quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Dois dias depois

NÃO DORMI NAQUELA NOITE. O dia custou a raiar, e, quando raiou, o sol brilhando intensamente através das persianas, o radiador velho não conseguiu nos manter aquecidos, então o Coronel e eu nos sentamos no sofá e ficamos em silêncio. Ele começou a ler o almanaque.
Na noite anterior, eu tinha me aventurado no frio para ligar para os meus pais, e dessa vez, quando disse: “Oi, é o Miles”, e minha mãe respondeu: “O que houve? Está tudo bem?”, pude lhe dizer com convicção que não, não estava tudo bem. Meu pai pegou o telefone.
— O que houve? — perguntou.
— Não grite, — minha mãe disse.
— Não estou gritando; é o telefone.
— Bem, então fale mais baixo, — ela disse, de modo que custou um pouco até eu poder dizer alguma coisa. Quando chegou minha vez de falar, demorei para colocar as palavras em ordem:
— Minha amiga, Alasca, morreu num acidente de carro. — Olhei fixamente para os números de telefone e para os recados rabiscados na parede.
— Ah! Miles, — minha mãe disse. — Sinto muito, Miles. Quer voltar para casa?
— Não, — eu disse. — Quero ficar aqui... Não consigo acreditar, — o que ainda era verdade em parte.
— Que coisa horrível, — meu pai disse. — Coitados dos pais da menina. — Coitados, disse comigo e pensei no pai dela. Não conseguia nem imaginar o que meus pais fariam se eu morresse. Dirigindo bêbado. Santo Deus, se ele descobrisse, iria eviscerar o Coronel e eu.
— O que podemos fazer por você neste instante? — minha mãe perguntou.
— Só precisava que me atendessem e que falassem comigo. Isso vocês já fizeram. — Ouvi uma fungada atrás de mim – de resfriado ou de tristeza, não sei – e disse para os meus pais: — Alguém está querendo usar o telefone. Preciso ir.
A noite inteira, eu me senti paralisado no silêncio, aterrorizado. Do que tinha tanto medo, afinal? A coisa já tinha acontecido. Ela estava morta. Estava quente e macia contra a minha pele, minha língua em sua boca. Estava rindo, tentando me ensinar a beijar, prometendo continuar depois. E agora...
E agora ela ficava mais fria a cada instante, mais morta a cada respiração minha. Pensei: Isso é o medo: Perdi uma coisa importante, não consigo achá-la, preciso dela. É o que a pessoa sentiria se perdesse os óculos, fosse até uma ótica e descobrisse que todos os óculos do mundo tinham se acabado e que, agora, ela teria de se virar sem eles.
Pouco antes das oito da manhã, o Coronel anunciou sem especificar a quem: — Acho que teremos bufritos no almoço.
— É, — eu disse. — Está com fome?
— Não, não. Mas foi ela que deu esse nome, sabia? Quando chegamos aqui, os bufritos se chamavam ‘burritos frios’. Então ela começou a dizer bufritos, e todos imitaram, até a própria Maureee. — Fez uma pausa, — Não sei o que fazer, Miles.
— É, eu sei.
— Já decorei as capitais, — ele disse.
— Dos estados?
— Não, isso eu fiz na quinta série. Dos países. Diga um país.
— Canadá, — eu disse.
— Mais difícil.
— Hmm. Uzbequistão?
— Tashkent. — Ele nem mesmo parou para pensar. Estava ali, na ponta da língua, como se estivesse esperando eu dizer “Uzbequistão”, — Vamos fumar.
Fomos para o banheiro e abrimos a ducha. O Coronel pegou um maço de cigarros no bolso do jeans e riscou um fósforo. Mas o fósforo não acendeu.
Tentou outra vez. Não conseguiu. E mais outra, riscando com força, ficando mais e mais irritado, então jogou os fósforos no chão e gritou:
— MAS QUE MERDA!
— Está tudo bem, — eu disse, pegando um isqueiro no bolso da calça.
— Não, Gordo, não está, — ele disse, jogando o cigarro no chão e ficando de pé, subitamente irritado. — Que merda! Santo Deus, como isso foi acontecer? Como ela pôde ser tão idiota? Nunca parou para pensar em nada. Tão impulsiva. Meu Deus. Não está tudo bem. Não acredito que ela tenha sido tão idiota!
— Deveríamos tê-la impedido, — eu disse.
Ele estendeu o braço na direção do boxe, desligou o chuveiro e bateu com a mão espalmada na parede de azulejo.
— É, eu sei que deveríamos tê-la impedido. Porra! Sei muitíssimo bem que deveríamos tê-la impedido. Mas não deveríamos precisar fazer isso. Tínhamos de vigiá-la como uma garotinha de três anos. Uma pisada de bola, e ela morre. Meu Deus! Estou ficando maluco. Vou dar uma caminhada.
— Tudo bem, — respondi, tentando soar calmo.
— Desculpa, — ele disse. — Estou me sentindo mal, como se estivesse morrendo.
— E está, — eu disse.
— É. Todos nós estamos. Nunca se sabe. De repente. PUF. Pronto, acabou.
Eu o segui até o quarto. Ele pegou o almanaque no beliche de cima, fechou o zíper do casaco, bateu a porta e PUF. Sumiu.
Quando amanheceu, chegaram as visitas. Uma hora depois de o Coronel ter saído, nosso colega maconheiro, Hank Walsten, veio me oferecer um baseado. Recusei educadamente. Ele me abraçou e disse: — Pelo menos foi instantâneo. Não houve dor.
Eu sabia que era sua maneira de ajudar, mas ele simplesmente não entendia. Havia dor, sim. Uma dorzinha interminável em meu estômago que não passava nem mesmo quando eu me ajoelhava nos azulejos frios do banheiro, vomitando em seco.
Além do mais, como a morte podia ser “instantânea”? Quanto tempo é um instante? Um segundo? Dez? A dor que ela sentiu nesses poucos segundos deve ter sido horrível. Seu coração foi esmagado, o pulmão parou de funcionar, e não havia nem ar nem sangue em sua cabeça, apenas desespero.
Mas que diabos significa “instantâneo”? Nada é instantâneo. Arroz instantâneo leva cinco minutos, pudim instantâneo uma hora. Duvido que um instante de dor intensa pareça instantâneo.
Será que ela tivera tempo de ver a vida passar diante de seus olhos? Será que eu estava lá? Será que o Jake estava lá? Ela tinha prometido, eu lembrei, tinha prometido que continuaríamos depois, mas eu sabia que ela estava indo para o norte quando morreu, para Nashville, para Jake. Talvez aquilo não tivesse significado nada para ela. Talvez tivesse sido apenas mais um exemplo de sua enorme impulsividade. Enquanto Hank permanecia de pé no vão da porta, eu olhava através dele, olhava para o círculo dos dormitórios, que estava quieto demais, imaginando se eu tivera alguma importância para ela, e só conseguia me dizer que sim, claro, ela tinha prometido. Continuaríamos depois.
Lara veio em seguida, os olhos pesados e inchados.
— O que aconteceu? — ela perguntou enquanto eu a abraçava na ponta dos pés para colocar o queixo sobre sua cabeça.
— Não sei, — eu disse.
— Viram a Alasca naquela noite? — ela perguntou, falando com a boca encostada em minha clavícula.
— Ela se embebedou, — eu disse. — O Coronel e eu fomos dormir. Acho que ela deve ter saído de carro. — E isso se tornou a mentira-padrão.
Senti os dedos de Lara, úmidos de lágrimas, pressionando minha palma e, sem pensar direito, tirei a mão.
— Desculpa, — eu disse.
— Tudo béém, — ela disse. — Se quiser me visitar, estarei em meu quarto. — Não quis visitá-la. Não sabia o que dizer – fazíamos parte de um triângulo amoroso com um lado morto.
Naquela tarde, entramos novamente em fila no ginásio para participar de uma Assembléia-geral. O Águia anunciou que, no domingo, a escola ia fretar um ônibus para o funeral em Vine Station. Quando nos levantamos para sair, reparei que Takumi e Lara estavam caminhando em nossa direção. Lara me viu e sorriu palidamente. Retribuí o sorriso e me virei depressa, escondendo-me no meio da multidão que saía em fila e em prantos pelo ginásio.




Estou dormindo. Alasca entra voando em meu quarto. Está nua e intacta. Os seios, que eu senti muito rapidamente no escuro, pendem de seu corpo, reluzentes e volumosos. Ela paira a centímetros de mim, o hálito quente e doce em meu rosto, como uma brisa percorrendo o capim alto.
— Oi, — eu digo. — Senti sua falta.
— Você está bonito, Gordo.
— Você também.
— Estou peladona”, ela diz, depois ri. “Como foi que fiquei peladona?
— Só quero que fique comigo, — eu digo.
— Não, — ela diz, e seu corpo cai pesadamente em cima de mim, esmagando meu peito, roubando meu ar. Ela está fria e molhada, como gelo derretido. A cabeça está partida. Um líquido viscoso meio rosado e meio cinzento aflora em seu crânio fraturado e pinga em meu rosto. Ela fede a formol e carne estragada. Sobe-me uma ânsia de vômito, e eu a empurro para o lado, apavorado.
Acordei caindo e me espatifei no chão com um baque surdo. Ainda bem que eu era o homem do beliche de baixo. Tinha dormido catorze horas. Já era de manhã. Quarta- feira, pensei. O funeral seria no domingo. Indaguei-me se o Coronel conseguiria voltar a tempo, onde quer que estivesse. Ele tinha de ir ao funeral, porque eu não conseguiria ir sozinho, e ir com outra pessoa seria o mesmo que ir sozinho.
O vento frio fustigava a porta. As árvores para além da janela dos fundos balançavam com tamanha violência que eu as ouvia do meu quarto. Sentei-me na cama e pensei no Coronel em algum lugar lá fora, a cabeça baixa, os dentes trincados, caminhando contra o vento.

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