quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Cinquenta e oito dias antes

CERCA DE UMA SEMANA DEPOIS, acordei às 6h30 – às 6h30 de um sábado! – ao doce som da Decapitação: uma rajada de metralhadora erguendo-se acima da música de fundo grave e violenta do jogo de videogame. Rolei na cama e vi Alasca puxando o controle para cima e para a direita, como se aquilo fosse ajudá-la a escapar de uma morte certa. Eu tinha o mesmo mau hábito.
— Não pode ao menos tirar o som?
— Gordo, — ela disse, num tom de falsa condescendência, — o som é parte integral da experiência estética desse jogo. Tirar o som de Decapitação seria como ler apenas algumas palavras de Jane Eyre. O coronel acordou faz quase meia hora. Parecia um pouco irritado, então o mandei dormir no meu quarto.
— Acho que vou me juntar a ele, — eu disse, um pouco grogue.
Em vez de responder à minha pergunta, ela disse:
— Fiquei sabendo que o Takumi contou para você. É verdade, eu dedurei a Marya. Sinto muito. Nunca mais farei isso. Agora, mudando de assunto, você vai ficar aqui para o feriado de Ação de Graças? Eu vou.
Eu me virei para o outro lado e puxei o edredom sobre a cabeça. Não sabia se podia confiar nela e já estava cansado de sua imprevisibilidade – fria num dia, meiga no outro. Eu preferia o Coronel: pelo menos, quando ele ficava mal-humorado, ele tinha um motivo.
Como que para atestar o poder do cansaço, consegui cair no sono rapidamente, convencido de que os grunhidos que os monstros soltavam ao morrer e os guinchos felizes que Alasca dava quando os matava faziam parte de uma música de fundo com a qual sonhar. Acordei meia hora depois, quando ela se sentou em minha cama, encostando a bunda em meus quadris. Sua calcinha, seu jeans, o edredom, minha calça canelada, minha cueca samba-canção entre nós, pensei. Cinco camadas, e, no entanto, eu sentia o apreensivo calor do toque – um pálido reflexo do que seria um beijo na boca, mas um reflexo mesmo assim. E, no “quase” do momento, eu me importei pelo menos bastante. Não sabia se gostava dela, tampouco confiava nela, mas me importava bastante para tentar descobrir. Ela em minha cama, os olhos verdes arregalados, olhando para mim. O eterno mistério de seu sorriso malicioso, quase matreiro. Cinco camadas entre nós.
Ela continuou falando com seu eu não tivesse cochilado.
— O Jake precisa estudar. Por isso não me quer em Nashville. Diz que não consegue se concentrar na musicologia comigo por perto. Eu disse que vestiria uma burka, mas ele não se convenceu, por isso vou ficar aqui.
— Sinto muito.
— Ah não sinta. Tenho muito o que fazer. Tenho um trote para planejar. Mas acho que você também deveria ficar aqui. Aliás, escrevi uma lista.
— Uma lista?
Ela enfiou a mão no bolso e tirou uma folha de caderno dobrada muitas vezes e começou a lê-la.
— Porque o Gordo deve ficar na Creek para o feriado de Ação de Graças: Uma lista, por Alasca Young.
— Um. Como o Gordo é um aluno muito dedicado, ele se privou de várias experiências maravilhosas em Culver Creek, entre elas, (a) beber vinho comigo na floresta, (b) acordar cedo no sábado para tomar café da manhã no McIncomível, depois passear de carro pelo centro de Birmingham, fumando e conversando sobre como o centro de Birmingham é patético e sem-graça e (c) sair tarde da noite e deitar no campo de futebol coberto de orvalho para ler o livro Kirt Vonnegut à luz da lua.
— Dois. Embora ela não se sobressaia em atividades como ensinar o idioma francês, Madame O´Malley faz um peru recheado delicioso e convida todos os alunos que ficam no campus para uma ceia de Ação de Graças. Geralmente somos eu e o aluno coreano de intercâmbio, mas, que seja. O Gordo seria bem-vindo.
— Três. Eu não pensei no três, mas acho que o um e o dois já estão de bom tamanho.
um e o dois pareciam interessantes, mas, acima de tudo, eu gostava da ideia de ficarmos só eu e ela no campus.
— Vou falar com meus pais assim que eles acordarem, — eu disse. Ela insistiu para que eu me sentasse no sofá, e jogamos Decapitação até que, de repente, ela largou o controle no chão.
— Não estou dando mole, só estou cansada, — ela disse, chutando os chinelos para ficar descalça. Colocou os pés em cima do sofá de espuma, metendo-os atrás de uma almofada, e chegou para o lado para deitar a cabeça em meu colo. Minha calça canelada. Minha cueca samba-canção. Duas camadas. Eu sentia o calor de sua face em minha coxa.
Às vezes é aceitável, e até conveniente, ter uma ereção quando o rosto de alguém está próximo do seu pênis.
Mas não era o caso.
Então parei de pensar nas camadas e no calor, desliguei o som da tevê e me concentrei na Decapitação.
Às 8h30, desliguei o videogame e saí de debaixo da Alasca. Ela se deitou de barriga para cima, ainda dormindo, as estrias da minha calça canelada impressas em suas bochechas.
Geralmente eu só ligava para os meus pais nas tardes de domingo, por isso, quando minha mãe reconheceu minha voz, ficou instantaneamente sobressaltada.
— O que houve, Miles? Você está bem?
— Estou bem, mãe. Se não houver problema, acho que gostaria de passar o feriado aqui. Vários amigos vão ficar — mentira — e tenho um monte de dever de casa para fazer — dupla mentira. — Eu não sabia que o ensino aqui era tão puxado, mãe — verdade.
— Ah, querido. Estamos morrendo de saudades. E tem um peru de Ação de Graças enorme esperando por você. Com bastante molho doce.
Eu odiava molho doce, mas, por algum motivo, minha mãe continuava achando que molho doce era minha comida predileta, embora todo ano eu lhe pedisse educadamente para não colocar no meu prato.
— Eu sei, mãe. Também estou com saudades. Mas quero tirar boas notas — verdade — além do mais é muito bom ter amigos — verdade.
Eu sabia que o truque do amigo iria funcionar com ela, e funcionou mesmo. Então recebi autorização para ficar no campus depois de ter prometido que passaria o Natal inteirinho com eles (como se eu tivesse outros planos).
Passei a manhã no computador, dividido entre os trabalhos de Religião e Inglês. Só teríamos duas semanas de aula antes das provas – a seguinte e a semana depois do feriado -, e, até o momento, a melhor resposta que eu tinha para “O que acontece depois da morte?” era “Bem, alguma coisa, talvez”.
O Coronel chegou ao meio-dia, o livro grosso de matemática hiperavançada aninhado em seus braços.
— Acabei de falar com a Sara, — ele disse.
— Como foi?
— Horrível. Ela disse que ainda me amava. Santo Deus, ‘eu te amo’ é o que leva as pessoas a se separarem. Se você diz ‘Eu te amo’ quando está atravessando o círculo dos dormitórios, vai acabar dizendo ‘eu te amo’ quando estiver transando. Eu saí correndo. — Eu ri. Ele puxou o caderno e se sentou em sua escrivaninha.
— Pois é. Ah! Alasca disse que você vai ficar aqui.
— Pois é. Mas estou me sentindo um pouco culpado por ter dispensado meus pais.
— Pois é. Olha só, se vai ficar aqui porque está querendo dar uns beijos na Alasca, acho melhor mudar de ideia. Se ela se desprender do porto seguro que é o Jake, Deus tenha piedade de nós. Vai ser um tremendo drama. E eu procuro evitar o drama.
— Não quero dar uns beijos nela.
— Espera. — Ele pegou um lápis e começou a rabiscar com entusiasmo numa folha de papel, como se tivesse feito uma importante descoberta matemática, depois de voltou para mim. — Pelos meus cálculos, você é um mentiroso.
Ele estava certo. Como eu podia abandonar meus pais, que eram bons para mim e pagavam minha educação em Culver Creek, meus pais que sempre me amaram, só porque eu poderia estar gostando de uma garota comprometida? Como podia deixá-los sozinhos com um peru gigante e um monte de molho doce intragável? Então, no terceiro período livre, decidi ligar para minha mãe no trabalho. Queria que ela me dissesse que não haveria problema, eu acho, em passar o feriado no colégio interno, mas certamente não esperava que ela me dissesse, numa voz empolgada, que ela e o papai tinham comprado passagens para a Inglaterra logo depois de eu ter ligado e que planejavam passar o feriado num castelo numa segunda lua de mel.
— Ah, isso... isso é ótimo, — eu disse, depois me apressei em desligar, pois não queria que ouvisse meu choro. Acho que, de seu quarto, Alasca me ouviu bater o telefone com força, pois abriu a porta quando eu me virei para sair, mas não disse nada. Atravessei o círculo dos dormitórios, passei pelo campo de futebol e abrir caminho pela mata até chegar à margem do regato de Culver Creek, descendo pela ponte. Sentei a bunda numa pedra, meti os pés na terra escura do leito do rio e fiquei jogando pedrinhas nas águas claras e rasas. Elas caíam com um plop surdo que se perdia no murmúrio da corrente enquanto o regato dançava para o sul. As folhas e as agulhas dos pinheiros filtravam a luz do sol como num rendado, sarapintando o chão de sombras.
Pensei na única coisa da qual eu tinha saudades em casa: o escritório do meu pai com suas prateleiras embutidas que iam do chão ao teto, arqueando-se sob o peso de grossas biografias, e a poltrona de couro preto que era suficientemente desconfortável para evitar que eu me sentisse sonolento durante a leitura. Era ridículo ficar irritado daquele jeito. Eu tinha dispensado meus pais, mas parecia o contrário. Mesmo assim, senti saudades de casa, não restavam dúvidas.
Olhei para cima, na direção da ponte, e vi Alasca sentada numa das cadeiras azuis do Buraco do Fumo, e, embora tivesse achado que queria ficar sozinho, peguei-me dizendo: — Ei! — Depois, como ela não ouviu, gritei: — Alasca! — Ela veio até mim.
— Estava procurando por você, — ela disse e se sentou ao meu lado.
— Oi.
— Sinto muito, Gordo, — ela disse e me abraçou, descansando a cabeça em meu ombro. Ocorreu-me que ela nem mesmo sabia o que tinha acontecido, mas soava sincera.
— O que vou fazer?
— Vai passar o feriado de Ação de Graças comigo, seu bobinho. Aqui.
— Por que você não vai para casa nos feriados? — perguntei.
— Tenho medo de fantasmas, Gordo. E minha casa está cheia deles.

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