quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Cento e vinte e sete dias antes

NO COMEÇO DA TARDE SEGUINTE, enquanto eu prendia um cartaz do Van Gogh atrás da porta, o suor que escorria pela minha testa entrava em meus olhos e me fazia piscar. O Coronel estava sentado no sofá, avaliando se o cartaz estava torto, respondendo ao meu interminável questionário sobre Alasca. Qual é a história dela?
— Ela é de Vine Station. Um lugarzinho pobre – e, pelo que ouvi dizer, até um pouco perigoso. O namorado dela é bolsista em Vanderbilt. Toca baixo numa banda. Sei pouco sobre a família dela.
— Ela realmente gosta dele?
— Acho que sim. Nunca o traiu, o que já é um começo. — E assim por diante. Durante a manhã, eu não conseguira pensar em outra coisa, nem no cartaz do Van Gogh, nem nos jogos de vídeo-game, nem no cronograma escolar que o Águia tinha trazido. Ele se apresentou:
— Bem-vindo a Culver Creek, Sr. Halter. O senhor terá muita liberdade aqui. Mas, se abusar, vai se arrepender. O senhor me parece um rapaz às direitas. Eu odiaria ter de me despedir do senhor.
Então me encarou de maneira séria ou seriamente maldosa.
— Alasca diz que é o Olhar do Juízo Final, — o Coronel explicou depois que o Águia saiu. — Da próxima vez que vir esse olhar, significa que você foi pego.
— Chega, Gordo, — disse o Coronel quando me afastei do cartaz. Não estava completamente nivelado, mas estava bom. — Chega de falar na Alasca. Pelas minhas contas, há noventa e duas garotas na escola, e todas são menos malucas do que a Alasca. Além disso, ela tem namorado. Vou almoçar. É dia de bufrito. — Ele saiu. Deixando a porta aberta. Eu me levantei para fechá-la, sentindo-me um idiota exageradamente apaixonado. O Coronel, que já estava a meio caminho do gramado, deu meia-volta. — Santo Deus! Você vem ou não vem?
Podemos fazer muitas críticas ao Alabama, mas uma coisa é certa: as pessoas de lá não morrem de medo de fritura. Em minha primeira semana na Creek, o refeitório serviu galinha frita, filé de galinha frito e quiabo frito – o que marcou minha primeira incursão no delicioso mundo dos legumes fritos. Não me surpreenderia se também tivessem fritado folhas de alface. Mas nada se iguala ao bufrito, um prato criado pela Maureen, a cozinheira espantosamente (e compreensivelmente) obesa de Culver Creek. O bufrito, um burrito de feijão frito, era a prova definitiva de que a fritura sempre melhorava a comida. Naquela tarde, sentado com o Coronel e mais cinco rapazes desconhecidos numa mesa redonda do refeitório, enterrei os dentes no invólucro tostadinho do meu primeiro bufrito e tive um orgasmo gastronômico. Minha mãe cozinhava bem, mas pensei imediatamente em levar Maureen para o feriado de Ação de Graças.
O Coronel me apresentou (como “Gordo”) para os rapazes da mesa de madeira oscilante, mas só guardei o nome do Takumi, que Alasca tinha mencionado na véspera. Um japonês magricela, poucos centímetros mais alto do que o Coronel. Falava com a boca cheia, enquanto eu saboreava lentamente meu feijão tostadinho.
— Meu Deus! — disse Takumi. — Nada como ver um cara comer seu primeiro bufrito.
Não falei muito – em parte porque não me fizeram nenhuma pergunta e em parte porque eu queria comer tanto quanto pudesse. Mas Takumi não era tão vaidoso – e conseguia comer, mastigar e engolir enquanto falava.
A conversa durante o almoço centrou-se na ex-colega de quarto da Alasca, Marya e em seu namorado, Paul, que fora um Guerreiro de Dia de Semana. Eles tinham sido expulsos no finzinho do semestre anterior, fiquei sabendo, devido ao que o Coronel chamou de “A Trifeta”- foram pegos cometendo, ao mesmo tempo, três das ofensas que, em Culver Creek, eram puníveis com expulsão. Estavam deitados, nus, na cama (“contato genital”, pecado número 1), embriagados (número2) e fumando um baseado (número 3) quando foram surpreendidos pelo Águia. Corria o boato de que alguém os tinha dedurado, e Takumi parecia decidido a descobrir quem fora – decidido o bastante para gritar sobre o assunto com a boca cheia de bufrito.
— O Paul era um idiota, — o Coronel disse. — Eu não seria capaz de dedurar ninguém, mas uma garota que se mete com o Guerreiro de Dia de Semana feito o Paul, que tem um Jaguar, merece ser expulsa.
— Cara, — respondeu Takumi, — a shua namourada, — e engoliu um bolo de comida, — é uma Guerreira de Dia de Semana.
— Verdade. — O Coronel riu. — Embora isso seja humilhante, é um fato irrefutável. Mas ela não é tão idiota quanto o Paul.
— Não chega a tanto. — Takumi abriu um sorriso malicioso. O Coronel riu novamente, e me perguntei por que ele não defendia a namorada. Não me importaria se minha namorada fosse um ciclope barbudo com um Jaguar – ficaria agradecido só por ter alguém para beijar.
Naquela noite, quando o Coronel passou pelo Quarto 43 para pegar uns cigarros (ele parecia ter se esquecido de que os cigarros, tecnicamente, eram meus), não dei importância quando ele não me convidou para sair. Na escola pública, eu tinha conhecido uma porção de gente que odiava este ou aquele tipo de pessoa – os geeks odiavam os populares etc., mas isso, para mim, sempre fora uma tremenda perda de tempo.
O Coronel não me contou onde tinha passado a tarde, nem onde ia passar a noite. Simplesmente fechou a porta ao sair, e deduzi que não seria bem-vindo.
Tudo bem. Passei a noite na internet (nada de pornografia, juro), depois li Os últimos dias, um livro sobre Richard Nixon e o escândalo de Watergate. Para o jantar, esquentei no micro-ondas um bufrito congelado que o Coronel tinha furtado do refeitório. Fez-me lembrar as noites na Flórida – exceto pela comida mais gostosa e pela falta de ar-condicionado. Ficar lendo na cama era agradavelmente familiar.
Decidi seguir o que certamente teria sido o conselho da minha mãe e procurei dormir cedo antes do primeiro dia de aula. Francês II começava às 8h10. Avaliando que eu não levaria mais de oito minutos para vestir alguma coisa e caminhar até a sala de aula, programei o relógio para despertar às 8h02. Tomei uma ducha e deitei na cama, esperando que o sono me salvasse do calor. Por volta das 23h, concluí que o pequeno ventilador acoplado à cama poderia fazer mais diferença se eu tirasse a camisa e acabei adormecendo apenas de cueca samba-canção em cima dos lençóis.
Lamentei essa decisão horas mais tarde, quando acordei com duas mãos suarentas e carnudas me sacudindo violentamente. Despertei de imediato e me sentei na cama, apavorado. Por algum motivo, não conseguia entender as vozes, não conseguia entender o porquê das vozes, afinal que horas eram? Então minha cabeça clareou bastante para que eu pudesse ouvir de beliche de cima, ouvi:
— Pelo amor de Deus, Gordo, levanta logo! — Eu me levantei e três vultos sombrios. Dois deles me agarraram, pegando-me pelos braços, e me conduziram para fora do quarto. Na saída, o Coronel resmungou: — Divirtam-se. Pega leve com ele, Kevin.
Eles me arrastaram às carreiras para os fundos do dormitório, e nós atravessamos o campo de futebol. O chão era feito de grama, mas também tinha um pouco de cascalho, e me perguntei por que ninguém tinha me avisado para calçar um tênis e por que eu estava lá fora de cueca com meus gambitos de galinha expostos para o mundo? Milhares de humilhações me passaram pela cabeça. Olha o novo calouro, Miles Halter, algemado à baliza da trave, de cueca. Pensei que me levariam para o bosque e me dariam uma surra daquelas para me deixar bonitão no primeiro dia de aula. E, o tempo todo, só olhei para os meus pés, porque não queria olhar para eles e não queria cair, então prestei atenção aos meus passos, procurando evitar as pedras maiores. Senti o instinto de sobrevivência crescer dentro de mim repetidas vezes, pedindo-me para lutar ou fugir, mas eu sabia que nem uma coisa nem outra tinham funcionado antes, no meu caso. Eles deram uma volta e me levaram para a falsa praia, e eu adivinhei o que iria acontecer – um bom e velho caldo no lago. Fiquei mais tranquilo. Saberia lidar com a situação.
Quando chegamos à praia, eles me mandaram colocar os braços junto ao corpo, e o mais fortinho pegou dois rolos de fita adesiva na areia. Com os braços esticados, como um soldado em posição de sentido, eles me mumificaram dos ombros aos punhos. Depois me atiraram no chão; a areia da falsa praia amorteceu a queda, mesmo assim bati com a cabeça. Dois deles juntaram minhas pernas, e o outro – Kevin, eu deduzi – colocou seu rosto anguloso, de maxilar forte, tão perto do meu que as pontas de seus cabelos duros de gel me espetaram, e disse:
— Isso é pelo Coronel. Você não devia andar com esse babaca. —  Amarraram minhas pernas dos calcanhares às coxas. Fiquei parecendo uma múmia prateada. Só tive tempo de dizer:
— Não, por favor, não... — antes de taparem minha boca com fita adesiva. Depois me levantaram e me atiraram com força na água.
Afundei. Afundei, mas, em vez de entrar em pânico, imaginei que “Não, por favor, não...” seriam péssimas últimas palavras. Então testemunhei o grande milagre da espécie humana – nossa capacidade de boiar -, e, quando flutuava em direção à superfície, procurei me retorcer e me revirar o máximo possível para que o nariz fosse o primeiro a atingir a noite quente. E inspirei. Não estava morto, não iria morrer.
Bem, pensei, não foi tão mau assim.
Mas ainda havia o pequeno problema de chegar à terra firme antes de o sol aparecer. Primeiro, era necessário determinar minha posição em relação a praia. Quando eu inclinava demais a cabeça, sentia o corpo começar a girar, e, na longa lista das piores maneiras de morrer, “com o rosto para baixo e as cuecas brancas ensopadas”, estava no topo. Então, em vez disso, olhei bem para o alto, estiquei o pescoço para trás, com os olhos quase debaixo d’água, e vi que a praia – a menos de três metros de distância – estava bem atrás da minha cabeça. Comecei a nadar como uma sereia prateada sem braços, usando apenas os quadris para me locomover, até que, por fim, meu traseiro raspou no fundo lamacento do lago. Então me virei e usei os quadris e a cintura para rolar três vezes até chegar á praia, onde havia uma toalha verde maltrapilha. Eles tinham me deixado uma toalha. Quanta consideração!
A água tinha se infiltrado sob a fita adesiva, fazendo-a desgrudar da pele, mas, em alguns lugares, a fita tinha sido enrolada em três voltas, o que me obrigou a me sacudir como um peixe fora d’água. Acabei conseguindo afrouxá-la o suficiente para libertar minha mão esquerda e puxá-la em direção ao peito, esgarçando a atadura.
Enrolei-me na toalha arenosa. Não queria voltar para o quarto e ver o Chip, porque não fazia ideia do que Kevin tinha querido dizer – talvez, se eu voltasse para o quarto, eles estivessem me esperando para me pegar de jeito; talvez eu precisasse mostrar para eles, “Tudo bem. Entendi o recado. Ele é só meu colega de quarto, não é meu amigo.” Além do mais, eu não me sentia lá muito amistoso com o Coronel. Divirtam-se, ele dissera. Claro, pensei. Foi superdivertido.
Então fui para o quarto da Alasca. Não sabia que horas eram, mas vi uma luz fraca embaixo da porta. Bati de leve.
— Pois não, — ela disse. Entrei, molhado e sujo de areia, com apenas uma toalha e um cueca ensopada. É claro que não é assim que você que ser visto pela garota mais linda do mundo, mas imaginei que ela poderia me explicar o que tinha acontecido.
Ela pousou o livro e saltou da cama, enrolada num lençol. Por um instante, pareceu preocupada. Pareceu a garota que eu tinha conhecido na véspera, a garota que tinha me chamado de bonitinho, cheia de energia, infantilidade e inteligência. Então riu.
— Foi nadar, foi? — Ela disse isso com tanta malícia e tanto desprezo que tive a impressão de que todo o mundo já sabia e me perguntei como aquela maldita escola podia ter concordado com antecedência em afogar Miles Halter. Mas Alasca gostava do Coronel e, na confusão do momento, eu simplesmente olhei para ela, sem expressão, sem saber o que perguntar.
— Ah, me poupe! — ela disse. — Quer saber? Tem gente com problemas de verdade. Eu tenho problemas de verdade. A mamãe não está aqui, então deixa de ser chorão.
Saí sem lhe dizer nada e voltei para o meu quarto, batendo a porta com força, acordando o Coronel e me dirigindo ao banheiro estrepitosamente. Entrei debaixo d’água para lavar o corpo coberto de algas e de sujeira do lago, mas a porcaria da ducha era inútil, além do mais, como é que Alasca, Kevin e os outros rapazes podiam já não gostar de mim assim tão cedo? Depois do banho, enxuguei-me e voltei para o quarto para pegar uma roupa.
— E aí? — ele perguntou. — Por que demorou? Não sabia voltar?
— Eles disseram que foi por sua causa, — eu disse, minha voz traindo certa irritação. — Disseram que eu não devia andar com você.
— Como? Não, isso acontece com todo o mundo, — o Coronel disse. — Aconteceu comigo. Eles jogam a pessoa no lago. Ela nada até a praia. E volta para casa.
— Eu não consegui nadar, — eu disse, sereno, vestindo uma bermuda jeans por baixo da toalha. — Eles me prenderam com fita adesiva. Mal consegui me mexer.
— Calma, calma, — ele disse, saltando do beliche e me encarando através da escuridão. — Eles prenderam você? Como? — E eu lhe mostrei: fiquei como uma múmia, com os pé juntos, os braços ao longo do corpo, e mostrei como tinham feito. Depois me joguei no sofá, produzindo um som de chape.
— Meu Deus, você podia ter se afogado! Eles só tinham de ter jogado você de cueca no lago e fugido! — ele gritou. — Mas que diabos estavam pensando! Quem estava lá? Kevin Richman e quem mais? Lembra da fisionomia deles?
— Acho que sim.
— Mas por que fariam uma coisa dessas? — ele se perguntou.
— Fez alguma coisa para eles?
— Não, mas agora vou fazer, pode ter certeza disso. Eles me pagam.
— Não foi nada de mais. Eu consegui sair.
— Você poderia ter morrido, cara! — E acho que podia ter morrido mesmo. Mas estava vivo.
— Bem, talvez seja melhor eu contar para o Águia o que aconteceu.
— De jeito nenhum, — ele disse. Caminhou até a bermuda amassada que estava no chão e pegou o maço de cigarros. Acendeu dois deles e deu um para mim. Eu fumei aquela porcaria inteirinha. — Não, — ele continuou, — porque não é assim que fazemos as coisas por aqui. Além do mais, você não vai querer ser conhecido como dedo-duro. Vamos dar um jeito nesses safados, Gordo. Prometo. Eles vão se arrepender de terem feito isso com o meu amigo.
Se o Coronel pensava que me chamar de amigo ia me fazer ficar de lado dele, bem, ele estava certo.
— Alasca me tratou meio mal hoje, — eu disse. Inclinei o tronco, abri uma das gavetas vazias e a usei como cinzeiro.
— É o que eu digo, ela é de lua.
Fui para a cama de camiseta, bermuda e meias. Por mais calor que estivesse fazendo, decidi nunca mais dormir sem roupa na Creek, sentindo – provavelmente pela primeira vez vida – o medo e a empolgação de viver num lugar onde nunca se sabe o que vai acontecer ou quando.

Nenhum comentário:

Postar um comentário