quinta-feira, 16 de outubro de 2014

O dia seguinte

O CORONEL DORMIU O SONO INTRANQUILO dos bêbados, e eu fiquei deitado com a barriga para cima no beliche de baixo, a boca formigando e viva como se ainda estivesse beijando, e provavelmente teríamos dormido e perdido as aulas daquela manhã se não fosse o fato de o Águia ter nos acordado às 8h, com três rápidas batidinhas na porta. Virei na cama quando ele entrou, e a luz da manhã se derramou pelo quarto.
 Preciso que vocês vão para o ginásio, — ele disse. Semicerrei os olhos em sua direção. O Águia estava invisível devido à luz clara que lhe batia às costas. — Agora, — acrescentou, e eu soube. Estávamos perdidos. Fôramos pegos. Muitos relatórios de progresso. Muita bebida num curto espaço de tempo. Por que eles tiveram de beber na noite anterior? Então senti novamente seu gosto: vinho, fumaça de cigarro, batom e Alasca, e me indaguei se ela tinha me beijado porque estava bêbada. Não me expulse, pensei. Por favor. Só comecei a beijá-la agora.
E, como para entender a minhas preces, o Águia disse:
 Vocês não estão encrencados. Mas precisam ir para o ginásio agora.
Ouvi o Coronel se revirar na cama de cima.
 O que houve?
 Aconteceu uma coisa terrível, — o Águia disse e fechou a porta.
Enquanto pegava o jeans no chão, o Coronel disse:
 Isso aconteceu dois anos atrás. Quando a mulher do Hyde faleceu. Acho que agora foi o Velho. O pobre coitado já estava nas últimas. — Olhou para mim, os olhos semiabertos e injetados, e bocejou.
 Parece que você está com um pouco de ressaca, — observei.
Ele fechou os olhos.
 Então estou com uma ótima aparência, Gordo, porque, na verdade, estou com muita ressaca.
 Eu beijei a Alasca.
 Pois é. Eu não estava tão bêbado assim. Vamos embora.
Atravessamos o círculo dos dormitórios e caminhamos para o ginásio. Eu estava com calças jeans largas, uma camiseta regata e um caso grave de cara de sono. Todos os professores estavam no círculo dos dormitórios, batendo à porta dos alunos, mas não vi o Sr. Hyde. Imaginei-o morto em sua casa e me perguntei quem o teria descoberto e como teriam dado por sua falta antes mesmo de a aula ter começado.
 Não estou vendo o Sr. Hyde, — eu disse para o Coronel.
 Pobre-diabo.
Quando chegamos, o ginásio estava cheio pela metade. Um púlpito tinha sido colocado no meio da quadra de basquete, próximo à arquibancada. Sentei-me na segunda fila, logo atrás do Coronel. Meus pensamentos oscilavam entre a tristeza pelo Sr. Hyde e a felicidade por Alasca, enquanto me lembrava de sua boca bem próxima sussurrando: "Continuaremos depois?".
E não me ocorreu – nem mesmo quando o Sr. Hyde entrou no ginásio, arrastando os pés, dando passinhos miúdos na nossa direção.
Bati no ombro do Coronel e disse:
 O Hyde está aqui.
E o Coronel:
 Puta merda!
E eu:
 O que foi?
E ele:
 Cadê a Alasca?
E eu:
 Não.
E ele:
 Gordo, ela está ou não está aqui? — Então nos levantamos e sondamos os rostos no ginásio.
O Águia caminhou até o púlpito e disse:
 Estão todos presentes?
 Não, — eu respondi. — A Alasca não está.
O Águia olhou para baixo.
 E quanto ao resto de vocês?
 A Alasca não está presente!
 Certo, Miles. Obrigado.
 Não podemos começar sem a Alasca.
O Águia olhou para mim. Estava chorando, mas sem fazer barulho. Lágrimas caíam dos seus olhos para mim, mas não era o Olhar do Juízo Final. Pestanejando com o rosto coberto de lágrimas, o Águia parecia pedir desculpas.
 Por favor, senhor, — eu disse. — Não podemos esperar pela Alasca? — Senti que todos no ginásio estavam olhando para nós, tentando decifrar o que agora eu já sabia, mas não queria admitir.
O Águia olhou para baixo e mordeu o lábio superior.
 Ontem à noite, Alasca Young sofreu um terrível acidente de carro. — Agora as lágrimas escorriam com maior rapidez. — E faleceu. Ela morreu.
Por um momento, todos no ginásio se calaram. O lugar nunca estivera tão silencioso, nem mesmo quando o Coronel pedira silêncio e ridicularizara os adversários na linha do lance livre. Olhei para baixo, para a nuca do Coronel. Só fiquei olhando para seus cabelos espessos e volumosos. Por um instante, o silêncio foi tão grande que era possível ouvir o barulho da não respiração, o vácuo criado por 190 estudantes que tinham perdido o fôlego com o susto.
Pensei: É tudo culpa minha.
Pensei: Não estou me sentindo muito bem.
Pensei: Vou vomitar.
Levantei-me e corri para fora do ginásio. Consegui chegar até uma lata de lixo a um metro e meio das portas duplas do edifício e ameacei vomitar sobre algumas garrafas de Gatorade e um lanche meio comido do McDonald’s. Mas não saiu nada. Só ameacei vomitar, os músculos do estômago se contraindo e a garganta se abrindo para soltar um bléé ofegante e gutural, repetindo os movimentos do vômito. Entre um engasgo e uma tosse, eu inspirava profundamente. Sua boca. Sua boca morta e fria. Não continuaríamos depois. Eu sabia que ela estava bêbada. Nervosa. Era óbvio que não se podia deixar uma pessoa dirigir bêbada e nervosa. Era óbvio. Pelo amor de Deus Miles, qual é o seu problema? Então, finalmente, o vômito me subiu novamente, e – então está tudo bem, calma, sério, ela não está morta.
Não está morta, está viva. Está viva em algum lugar. Está na floresta. Alasca está se escondendo na floresta e não está morta, só está se escondendo. Só está pregando uma peça em todos nós. Mais uma Peça Extraordinária pregada por Alasca Young. Alasca só estava sendo Alasca, engraçada e brincalhona, sem saber quando e como pisar no freio.
Então me senti bem melhor, porque ela não tinha morrido coisíssima nenhuma.
Voltei para o ginásio, e todos pareciam estar em diferentes estágios de desintegração. Era como algo que se vê na tevê, um documentário da National Geographic sobre rituais fúnebres. Vi Takumi de pé ao lado de Lara, com a mão em seu ombro. Vi Kevin com o cabelo à escovinha, a cabeça metida entre os joelhos. Uma garota chamada Molly Tan, que tinha estudado Pré-Cálculo conosco, ululava tristemente, batendo com os punhos fechados nas próprias coxas. Eu conhecia e desconhecia aquela gente. Todo o mundo parecia estar se desintegrando. Então vi o Coronel, os joelhos dobrados contra o peito, deitado de lado na arquibancada. Madame O’Malley estava sentada ao seu lado, as mãos pairando sobre seus ombros sem tocá-los.
O Coronel gritava. Inspirava depois gritava. Inspirava. Gritava. Inspirava. Gritava.
No começo, pensei que eram apenas gritos. Mas, depois de algumas tomadas de fôlego, notei um ritmo. E, depois de mais algumas, percebi que o Coronel estava falando. Estava gritando: — Desculpa.
Madame O’Malley pegou sua mão.
 A culpa não é sua, Chip. Você não podia ter feito nada. — Mas, se ao menos ela soubesse...
Eu só fiquei ali, olhando para aquela cena, pensando nela viva. Senti uma mão em meu ombro e me virei. Era o Águia. Eu lhe disse:
 Acho que isso é apenas mais um de seus trotes idiotas.
E ele respondeu:
 Não, Miles, não. Sinto muito.
Minhas bochechas se afoguearam, e eu disse:
 Ela é muito boa nisso. Acho que seria capaz de fazer uma coisa dessas.
E ele respondeu:
 Eu vi o corpo. Sinto muito...
 O que aconteceu?
 Alguém estava acendendo bombinhas na floresta, — ele disse. Fechei os olhos e os apertei com força, o fato inegável bem diante de mim: eu a tinha matado. — Fui atrás deles, e acho que ela aproveitou para sair com o carro. Estava tarde. Ela estava em I-65, ao sul do centro da cidade. Um caminhão tinha derrapado, bloqueando a pista. A polícia tinha acabado de chegar. E ela bateu de frente na viatura, nem chegou a desviar. Devia estar muito embriagada. A polícia detectou hálito etílicio.
 Como sabe disso? — Eu perguntei.
 Eu vi o corpo, Miles. Falei com a polícia. Foi instantâneo. Ela bateu com o peito no volante. Sinto muito.
Perguntei: viu o corpo? Ele disse que sim. Perguntei como ela estava. Só um pouco de sangue escorrendo pelo nariz, ele disse. Então me sentei no chão do ginásio. Podia ouvir os gritos do Coronel e sentir os tapinhas em minhas costas, enquanto eu me inclinava para a frente, mas só conseguia ver seu corpo nu estendido numa mesa de metal, um pequeno fio de sangue escorrendo pelo nariz em meia-lua, os olhos verdes abertos, olhando para longe, a boca franzida sugerindo um sorriso. Ela parecera tão quente junto ao meu corpo, os lábios macios e quentes nos meus.
O Coronel e eu estamos voltando para o quarto em silêncio. Estou olhando para o chão. Não consigo parar de pensar que ela está morta. Não consigo parar de pensar que ela simplesmente não pode estar morta. As pessoas não morrem assim de repente. Estou sem fôlego. Estou com medo, como se alguém tivesse dito que ia me bater depois da aula, e agora, fosse o sexto período e eu soubesse o que me aguardava. Está tão frio – literalmente gelado -, e eu me imagino correndo até o regato e mergulhando de cabeça, o regato tão raso que minhas mãos tocam nas pedras do fundo e meu corpo desliza pela água fria, o choque térmico entorpecendo meu corpo, e eu fico ali, boiando, seguindo a corrente até os rios Cahaba e Alabama e desaguando na baía de Mobile e no golfo do México.
Quero me derreter e me fundir à grama marrom que range sob meus pés e os do Coronel enquanto voltamos para o quarto em silêncio. Seus pés são grandes, grandes demais para a sua altura, e o tênis antigo mais parece um sapato de palhaço. Eu me lembro das sandálias dela, pendendo dos dedos do pé com as unhas pintadas de azul, enquanto nos balançamos no balanço perto do lago. Será que o caixão ficará aberto? Será que o agente funerário conseguirá recriar seu sorriso? Ainda posso ouvir suas palavras: “Isso é divertido, mas estou com sono. Continuaremos depois?”
As últimas palavras de Henry Ward Beecher, o pregador do século XIX, foram: “Agora vem o mistério.” O poeta Dylan Thomas, que gostava de beber tanto quanto Alasca, disse: “Tomei dezoito doses de uísque. Creio que é um novo recorde”, antes de morrer. As favoritas da Alasca eram do dramaturgo Eugene O’Neill: “Nasci num quarto de hotel e – maldição! – vou morrer num quarto de hotel.” Até mesmo as vítimas de acidentes de carro, às vezes, tinham tempo para dizer suas últimas palavras. A princesa Diana disse: “Meu Deus, o que aconteceu?” James Dean, o astro do cinema, disse: “Eles precisam nos ver”, antes de bater seu Porsche em outro carro. Conheço tantas últimas palavras. Mas jamais saberei quais foram as dela.
Estou vários passos à sua frente quando percebo que o Coronel desabou. Viro-me, e ele está deitado com o rosto no chão.
 Precisamos nos levantar, Chip. Precisamos nos levantar. Precisamos chegar até o quarto.
O Coronel vira a cabeça para mim, olha em meus olhos e diz?
 Não. Estou. Conseguindo. Respirar.
Mas ele está respirando. Sei disso porque o vejo ofegar, como se pretendesse encher os pulmões de um defunto. Eu o ajudo a se levantar, e ele se agarra em mim e chora, voltando a repetir:
 Sinto muito.
Era a primeira vez que nos abraçávamos, eu e o Coronel, e não há muito o que dizer, porque ele tem mais é que sentir muito. Coloco a mão em sua nuca e digo a única verdade:
 Também sinto muito.

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