quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Dois dias antes

ACORDEI CEDO NA MANHÃ do dia seguinte, a boca seca e a respiração visível no ar frio. Takumi tinha trazido um fogão portátil na mochila, e o Coronel estava debruçado sobre o aparelho, esquentando um pouco de água para fazer café instantâneo. O sol brilhava intensamente, mas não conseguia vencer o frio. Sentei-me com o Coronel e provei o café (“O problema do café instantâneo é que ele cheira bem, mas tem gosto de bile”, o Coronel disse), então, um a um, Takumi, Lara e Alasca acordaram, e nós passamos o resto do dia nos escondendo, porém ruidosamente. Um esconderijo barulhento.
Naquela tarde, no celeiro, Takumi decidiu fazer uma competição de improviso.
— Você começa, Gordo, — ele disse. — Coronel-Catástrofe, você faz a batida.
— Eu não entendo de rap, — argumentei.
— Não tem problema. O Coronel também não entende de ritmo. Você só precisa fazer uma rimazinha qualquer, depois deixa comigo.
Com as mãos em concha sobre a boca, o Coronel começou a fazer ruídos estranhos que mais pareciam uma série de puns do que uma levada de bateria. E eu, bem, fiz um rap.
— Hmm, estamos no celeiro, o sol já vai se pôr. / Outro dia, na tevê, passou um filme de terror. / Cara, não consigo, tenho que parar. / Deixo meu amigo, o Takumi, continuar.
Takumi emendou. — Gordo, cara, mas que droga, a sua rima fede / mais que aquele filme com nosso amigo Freddy, / A hora do pesadelo, em que todo mundo morre. / Ontem foi legal, bebi, fiquei de porre. / Adoro minha touca, / a mulherada fica louca. / Eu venho do Japão, ele fica logo ali. / Quando eu era pequeno, me chamavam de sushi. / Mas acho que é normal, diferentes etnias, / Minha pele amarela é um ímã de vadias.
Alasca entrou no jogo depois.
— Assim você me ofende, esqueceu que eu sou menina? / Vou picar o seu traseiro, vou jogá-lo na latrina. / Eu gosto, é verdade, de um som mais feminista, / Agora vou mostrar que também sou uma rapista. / Eu tenho boas rimas, agito a plateia. / Gosto daquele filme de fantasma com o Geleia. / Se você falar mal do sexo feminino, / vai cair feito o Império Bizantino.
Takumi voltou.
— Se teu olho te escandaliza, eu posso arrancar fora. / Eu respeito as meninas, como o cavalo a espora. / Ai, mas que droga, agora empaquei. / Lara, continua de onde eu parei.
Lara cantou em voz baixa e nervosa — e com um descaso pelo ritmo ainda maior do que o meu.
— Meu nome é Lara, eu sou da Romênia, / Da, é difícil, eu conheço a Eslovênia. / O carro da Alasca téém muita elegância. / Eu faço chamadas de longa distância. / Minhas vogais são engraçadas, não? / Agora chega, Takumi, não sei rimar. / Segue você, que eu vou parar.
— Eu sou um arraso, Hiroshima e Nagasaki, / Um sucesso com as meninas, melhor que sukiyaki. / Represento meu país, bebo meu saquê. / Tem gente que não gosta, não consigo entender. / Não sou muito alto, não sou corpulento. / Diferente do Gordo, não sou macilento. / Meu nome é raposa, ouviu, seu mané? / Cuidado, eu sou brabo, pior que chulé. Chega.
O Coronel encerrou com uma improvisação de beat-boxing, e nós nos aplaudimos.
— Você foi ótima Alasca, — Takumi disse, rindo.
— Faço o que posso para representar as meninas. Lara me ajudou.
— Da, verdade.
Então, Alasca decidiu que era hora de enchermos a cara, embora não estivesse nem perto do anoitecer.
— Duas noites seguidas é abusar da sorte, — Takumi disse quando Alasca abriu a garrafa de vinho.
— Sorte é coisa de otário. — Ela sorriu e levou a garrafa aos lábios. O Coronel tinha trazido cream-crackers e um saco de queijo cheddar para o jantar. Bebemos o vinho tinto morno e comemos queijo e biscoito, e, quando o queijo acabou bem, sobrou mais espaço para o Strawberry Hill.
— Precisamos ir com mais calma, senão vou vomitar, — eu disse quando terminamos a primeira garrafa.
— Desculpa, Gordo. Não percebi que estávamos abrindo sua boca à força e despejando vinho goela abaixo, — o Coronel retrucou, jogando-me uma latinha de Mountain Dew.
— É bondade sua chamar essa porcaria de vinho, — Takumi disse, brincando.
Então, do nada, Alasca anunciou: — Melhor Dia / Pior Dia!
— Quê? — perguntei.
— Se continuarmos bebendo assim, vamos todos vomitar. Então, para diminuir o ritmo, vamos fazer um jogo. Melhor Dia/ Pior Dia.
— Não conheço, — o Coronel disse.
— Porque acabei de inventar. — Ela sorriu. Deitou-se de lado, ao longo de dois fardos de feno, a luz da tarde clareando o verde de seus olhos, a pele corada como um último vestígio do outono. Com a boca entreaberta e o olhar distante, ocorreu-me que ela já devia estar bêbada. O olhar perdido da intoxicação, pensei, e, enquanto a admirava, despreocupado, ocorreu-me que, bem, eu também estava um pouco bêbado.
— Legal! Como se joga? — Lara perguntou.
— Cada um conta como foi seu melhor dia. Quem contar a melhor história não precisa beber. Depois todos contam sobre o pior dia. Quem contar a melhor história não precisa beber. E assim por diante, segundo melhor dia, segundo pior dia, até vocês desistirem.
— Como sabe que vai ser um de nós? — Takumi perguntou.
— É que eu tenho mais resistência à bebida conto as melhores histórias, — ela respondeu. Difícil discordar dessa lógica. — Você começa, Gordo. O melhor dia da sua vida.
— Hmm... posso pensar rapidinho?
— Não deve ter sido tão bom se você precisa parar para pensar, — o Coronel disse.
— Vai à merda.
— Sensível.
— O melhor dia da minha vida foi hoje, — eu disse. — E a história é que eu acordei ao lado de uma menina húngara muito bonita. Estava frio, mas não muito frio. Tomei uma xícara morna de café instantâneo e comi sucrilhos sem leite, depois andei pela mata com a Alasca e o Takumi. Jogamos pedrinhas no lago, o que pode parecer tolice, mas não é. Sei lá. Sabe quando o sol fica desse jeito, com as sombras alongadas e esse tipo de luz clara e suave que antecede o pôr do sol? É a luz que deixa tudo melhor e mais bonito. E hoje tudo pareceu estar iluminado por essa luz. Bem, eu não fiz nada. Mas só de ficar aqui sentado, mesmo que seja para ver o Coronel talhando um galho ou sei lá o quê. Que seja. Foi um dia maravilhoso. Hoje. O melhor dia da minha vida.
— Você me acha bonita? — Lara disse, e riu, envergonhada. Pensei: Agora seria uma boa hora para fazer contato visual com ela, mas não tive coragem. — Eu sou romééna!
— Essa história acabou sendo bem melhor do que eu esperava, — Alasca disse, — mas a minha ainda é melhor.
— Quero só ver, — eu disse. Uma brisa começou a soprar, o capim alto se inclinando lá fora como se quisesse fugir do vento, e eu puxei o saco de dormir sobre os ombros para me aquecer.
— O melhor dia da minha vida foi em 9 de janeiro de 1997. Eu tinha 8 anos. Minha mãe me levou para o zoológico num passeio escolar. Eu gostei dos ursos. Ela gostou dos macacos. O melhor dia de todos. Fim de história.
— Só isso?! — o Coronel disse. — Esse foi o melhor dia da sua vida??!
— Foi.
— Eu gostei, — Lara disse. — Tambéém gosto dos macacos.
— Fraco, — o Coronel disse. Não achei fraco, era apenas mais uma das histórias intencionalmente vagas que Alasca gostava de contar, mais uma camada em sua aura de mistério. Mesmo sabendo que era intencional, não pude deixar de me indagar: O que é que tem de tão legal no zoológico? Mas, antes que pudesse perguntar, Lara se manifestou.
— Da, minha vez, — disse Lara. — É fácil. É o dia em que vim para cá. Eu sabia falar o idioma, mas meus pais não sabiam. Chegamos ao aeroporto e encontramos nossos parentes, tias e tios que eu néém mesmo conhecia, no aeroporto. Meus pais ficaram tão felizes! Eu tinha 12 anos, séémpre fora o bebezinho. Mas, naquele dia, meus pais me trataram como gente grande pela primeira vez. Porque não sabiam falar o idioma, da? Precisavam de mim para pedir comida e traduzir os formulários de imposto e imigração etc. e foi nesse dia que eles pararam de me tratar como criancinha. Aléém do mais, na Roméénia, nós éramos pobres. E, aqui, somos meio ricos. — Ela riu.
— Certo. — Takumi sorriu enquanto pegava a garrafa de vinho. — Vocês ganharam. Porque o melhor dia da minha vida foi quando perdi a virgindade. E, se vocês acham que vou contar essa história, precisam me deixar bem mais bêbado do que já estou.
— Nada mal, — o Coronel disse. — Nada mal. Querem saber qual foi o melhor dia da minha vida?
— Essa é a brincadeira, Chip, — disse Alasca, visivelmente aborrecida.
— O melhor dia da minha vida ainda não aconteceu. Mas eu sei como vai ser. Eu o vejo todo dia. O melhor dia da minha vida vai ser o dia em que eu comprar uma casa enorme para minha mãe. E não vai ser apenas numa área arborizada, mas em Mountain Brook, onde moram os pais dos Guerreiros de Dia de Semana. Os pais deles todos. E não vou comprar com hipoteca, não. Vou comprar com dinheiro vivo. Vou levar minha mãe de carro até lá, vou abrir a porta do carona, e ela vai saltar e ver a casa – a casa tem uma cerca de madeira, sabe, dois andares e tudo mais. Vou entregar as chaves para ela e vou dizer: 'Obrigado'. Cara, ela me ajudou a preencher a ficha de inscrição para esta escola. E me deixou vir para cá, o que não é tão simples para quem vem de onde eu venho, deixar o filho sair de casa para estudar. Então esse vai ser o melhor dia da minha vida.
Takumi entornou a garrafa e tomou alguns goles, depois passou para mim. Eu bebi, depois Lara bebeu, e, por fim, Alasca inclinou a cabeça para trás e virou a garrafa de ponta-cabeça, engolindo rapidamente o último quarto de vinho.
Enquanto abria outra garrafa, Alasca sorriu para o Coronel. — Você ganhou esse round. Agora, nos fale sobre seu pior dia.
— Meu pior dia foi quando meu pai nos abandonou. Ele é velho – deve ter uns 70 anos agora –, já era velho quando se casou com minha mãe e, mesmo assim, ele a traía. Ela descobriu, ficou furiosa e acabou apanhando. Então o expulsou de casa, e ele foi embora. Eu estava aqui. Minha mãe ligou, mas na hora não me contou sobre a traição, a agressão e tudo o mais. Disse apenas que ele tinha ido embora e que não iria mais voltar. E nunca mais o vi. Naquele dia, fiquei esperando que ele me ligasse e que me desse uma explicação, mas ele não fez isso. Nunca mais me ligou. Pensei que pelo menos fosse se despedir ou algo assim. Foi meu pior dia.
— Droga, perdi de novo, — eu disse. — Meu pior dia foi na sétima série, quando Tommy Hewitt mijou no meu uniforme de Educação Física e o professor disse que eu precisaria vestir o uniforme, senão seria reprovado. Educação Física da sétima série, certo? Não é a matéria mais importante do mundo. Mas, na época, eu achava muito importante. Comecei a chorar, tentei explicar para o professor o que tinha acontecido, mas era tão vergonhoso, e ele só gritava, gritava, gritava, até que eu decidi vestir o short e a camiseta mijados. Foi então que parei de me importar com o que as pessoas faziam. Simplesmente parei de me importar com o fato de eu ser um perdedor, de não ter amigos e tudo mais. Então acho que foi bom para mim, de certa forma, mas, na hora, achei terrível. Imaginem a cena: eu jogando vôlei ou sei lá o quê com a roupa ensopada de mijo enquanto Tommy Hewitt contava para todo mundo o que tinha feito. Foi meu pior dia.
Lara estava rindo. — Desculpa, Miles.
— Não tem problema, — eu disse. — Só nos conte seu pior dia para que também possamos rir da sua desgraça. — Eu sorri, e todos rimos juntos.
— Acho que meu melhor dia tambéém foi meu pior. Porque eu não fiz nada. Da, parece tolice, mas eu era criança, e a maioria das crianças de 12 anos não consegue, sabe, prééncher um formulário W-2.
— O que é isso? — perguntei.
— Viu só! É para imposto. Então. Foi o mesmo dia.
Lara sempre tivera de falar em nome dos pais, pensei, então talvez não tivesse aprendido a falar por si mesma. Eu também não era lá muito bom em falar por mim mesmo. Tínhamos algo importante em comum, um traço de personalidade que eu não compartilhava nem com Alasca nem com mais ninguém, embora, quase por definição, eu e Lara não pudéssemos expressar isso um para o outro. Talvez fosse o jeito como o sol-que-antecede-o-acaso batia em seus preguiçosos cachos morenos, mas, naquele momento, quis beijá-la. Para nos beijarmos, não seria necessário falar, e o vômito no jeans e os meses que passamos nos evitando pareceram sumir aos poucos.
— Sua vez, Takumi.
— Meu pior dia, — Takumi disse. — foi 9 de junho de 2000. Minha avó morreu no Japão. Morreu num acidente de carro. Eu ia visitá-la dali a dois dias. Ia passar as férias de verão com ela e com meu avô, mas, em vez disso, viajei para o seu funeral. A única vez que eu a vi de verdade, sem ser nas fotos, foi num funeral. Fizeram uma cerimônia budista, e ela foi cremada, mas, antes disso, foi colocada numa espécie de, bem – não é budista. A religião lá é mais complicada, então é meio budista e meio xintoísta, mas isso não interessa para vocês –, o fato é que ela estava numa espécie de pira funerária. E foi a única vez que vi minha avó, pouco antes de ela ser cremada. Esse foi meu pior dia.
O Coronel acendeu um cigarro e o jogou para mim, depois acendeu um de seu próprio maço. Era estranho, mas ele sabia exatamente quando eu queria um cigarro. Éramos de fato como um casal de velhinhos. Por um instante, pensei: É muito imprudente sair jogando cigarros acesos num celeiro cheio de feno, mas, então, o momento de cautela passou, e apenas tomei cuidado de não deixar as cinzas caírem no feno.
— Ainda não está bem claro quem é o vencedor, — o Coronel disse. — O campo está aberto. Sua vez, amiga.
Alasca se deitou de barriga para cima, os dedos entrelaçados atrás da cabeça. Falou suavemente, porém depressa, mas o dia silencioso estava se tornando uma noite silenciosa – não havia mosquitos, era inverno–, e nós a ouvimos com clareza.
— O dia seguinte ao do passeio no zoológico em que ela gostou dos macacos e eu dos ursos foi numa sexta-feira. Cheguei em casa depois da aula. Ela me deu um abraço e me mandou fazer a lição no quarto para poder assistir televisão mais tarde. Entrei no quarto, e acho que ela se sentou na mesa da cozinha, então ouvi um grito. Saí correndo, e ela estava caída no chão, com as mãos na cabeça, o corpo se contorcendo. Entrei em pânico. Devia ter ligado para a emergência, mas comecei a gritar e a chorar até que, por fim, ela parou de se contorcer. Pensei que ela tivesse adormecido e que sua dor tivesse cessado. Então simplesmente me sentei no chão ao seu lado e esperei até meu pai chegar em casa uma hora depois. Ele começou a gritar: 'Por que não ligou para a emergência?', tentando fazer massagem cardíaca, mas, àquela altura, ela já estava morta. Aneurisma. Pior dia da minha vida. Ganhei. Podem beber.
Foi o que fizemos.
Ninguém falou nada por um minuto, então Takumi perguntou: — Seu pai culpou você?
— Bem, a princípio não. Mas depois culpou sim. Por que não culparia?
— Você era só uma garotinha, — Takumi argumentou. Eu estava surpreso e me sentia desconfortável demais para falar, tentando encaixar aquilo no que eu já sabia sobre a família de Alasca. Sua mãe tinha lhe contado a piada de toc toc – quando Alasca tinha 6 anos. Sua mãe tinha parado de fumar – obviamente, não podia continuar fumando.
— É, eu era uma garotinha. Mas garotinhas sabem ligar para a emergência. Elas fazem isso o tempo todo. Passa o vinho para cá, — ela disse, séria e impassiva. Bebeu sem levantar a cabeça do feno.
— Sinto muito, — Takumi disse.
— Por que você nunca me contou isso? — o Coronel perguntou, com voz suave.
— A conversa nunca tomou esse rumo. — Então paramos de fazer perguntas. O que poderíamos dizer?
No longo silêncio que se seguiu, enquanto passávamos a garrafa de mão em mão e lentamente ficávamos mais bêbados, comecei a pensar no presidente William Mckinley, o terceiro presidente norte-americano a ser assassinado. Ele levou alguns dias para morrer depois de ser baleado. E, já próximo do fim, sua esposa começou a chorar e a gritar: “Eu também quero ir! Eu também quero ir!”. Então, reunindo suas últimas forças, Mckinley se virou para ela e disse suas últimas palavras: “Todos nós vamos.”
Foi o momento mais importante da vida da Alasca. Quando ela chorou e disse que tinha estragado tudo, agora eu entendia o que ela queria dizer. Quando ela falou que tinha decepcionado todo mundo, eu sabia de quem ela estava falando. Era o tudo e o todo mundo de sua vida, então não pude deixar de imaginar a cena: imaginei uma garotinha magricela de 8 anos com as mãos sujas de terra, olhando para a mãe que se contorcia no chão. Ela se sentou ao lado da mãe, que podia ou não estar morta, mas que provavelmente não estava respirando, embora continuasse quente. E, no meio-tempo entre o morrer e a morte, a pequena Alasca esperou com a mãe em silêncio. Então, através do silêncio e da embriaguez, vislumbrei uma imagem do que ela teria sido. Ela deve ter se sentido tão impotente, pensei, que a única coisa que ela poderia ter feito – pegar o telefone e ligar para uma ambulância – nem mesmo lhe passou pela cabeça. Chega uma hora em que percebemos que nossos pais não podem salvar a si mesmos nem a nós, que todos os que atravessam as águas do tempo acabam sendo dragados pela ressaca – que, em suma, todos nós vamos.
Então ela se tornou impulsiva. O medo da inércia fez com que ela entrasse num estado perpétuo de movimento. Quando o Águia ameaçou expulsá-la, talvez ela tenha dito o nome de Marya porque foi o primeiro nome que lhe veio à cabeça, porque naquele instante ela não queria ser expulsa e porque não conseguia pensar além do instante. Estava com medo, é claro. E talvez estivesse com medo de que o medo a paralisasse novamente.
'Todos nós vamos', Mckinley disse para a esposa, e é verdade. Lá está seu labirinto de sofrimento. Todos nós vamos. Encontrar uma saída para seu labirinto.
Não disse isso em voz alta para ela. Nem naquele dia, nem nunca mais. Não voltamos a falar sobre o assunto. Pelo contrário, sua história tornou-se apenas mais um pior dia, embora fosse pior dia do grupo. E enquanto, veloz, a noite caía, nós continuamos, bebendo e contando piadas.
Mais tarde naquela mesma noite, depois de Alasca ter enfiado o dedo na goela para vomitar na frente de todos nós, porque estava bêbada demais para caminhar até o mato, eu me deitei em meu saco de dormir. Lara estava deitada ao meu lado em seu próprio saco de dormir, quase encostada em mim. Empurrei a parede interna do saco para sobrepô-lo ao dela. Pressionei minha mão contra a sua. Podia senti-la, apesar das duas camadas de lona entre nós. Meu plano, que me parecia bastante engenhoso, era tirar o braço, enfiá-lo dentro de seu saco de dormir e segurar sua mão. Era um bom plano, mas, para tirar o braço daquele sarcófago, foi necessário me debater como um peixe fora d'água, e quase desloquei o ombro. Ela estava rindo – e não era comigo, era de mim –, mas não dissemos nada. Como era tarde demais para recuar, enfiei o braço em seu saco de dormir, e ela tentou conter um risinho enquanto meus dedos traçavam uma linha que ia de seu cotovelo até o pulso.
— Faz cócegas, — ela sussurrou. Lá se ia minha tentativa de ser sexy.
— Desculpa, — sussurrei.
— Não, eu gosto, — ela disse e segurou minha mão. Entrelaçou os dedos nos meus e os apertou com força. Depois se virou de lado e me beijou. Estou certo que estava com bafo de bebida e cigarro, mas ela não reparou. Nós estávamos nos beijando.
Pensei: isso é bom.
Pensei: Não sou ruim nesse negócio de beijar. Não mesmo.
Pensei: Decerto sou o maior beijador da história do universo.
De repente, ela riu e se afastou. Sacudiu-se para colocar uma das mãos para fora e enxugou o rosto.
— Você babou no meu nariz, — ela disse e riu.
Eu também ri, tentando lhe passar a impressão de que minha técnica de beijo de nariz tinha o propósito de ser engraçada.
— Desculpa. — Tomando emprestado o sistema de bases da Alasca, eu só tinha chegado próximo da primeira base cinco vezes em toda a minha vida, de modo que decidi culpar a falta de experiência. — Sou novo nesse negócio, — eu disse.
— Foi uma babação gostosa, — ela disse, depois riu e me deu outro beijo. Pouco tempo depois, estávamos completamente fora dos nossos sacos de dormir, nos beijando em silêncio. Ela se deitou em cima de mim, e eu pus as mãos em sua pequena cintura. Podia sentir seus seios pressionando meu peito. Ela escarranchou lentamente as pernas sobre mim. — Você é gostosinho, — ela disse.
— Você é linda, — eu disse e sorri para ela. No escuro, conseguia enxergar apenas a silhueta de seu rosto e seus grandes olhos redondos que piscavam para mim, as pestanas quase roçando em minha testa.
— Será que as duas pessoas que estão se beijando poderiam ficar quietas, por favor? — perguntou o Coronel, quase aos gritos, de seu saco de dormir. — As pessoas que não estão se beijando estão bêbadas e cansadas.
— Sobretudo. Bêbadas, — Alasca disse lentamente, como se estivesse com dificuldade para enunciar as palavras.
Nós quase não tínhamos nos falado, Lara e eu, e agora não podíamos falar por causa do Coronel. Então continuamos nos beijando em silêncio, sorrindo suavemente com nossas bocas e nossos olhos. Depois de termos nos beijado a ponto de ficar quase chato, sussurrei:
— Quer namorar comigo?
E ela disse: — Da, quero sim.
Dormimos juntos em seu saco de dormir, que me pareceu um pouco apertado, para ser sincero, mas foi gostoso. Eu nunca tinha sentido o corpo de outra pessoa contra o meu enquanto dormia. Foi um ótimo desfecho para o melhor dia da minha vida.

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