quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Oitenta e quatro dias antes

TRÊS DIAS DEPOIS, começou a chover. Minha cabeça ainda doía, e o galo enorme em minha têmpora esquerda parecia, segundo o Coronel, um pequeno mapa topográfico da Macedônia, que eu nem mesmo sabia que era um lugar, quanto mais um país. E, naquela segunda-feira, quando o Coronel e eu passamos pela grama crestada meio morta, eu disse:
— Acho que uma chuvinha agora até cairia bem.
O Coronel olhou para as nuvens baixas que se aproximavam rápida e ameaçadoramente e disse:
— Caia bem ou caia mal, o fato é que vai cair.
E caiu mesmo. Vinte minutos depois de a aula de francês ter começado, Madame O´Malley estava conjugando o verbo acreditar no presente do subjuntivo. Que jê croieQue tu croie. Quíl ou qu’elle croie. Repita aquilo como se não fosse um verbo, mas um mantra budista. Que jê croie; que tu croies; qu’il ou qu’elle croie. Que coisa mais engraçada pra se ficar repetindo: que eu acredite, que tu acredites, que ele ou ela acredite. Acredite no quê? eu pensei, e foi então que a chuva desabou.
Caiu tudo de uma vez, numa torrente furiosa, como se Deus estivesse zangado e quisesse nos afogar. Choveu dia após dia, noite após noite. Chovia tanto que eu não conseguia ver o outro lado do círculo dos dormitórios, tanto que o lago transbordou e as ondas alcançaram o balanço, engolindo metade da praia falsa. No terceiro dia, abandonei o guarda-chuva e passei a andar permanentemente molhado. No refeitório, tudo tinha um gostinho ácido de chuva, tudo fedia mofo. E os banhos, ironicamente, saíram de moda, porque em toda parte, caía água com maior pressão do que nos chuveiros.
A chuva nos transformou em ermitãos. O Coronel passava seus períodos livres no sofá, lendo o almanaque e jogando videogame, e eu não sabia se ele queria conversar ou se queria ficar sentado na espuma branca, bebendo sua ambrosia em paz.
Depois do desastre que foi nosso “encontro”, achei melhor não falar com Lara em hipótese alguma, com medo de ter outra concussão e/ou crise de vômito, embora, no dia seguinte, na aula de Pré-Cálculo, ela tivesse dito: — Nu, não foi nada.
Eu só via Alasca nas salas de aula, mas não conseguia falar com ela, porque ela sempre chegava atrasada e saía ao primeiro sinal, antes mesmo que eu tivesse tempo de tampar a caneta e fechar o caderno.
Na quinta noite de chuva, entrei no refeitório disposto a voltar para o quarto e comer bufrito requentado se Alasca e/ou o Takumi não estivessem jantando (eu sabia perfeitamente que o Coronel estaria no Quarto 43, bebendo leite com vodca). Mas fiquei, porque vi Alasca sentada sozinha, de costas para uma janela riscada pela chuva. Peguei um prato de quiabo frito e me sentei ao seu lado.
 — Meu Deus, parece que isso não tem fim, — comentei referindo-me à chuva.
— Verdade, — ela disse. Seus cabelos molhados pendiam da cabeça cobrindo a maior parte de seu rosto. Eu comi um pouco. Ela comeu um pouco.
— Como tem passado?  perguntei por fim.
— Não estou a fim de responder a perguntas que comecem com ‘porque’, ‘o que’, ‘onde’, ‘quando’.”
— Por que?
— Isso se encaixa na categoria dos ‘porquês’. No momento, não estou respondendo ‘por quês’. Acho melhor eu me mandar. — Ela franziu os lábios e expirou lentamente, como o Coronel fazia para soprar fumaça.
— O que... — parei e reformulei a pergunta. — eu fiz alguma coisa? — perguntei.
Ela pegou a bandeja e se levantou antes de responder.
— Claro que não, queridinho.
Aquele seu “queridinho” não soou romântico, soou condescendente, como se um garoto em meio à sua primeira tempestade bíblica não fossem capaz de compreender seus problemas – fossem eles quais fossem. Tive de me conter para não revirar os olhos, se bem que ela não teria visto, pois já estava saindo do refeitório, com os cabelos pingando sobre a face.

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