quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Cento e vinte e seis dias antes

— BEM, AGORA É GUERRA, — o Coronel gritou na manhã do dia seguinte. Eu me virei na cama e olhei para o relógio: 7h52. Minha primeira aula em Culver Creek, Francês II, começava em dezoito minutos. Pestanejei e olhei para o Coronel, que estava de pé entre o sofá e a MESA DE CENTRO, segurando o tênis velho e encardido pelo cadarço. Por um longo tempo, ele olhou para mim, e eu olhei para ele. Então, quase em câmera lenta, um sorriso forçado se abriu em seu semblante.
— Tenho de admitir, — o Coronel disse, por fim. — Essa foi boa.
— Essa o quê? — perguntei.
— Ontem à noite - antes de te acordarem, eu imagino -, eles mijaram no meu tênis.
— Tem certeza? — perguntei tentando não rir.
— Quer cheirar? — ele perguntou segurando o tênis na minha direção.— Por que eu já cheirei e tenho certeza. Se tem uma coisa que sei é quando acabei de pisar no mijo de outro homem. É como minha mãe sempre diz: ‘Fulano acha que está andando sobre água, mas está com mijo nos sapatos.’ Se você vir esses caras hoje, não se esqueça de me avisar. — E acrescentou: — Quero descobrir por que estão se mijando de raiva de mim. Além do mais, precisamos começar a pensar numa maneira de arruinar suas vidinhas patéticas.
Quando recebi o Regulamento de Culver Creek no verão e notei, feliz da vida, que a seção de “Vestuário” só continha três palavras, informal e modesto, não me ocorreu que as garotas pudessem aparecer na aula ainda sonolentas, usando short de pijamas, camiseta e chinelo. Modestas, eu acho, e informais.
O fato de as garotas estarem usando pijamas (se bem que discretos) poderia ter tornado a aula de Francês às 8h10 minimamente suportável se eu fizesse a mais vaga ideia do que Madame O’Malley estava falando. Comment dis-tu: "Ai, meu Deus, não sei falar francês suficientemente bem para passar em Francês II", em français? Minha aula de Francês I na Flórida não tinha me preparado para Madame O’Malley, que passou por cima da lenga-lenga de “Como foi seu verão?” e mergulhou de cabeça numa coisa chamada passé composé, que, aparentemente, era um tempo verbal. Alasca sentou-se de frente para mim no círculo de carteiras, mas não me olhou uma única vez durante toda a aula, ao passo que eu só tinha olhos para ela. Talvez ela fosse uma menina cruel... mas o jeito como falara sobre sair do labirinto naquela primeira noite – tinha sido tão inteligente! E o jeito como seus lábios estavam sempre se encrespando no canto direito, como se ela tivesse dominado o lado direito do inimitável sorriso da Mona Lisa...
Do meu quarto, a população estudantil parecera contornável, mas me desarmou quando cheguei às salas de aula, que ficavam num longo prédio para além do círculo dos dormitórios. O prédio era dividido em catorze salas que se abriam para o lago. A garotada lotava as calçadas estreitas em frente às salas de aula, e, ainda que não fosse difícil me localizar (mesmo com meu péssimo senso de direção consegui ir do Francês na Sala 3 para Pré-Cálculo na Sala 12), fiquei apreensivo o dia inteiro. Não conhecia ninguém nem tinha como avaliar quem eu deveria tentar conhecer. Além disso, as aulas foram difíceis mesmo sendo o primeiro dia. Meu pai tinha me dito que eu precisaria estudar, e agora eu acreditava nele. Os professores eram sérios e inteligentes, e muitos deles tinham feito doutorado. Assim, quando chegou a hora da minha última aula antes do almoço, Religiões do Mundo, senti um enorme alívio. Vestígio dos tempos em que Culver Creek fora uma escola cristã só para meninos, a aula de Religião, obrigatória tanto para os calouros quanto para os veteranos, pareceu-me um “A” garantido.
Foi a única aula do dia em que não encontrei as cadeiras dispostas num quadrado ou num círculo. Não querendo parecer ansioso, sentei-me na terceira fila às 11h03. Cheguei sete minutos mais cedo, em parte porque gostava de ser pontual e em parte porque não tinha ninguém com quem conversar nos corredores. Logo depois, o Coronel chegou acompanhado por Takumi, e eles se sentaram ao meu lado, deixando-me no meio.
— Fiquei sabendo do incidente de ontem à noite, — Takumi disse. — Alasca ficou uma fera.
— Estranho, porque ela foi cruel, — deixei escapar.
Takumi simplesmente balançou a cabeça.
— Mas é que ela não tinha ouvido a história inteira. Todos nós temos nossos dias de acordar com o pé esquerdo, cara. Você tem de aprender a conviver com as pessoas. Podia ter amigos piores do que...
O Coronel o interrompeu.
— Chega de psicologia barata, MC Dr. Phil. Vamos falar sobre nosso contra-ataque. — As pessoas estavam começando a fazer fila para estrar na sala de aula, então o Coronel se inclinou para mim e sussurrou: — Me avise se algum deles estiver nesta turma, OK? Coloque um ‘X’ onde estiverem sentados. — Arrancou um folha do caderno e desenhou um quadro para cada carteira. Enquanto as pessoas chegavam, vi um deles – o mais alto, com os cabelos imaculadamente espetados -, Kevin. Ele passou pelo Coronel e o encarou, mas, distraído, esqueceu-se de olhar por onde andava e bateu com a coxa na carteira. O Coronel riu. Um dos outros rapazes, o que era mais forte ou mais gordinho, entrou depois de Kevin, usando calças cáqui frisadas e uma camisa polo preta de mangas curtas. Quando se sentaram, marquei com um “X” os respectivos quadrados no desenho do Coronel e lhe passei a folha. Foi nessa hora que o Velho entrou, arrastando os pés.
Ele respirava devagar e com grande esforço pela boca aberta. Caminhou a passos miúdos até a estante, o calcanhar de um pé não se distanciando muito dos dedos do outro. O Coronel me cutucou e apontou displicentemente para o caderno, onde se lia: O Velho só tem um pulmão, e não duvidei disso. Sua respiração audível, quase desesperada, me fez lembrar o meu avô quando estava morrendo de câncer no pulmão. Idoso e de peito largo, tive a impressão de que o Velho morreria antes mesmo de chegar ao púlpito.
— Meu nome, — ele disse, — é Sr. Hyde. Tenho um prenome, é claro. Mas, para vocês, é ‘Senhor’. Seus pais pagam muito caro para que estudem aqui, e espero que retribuam esse investimento lendo o que eu mandar ler, quando eu mandar ler, e comparecendo regularmente às minhas aulas. Enquanto estiverem em sala, terão de me ouvir. — Estava claro que não seria um “A” garantido.
— Este ano, vamos estudar três religiões: o islamismo, o cristianismo e o budismo. E, ano que vem, mais três. Nas minhas aulas, vou falar a maior parte do tempo e vocês vão ouvir. Vocês podem ser espertos, mas eu sou esperto há mais tempo. Estou certo de que muitos não gostam de aulas conferenciais, mas, como vocês provavelmente já devem ter percebido, não sou mais tão jovem. Adoraria gastar o que me resta de fôlego conversando com vocês sobre os aspectos mais interessantes da história do islã, mas nosso tempo é curto. Preciso falar e vocês precisam ouvir, porque estamos lidando com a coisa mais importante de todas: a procura de um sentido. O que significa ser uma pessoa? Qual é a melhor maneira de ser uma pessoa? Como passamos a existir e o que será de nós quando deixarmos de existir? Em suma: quais são as regras deste jogo e qual é a melhor maneira de jogá-lo?
A natureza do labirinto, eu anotei em meu caderno de espiral, e como escapar dele. Esse professor era o máximo. Eu odiava aulas com debates. Odiava falar e odiava ouvir os outros tropeçarem em suas próprias palavras, tentando frasear as coisas da maneira mais vaga possível para não parecerem estúpidos. Odiava como tudo acabava sendo um jogo, no qual tentávamos descobrir o que o professor queria ouvir e o dizíamos. Estou aqui, então me ensine. E ele ensinou: naqueles cinquenta minutos, o Velho me fez levar a sério a questão religiosa. Nunca fora religioso, mas ele nos disse que a religião era importante quer acreditássemos nela, quer não, da mesma maneira como os acontecimentos históricos são importantes quer tenhamos participado deles, quer não. Então nos mandou ler cinquenta páginas para o dia seguinte – de um livro chamado A ciência da religião.
Naquela tarde, tive duas aulas e dois períodos livres. Tínhamos nove aulas de cinquenta minutos todos os dia, o que significava que o máximo que podíamos ter eram três “períodos de estudo” (com exceção do Coronel, que tinha uma aula a mais de Matemática sozinho, pois era um Gênio Superespecial). O Coronel e eu tivemos aula de Biologia juntos, e eu lhe apontei o outro rapaz que tinha me prendido com fita adesiva na noite anterior. No alto do caderno, o Coronel escreveu, Longwell Chase, veterano Guerreiro-de-D-de-S. amigo de Sara. Esquisito. Precisei de um tempo para lembrar quem era Sara: a namorada do Coronel.
Passei meus períodos livres no quarto, tentando ler sobre religião. Aprendi que mito não é uma mentira; é uma história tradicional que nos diz algo sobre um povo, sua visão de mundo e o que ele considera sagrado. Interessante. Aprendi também que, depois dos acontecimentos da noite anterior, eu estava cansado demais para me preocupar com mitos ou qualquer outra coisa, então dormi em cima dos lençóis por um bom tempo até ser acordado ao som da Alasca cantando:
— ACORDA, MEU GORDIIIIIIIIIIIINHO! — dentro do meu ouvido esquerdo. Apertei o livro de religião contra o peito como se fosse um cobertor de estimação feito de papel.
— Isso foi horrível, — eu disse. — O que preciso fazer para garantir que isso não se repita?
— Não há nada que possa fazer! — ela disse, animada. — Sou imprevisível. Credo, você não odeia o Sr. Hyde? Ele é tão arrogante.
Eu me sentei na cama e disse: — Acho que ele é um gênio, — em parte porque o achava um gênio e em parte porque queria discordar dela.
Ela se sentou na cama.
— Sempre dorme de roupa?
— Durmo.
— Engraçado, — ela disse. — Ontem à noite você estava com menos roupa. — Olhei para ela com raiva.
— Sai dessa, Gordo! É brincadeira. Você precisa ser durão aqui. Eu não sabia que tinha sido tão difícil – sinto muito, eles ainda vão se arrepender -, mas você tem de ser durão. — E saiu. Era tudo o que tinha a dizer sobre o assunto. Ela é engraçadinha, pensei, mas você não precisa gostar de uma garota que o trata como se tivesse 10 anos de idade: você já tem uma mãe.

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