiração quase se igualava à do Sr. Hyde.
— Tenho um encontro, — ele explicou. — É uma emergência. — Ele fez uma pausa para recuperar o fôlego. — Você sabe... — respirou —... passar roupa?
Fui até a camisa cor-de-rosa. Estava enrugada como uma velha que passou a juventude tomando banho de sol. Se ao menos o Coronel não embolasse seus pertences e os enfiasse numa gaveta qualquer da cômoda.
— Acho que basta ligar o ferro e passa-lo por cima da roupa, não é? — eu disse. — Eu nem sabia que tínhamos um ferro!
— Não temos. É do Takumi, mas ele também não sabe usar. E, quando pedi para a Alasca, ela começou a gritar: ‘Você não vai querer impor o paradigma patriarcal para cima de mim!’ Santo Deus, preciso fumar, preciso fumar, mas não quero estar com cheiro de cigarro quando encontrar os pais da Sara. Dane-se. Vamos fumar no banheiro com o chuveiro ligado. O chuveiro produz vapor. E o vapor tira o amassado, não tira?
— Por falar nisso, — ele disse enquanto eu o seguia até o banheiro, — se quiser fumar no quarto, basta ligar o chuveiro. A fumaça sai pelo respiradouro junto com o vapor.
Embora não fizesse o menor sentido do ponto de vista científico, isso pareceu funcionar. A fraca pressão da água e o chuveiro baixo eram inúteis para o banho, mas serviam de barreira para a fumaça.
Infelizmente, não serviam de ferro. O Coronel tentou passar a camisa de novo (“Vou fazer bastante força para ver se ajuda”) e, por fim, acabou vestindo a camisa amassada. Para combinar, colocou uma gravata azul decorada com filas horizontais de flamingos cor-de-rosa.
— Dar nó na gravata é a única coisa que aquele sem-vergonha do meu pai me ensinou, — disse o Coronel, enquanto suas mãos hábeis davam um nó perfeito na gravata. — O que é estranho, pois não consigo imaginá-lo de gravata.
Foi então que Sara bateu na porta. Eu a tinha visto uma ou duas vezes, mas o Coronel não nos tinha apresentado e não teve chance de nos apresentar naquela noite.
— Santo Deus! Não pode ao menos passar a camisa? — ela perguntou, embora o Coronel estivesse de pé em frente à tábua de passar. — Vamos sair com os meus pais. — Ela estava bonita em seu vestidinho azul. Seus longos cabelos loiros claros tinham sido puxados para trás num coque, e uma mecha lhe caía de cada lado do rosto. Parecia uma estrela de cinema – uma estrela de cinema mal-humorada.
— Olha só, eu fiz o que podia. Nem todos têm empregada para passar roupa.
— Chip, chispando de raiva, assim, você fica mais baixo do que já é.
— Meu Deus! Será que não podemos sair sem brigar?
— Só estou dizendo... É a ópera! Meus pais levam isso a sério. Que seja. Vamos embora. — Tive vontade de sair do quarto, mas me pareceu ridículo querer me esconder no banheiro, e Sara estava na passagem da porta, com uma mão na cintura e a outra agitando as chaves do carro, como quem diz Vamos embora.
— Mesmo que eu fosse de smoking, seus pais me odiariam! — ele gritou.
— A culpa não é minha. Você provoca! — Ela ergueu as chaves do carro na frente dele. — Olha só, ou saímos agora ou não saímos.
— Que se dane. Não vou a lugar nenhum com você, — o Coronel disse.
— Ótimo. Tenha uma boa noite. — Sara bateu a porta com tanta força que uma pesada biografia de Tolstói (últimas palavras: “A verdade é... que me importo... com o que eles...”) saltou da estante e caiu no chão quadriculado com um baque surdo, ecoando a batida da porta.
— AHHHHH!!!!!!!!!! — ele gritou.
— Então essa é a Sara, — eu disse.
— É.
— Parece simpática.
O Coronel riu, depois se ajoelhou e pegou um galão de leite na mini geladeira. Girou a tampa, tomou um gole, virou o rosto, tossiu um pouco e se sentou no sofá com a garrafa entre as pernas.
— Está estragado?
— Ah! Eu devia ter avisado. Não é leite. São cinco partes de leite para uma de vodca. Eu chamo de ambrosia. A bebida dos deuses. Quase não se sente o cheiro da vodca no leite, então o Águia não tem como saber, a não ser que experimente. O único problema é que fica com gosto de leite azedo e álcool etílico. Mas é sexta-feira à noite, Gordo, minha namorada é uma chata. Quer um pouco?
— Acho que vou passar. — À exceção de alguns goles de champanhe no Ano Novo sob o olhar vigilante dos meus pais, eu jamais tinha ingerido bebida alcoólica, e a “ambrosia” não me parecia a bebida certa para começar. Ouvi o telefone tocando do lado de fora. Como havia 190 pensionistas para apenas cinco telefones públicos, achava espantoso que eles tocassem tão pouco. Os celulares eram proibidos, mas eu tinha reparado alguns Guerreiros de Dia da Semana usavam os seus clandestinamente. E a maioria dos não Guerreiros telefonava para os pais com certa regularidade, como eu, de modo que eles só ligavam quando os filhos se esqueciam.
— Não vai atender? — o Coronel perguntou. Eu não queria receber ordens dele, mas também não queria brigar.
Sob um crepúsculo infestado de insetos, caminhei até o telefone público preso na parede entre os Quartos 44 e 45. havia dezenas de números de telefones e de recados misteriosos escritos em torno do aparelho com caneta e pincel atômico, (205.555.1584,Tommy para o aeroporto 4:20; 773.573.6521; JG ˗ Kuffs?). Ligar para o telefone público exigia um bocado de paciência. Eu atendi quando tocou lá pela nona vez.
— Pode chamar o Chip? — Sara perguntou. Ela parecia estar ligando de um celular.
— Claro. Só um minuto.
Me virei, e ele já estava atrás de mim, como se soubesse que era ela. Entreguei-lhe o aparelho e voltei para o quarto.
Um minuto depois, duas palavras entraram pela porta, atravessando o ar pesado e estagnado daquela quase-noite no Alabama.
— VAI VOCÊ! — gritou o Coronel.
De volta ao quarto, ele se sentou com a garrafa de ambrosia na mão e disse:
— Ela falou que eu dedurei o Paul e a Marya. É isso o que os Guerreiros estão dizendo. Que eu os dedurei. Eu! Por isso mijaram no meu tênis. Por isso quase mataram você. Porque você mora comigo, e eles acham que eu sou dedo-duro.
Tentei me lembrar de Paul e Marya. Os nomes pareciam familiares, mas eu tinha ouvido tantos nomes naquela última semana que não podia dar rostos a “Paul” e “Marya”. Então me lembrei do motivo: eu não os conhecia. Eles tinham sido expulsos no ano anterior por terem cometido Trifeta.
— Há quanto tempo está saindo com ela?
— Nove meses. Nunca chegamos a nos entender. A verdade é que nunca gostei dela. Sabe, minha mãe e meu pai ˗ ele ficava irritado e descia o braço nela. Depois ficava bonzinho, e eles entravam numa fase de segunda lua-de-mel. Mas com a Sara não tem segunda lua-de-mel. Santo Deus! Como ela pôde pensar que eu sou dedo-duro? Eu sei, eu sei. Por que não terminamos de uma vez? — Ele passou a mão pelos cabelos, agarrou um chumaço no alto da cabeça e disse: — Acho que eu fico com ela porque ela fica comigo. E isso não é nada fácil. Sou péssimo namorado. Ela é péssima namorada. Nós nos merecemos.
— Mas...
— Não acredito que pensem isso de mim, — ele disse, indo até a estante e pegando o almanaque. Tomou um longo gole de ambrosia, — Malditos Guerreiros de Dia de Semana! Um deles deve ter dedurado o Paul e a Marya e, agora, está colocando a culpa em mim para encobrir seus próprios rastros. Quer saber, é uma boa noite para ficar em casa. Para ficar em casa com o Gordo e a ambrosia.
— Eu ainda... — comecei, querendo dizer que não entendia como ele podia beijar alguém que o considerava um dedo-duro, uma vez que ser dedo-duro era a pior coisa do mundo. Mas o Coronel me interrompeu.
— Chega desse assunto. Sabe qual é a capital da Serra Leoa?
— Não.
— Eu também não, — ele disse, — mas pretendo descobrir. — E, com essas palavras, mergulhou o nariz no almanaque, e a conversa terminou.

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