quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Cinquenta e dois dias antes

DEPOIS QUE TODOS FORAM EMBORA; depois que a mãe do Coronel apareceu num carrinho vermelho, e ele atirou o gigantesco saco de lona no banco de trás; depois que ele disse:
— Não gosto de despedidas. Então nos vemos semana que vem. Não façam nada que eu não faria; — depois que uma limusine verde chegou para buscar Lara, que era filha do único médico de uma pequena cidade no sul do Alabama; depois que me juntei a Alasca numa viagem de carro do tipo não-preciso-de-freio-porcaria-nenhuma para deixar o Takumi no aeroporto; depois que o campus se acalmou e ficou estranhamente silencioso, sem portas batendo, sem música, sem risos, sem gritos; depois de tudo isso:
Fomos para o campo de futebol, e ela me conduziu até a orla da floresta, o mesmo campinho que eu tinha percorrido antes de ser jogado no lago. Sob a lua cheia, ela projetava uma sombra, e era possível ver na sombra a curva que lhe descia da cintura aos quadris. Depois de um tempo, ela parou e disse:
— Cave.
Eu disse: — Cavar? — e ela: — Cave, — e nós ficamos nisso por um tempo, até que eu me ajoelhei e comecei a cavar a terra fofa e escura da orla da floresta. Não tinha cavado muito fundo, quando meus dedos arranharam uma superfície de vidro. Cavei em torno do vidro até desenterrar uma garrafa de vinho tinto — acho que se chamava Strawberry Hill, porque, tirando o gosto de vinagre e xarope, talvez tivesse gosto de morango.
— Tenho uma identidade falsa, — ela disse, — mas não presta. Sempre que vou à loja de bebidas, tento comprar dez garrafas desse negócio e um pouco de vodca para o Coronel. Quando dá certo, fico abastecida por um semestre. Dou a vodca para o Coronel, e ele a guarda em seu esconderijo, e eu pego as minhas garrafas e enterro.
— Porque você é uma pirata, — eu disse.
— Argh! Sim, capitão. Mas o consumo de vinho aumentou um pouco neste semestre, então vamos ter de sair amanhã. Está é a última garrafa. — Ela girou a tampa — não era de rolha —, tomou um gole e me passou. — Não se preocupe com o Águia hoje, — ela disse. — Ele está feliz porque todo mundo foi embora. Provavelmente está se masturbando pela primeira vez no mês.
Hesitei por um instante, preocupado, segurando a garrafa pelo gargalo, mas queria confiar nela, e confiei. Tomei um gole pequeno. Assim que engoli, senti meu corpo rejeitar o gosto pungente de xarope. O líquido voltou pelo esôfago, eu engoli com força e, bem, consegui. Estava bebendo no campus.
Ficamos deitados na relva alta entre o campo de futebol e a floresta, passando a garrafa de um para o outro, inclinando a cabeça para beber aquele vinho que voltava pelo esôfago. Como prometido na lista, ela trouxe um livro de Kurt Vonnegut, Cat’s Cradle [O berço do gato], e o leu em voz alta para mim, sua voz suave misturando-se ao coaxar das rãs e aos gafanhotos que pousavam suavemente ao redor de nós. Eu não ouvia suas palavras, apenas a cadência de sua voz. Ela obviamente tinha lido o livro muitas vezes, por isso lia sem tropeços e com confiança. Eu conseguia escutar seu sorriso durante a leitura, e o som daquele sorriso me fez pensar que eu poderia gostar mais dos romances se Alasca Young os lesse para mim. Depois de um tempo, ela pousou o livro. Eu me sentia aquecido, mas não bêbado, com a garrafa entre nós dois — meu peito tocando a garrafa e o peito dela tocando a garrafa, mas sem tocarmos um no outro. Então ela colocou a mão na minha perna.
Com a mão logo acima do meu joelho, espalmada e macia no meu jeans, o dedo indicador descrevendo círculos lentos e preguiçosos que se dirigiam para a parte interna da minha coxa e apenas uma camada entre nós, meu Deus, como eu a desejei. Deitado ali, entre as folhas de grama, altas e plácidas, debaixo de um céu bêbado de estrelas, ouvindo o som quase inaudível da sua respiração compassada e o silêncio ruidoso das rãs, dos gafanhotos, dos carros distantes que atravessavam eternamente a I-65, pensei pela primeira vez em como seria maravilhoso dizer as Três Palavrinhas. Eu tomava coragem para dizê-las enquanto fitava a noite estrelada, tentando me convencer de que ela sentia o mesmo, que sua mão, tão viva e real na minha coxa, era mais do que um simples joguinho. Dane-se a Lara, dane-se o Jake. É verdade, Alasca Young. Eu te amo, e o que mais importa? Meus lábios se abriram para falar e, antes mesmo que eu pudesse exalar as palavras, ela disse: — Não é nem a vida nem a morte, o labirinto.
— Hmm..., certo. É o quê?
— O sofrimento, — ela disse. — São as coisas erradas que fazemos e as coisas erradas que fazem conosco. Essa é a questão. Bolívar estava falando sobre a dor, não sobre a vida e a morte. Como saímos deste labirinto de sofrimento?
— O que aconteceu? — perguntei. E senti a ausência de sua mão em minha coxa.
— Não aconteceu nada. Mas o sofrimento está sempre presente, Gordo. Dever de casa, malária, o namorado que mora longe quando você tem um garoto bonito deitado ao seu lado. O sofrimento é universal. É a única coisa que preocupa tanto os budistas quanto os cristãos e os mulçumanos.
Eu me voltei para ela.
— Ah! Então talvez a aula do Sr. Hyde não seja uma completa idiotice.
Nós dois estávamos deitados de lado. Ela sorriu, nossos narizes quase se encostando, meus olhos fitos nos dela, sem piscar, suas faces coradas por causa do vinho. Abri a boca novamente, mas dessa vez não foi para falar. Ela ergueu a mão e colocou o dedo em meus lábios, dizendo: — Shh. Shh. Não estrague tudo.

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