quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Oitenta e sete dias antes

NOSSO ENCONTRO TRIPLO E MEIO começou bastante bem. Eu estava no quarto da Alasca — ela tinha concordado em passar minha camisa social verde para me arranjar uma namorada -, quando o Jake apareceu. Com cabelos loiros que lhe caíam até os ombros, a barba escura por fazer e o tipo de crueza fabricada que abria portas para um carreira de modelo, Jake era tão bonito quanto um namorado da Alasca deveria ser. Ela pulou em cima dele e o enlaçou com as pernas (Deus me livre, eu pensei, se fazem isso comigo, eu caio). Já tinha ouvido Alasca falar sobre beijos, mas até então nunca a tinha visto beijar ninguém. Enquanto ele a segurava pela cintura, ela se inclinou para a frente, os lábios fartos entreabertos, a cabeça ligeiramente inclinada, e envolveu a boca dele com tamanha paixão que tive a impressão de que deveria desviar os olhos, mas não consegui. Algum tempo depois, ela se soltou de Jake e nos apresentou.
— Esse aqui é o Gordo, — ela disse. Jake e eu nos cumprimentamos.
— Alasca me falou muito sobre você, — ele disse, com um leve sotaque sulista, um dos poucos que eu tinha ouvido fora do McDonalds. — Espero que o encontro dê certo hoje à noite, não quero saber de ninguém roubando minha Alasca de mim.
— Deus, como você é fofo! — Alasca exclamou antes que eu pudesse responder e tornou a beijá-lo. — Desculpa. — Ela riu. — É que não consigo parar de beijar meu namorado.
Vesti minha camisa verde recém-passada e nós três fomos buscar o Coronel, Sara, Lara e o Takumi, depois caminhamos até o ginásio para ver os Nada de Culver Creek enfrentar a Academia Harsden, uma escola particular situada em Mountain Brook, o subúrbio mais rico de Birmingham. O ódio que o Coronel sentia por Harsden queimava como que acendido por mil sóis.
— Se tem uma coisa que eu odeio mais do que gente rica, — ele me disse enquanto caminhávamos para o ginásio, — é gente burra. E os alunos de Harsden são todos ricos, mas são burros demais para entrar na Creek.
Como aquilo era para ser um encontro, fiz menção de me sentar ao lado de Lara, mas, no meio do caminho, quando ia passando por Alasca, que estava sentada, ela me olhou enfezada e deu uma batidinha no assento ao seu lado.
— Não posso me sentar com a minha namorada? — perguntei.
— Gordo, um de nós tem sido mulher a vida inteira. O outro nem sequer pegou num peito. Se eu fosse você, eu me sentava, tentava parecer bonitinho e agia daquele seu jeito distraído, mas simpático.
— Tudo bem. Você é que manda.
Jake disse:
— É mais ou menos isso que eu faço para agradar a Alasca.
— Uau, — ela disse, — que fofo! Gordo, já falei que o Jake vai gravar um CD com a banda dele? Eles são ótimos. Uma mistura de Radio Head com Flamingo Lips. Já falei que fui eu que inventei o nome da banda, Hickman Territory? — Então, vendo que estava sendo boba: — Já falei que o Jake é bem-dotado? Parece um cavalo e é ótimo amante, muito atencioso.
— Santo Deus! — Jake sorriu. — Não na frente das crianças!
Eu queria odiar o Jake, é claro, mas, vendo os dois juntos, sorrindo e se agarrando, não consegui odiá-lo. Eu queria ser ele, mas tentei lembrar que aparentemente eu estava saindo com outra pessoa.
A estrela do time da Academia Harsden era um gigante de dois metros de altura chamado Travis Eastman, conhecido por todos, acho que até mesmo por sua mãe - como o Animal. Quando o Animal foi bater seu primeiro lance livre, o Coronel não conseguiu refrear os palavrões enquanto o provocava:
— O papai dá tudo para você, seu caipira burro, filho de uma égua!
O Animal se virou para a arquibancada com um olhar feroz, e o Coronel quase foi expulso depois do primeiro lance livre, mas sorriu para o juiz e disse:
— Desculpa!
'Pretendo ficar mais tempo hoje', ele me disse.
No começo do segundo quarto, nosso time estava perdendo por uma margem surpreendentemente pequena de apenas vinte e quatro pontos, e o Animal estava na linha do lance livre, quando o Coronel olhou para o Takumi e disse:
— É agora! — Takumi e o Coronel se levantaram quando a multidão fez Shhh...
— Não sei se é a melhor hora para falar isso, — o Coronel gritou o Animal, — mas meu amigo Takumi deu uns beijos na sua garota antes de a partida começar.
Todo o mundo riu – exceto o Animal, que se afastou da linha do lance livre e caminhou lentamente em nossa direção com a bola.
— Acho melhor fugirmos, — Takumi disse.
— Ainda não fui expulso, — o Coronel replicou.
— Até mais! — Takumi disse.
Não sei se estava nervoso com o encontro (embora houvesse cinco pessoas entre mim e minha garota em potencial) ou se fiquei com medo da encarada do Animal, mas, por alguma razão, saí correndo atrás do Takumi. Pensei que estivéssemos a salvo quando começamos a contornar a arquibancada, então, com o canto do olho, reparei num objeto laranja cilíndrico que ficava cada vez maior, como um sol se aproximando rapidamente.
Pensei: Acho que isso vai bater em mim.
Pensei: Deveria me abaixar.
E, no meio-tempo entre o pensar e o agir, a bola me atingiu em cheio na lateral do rosto. Desabei, batendo com a nuca no piso do ginásio. Depois me levantei como se não estivesse machucado e saí.
O orgulho me pusera de pé no ginásio, mas, do lado de fora, precisei me sentar.
— Sofri uma concussão, — anunciei, absolutamente convicto do diagnóstico.
— Não foi nada, — disse Takumi, correndo de volta até mim. — Vamos dar o fora daqui antes que nos matem.
— Sinto muito”, eu disse, mas não consigo me levantar. Sofri uma leve concussão.
Lara veio correndo e se sentou ao meu lado.
— Você está béém?
— Sofri uma concussão, — eu disse.
Takumi se sentou ao meu lado e me olhou bem nos olhos.
— Você lembra do que aconteceu?
— O Animal me acertou.
— Você sabe onde está?
— Num encontro triplo e meio.
— Não foi nada, — Takumi disse — Vamos embora.
Então me inclinei para frente e vomitei na calça da Lara. Não sei dizer por que não me inclinei para trás ou para os lados. Inclinei-me para a frente e virei a boca na direção de sua calça jeans - que dava um belo contorno à sua bunda, o tipo de calça que as garotas usam quando querem ficar bonitas sem mostrar que estão querendo ficar bonitas -, e vomitei bem em cima dela.
A maior parte era pasta de amendoim, mas também havia um pouco de milho.
— Ai! — ela disse, surpresa e ligeiramente horrorizada.
— Ai, meu Deus! — eu disse. — Desculpa.
— Acho que você pode ter sofrido uma concussão, — Takumi disse como se ninguém tivesse sugerido essa possibilidade.
— Estou com náusea e tontura, sintomas geralmente associados a uma concussão leve, — eu declamei. Enquanto Takumi procurava o Águia, e Lara trocava de calça, fiquei estirado na calçada de concreto. O Águia voltou com a enfermeira da escola, que me diagnosticou - olha só - com uma concussão, Takumi me levou de carro para o hospital, com a Lara no assento do carona, e, pelo que me disseram, fiquei deitado no banco de trás, repetindo lentamente as palavras "Os Sintomas. Geralmente. Associados. A. Uma. Concussão."
Então passei meu encontro no hospital, com a Lara e o Takumi. O médico me disse para ir para casa e dormir bastante, mas com a garantia de ter alguém me acordando a cada quatro horas.
Eu me lembro vagamente de Lara no vão da porta, o quarto escuro e o corredor lá fora escuro, e tudo bastante suave e confortável, mas girando, o mundo pulsando como se levado pela cadência pesada de um baixo. Lembro-me vagamente de vê-la sorrindo para mim do vão da porta, um sorriso de garota, cintilante e ambíguo, que parecia insinuar uma resposta para a pergunta, mas não dizia nada. A pergunta, aquela que todos nós fazemos desde que as garotas deixaram de ser nojentas, a pergunta que é simples demais para não ser complicada: será que ela gosta de mim ou gosta de mim? Então caí no sono, profunda e eternamente, e dormi até as três da manhã, quando o Coronel me acordou.
— Ela me dispensou, — ele disse.
— Eu sofri uma concussão, — repliquei.
— Eu sei. É por isso que estou acordando você. Videogame?
— Tudo bem. Mas tira o som. Minha cabeça está doendo.
— Pois é. Fiquei sabendo que você vomitou na Lara. Muito delicado da sua parte.
— Dispensou? — perguntei enquanto me levantava.
— Dispensou. A Sara foi dizer para o Jake que eu tinha tesão pela Alasca. Com essas mesmas palavras. Nessa mesma ordem. Então respondi: ‘Nada aqui me dá tesão. Se quiser, eu mostro.’ A Sara não deve ter acreditado, porque depois veio dizer que sabia que eu tinha ficado com a Alasca. O que, diga-se de passagem, é ridículo. Eu. Não. Sou. Infiel. — Ele disse, então o jogo finalmente terminou de carregar, e eu o ouvi com a atenção dividida enquanto dirigia um stock-car em círculos numa pista silenciosa de Talladega. As curvas me deixaram enjoado, mas continuei firme.
— Então Alasca ficou furiosa. — Ele tentou imitar a voz dela, deixando-a mais estridente e dolorosa do que realmente era. — ‘As mulheres não devem falar mal umas das outras! Você violou o acordo sagrado entre nós, mulheres! Como é que vamos conseguir vencer a opressão paternalista se ficarmos nos apunhalando pelas costas?!', e assim por diante. Então o Jake tentou defender a namorada, dizendo que ela jamais faria uma coisa dessas, porque o amava. E eu falei, ‘Não liguem para a Sara. Ela gosta de provocar as pessoas’ Então ela me perguntou por que eu não a defendia, e, entre uma coisa e outra, acabei dizendo que ela era uma vadia maluca, o que não pegou muito bem. A garçonete nos expulsou e, no estacionamento, ela disse: ‘Já estou cheia’ eu a encarei, e ela disse: ‘Nosso namoro terminou.
Ele parou de falar, — Nosso namoro terminou? — repeti. Eu ainda estava um pouco tonto e achei melhor repetir suas últimas frases para que ele não parasse de falar.
— Terminou, terminou. Sabe o que é pior, Gordo? Eu realmente gosto dela. Bem, não nos entendemos. Não combinamos. Mesmo assim. Eu disse que a amava. E perdi a virgindade com ela.
— Perdeu a virgindade com ela?
— Perdi, perdi. Não sabia? Ela é a única garota com quem transei, sei. Sei lá. Mesmo brigando, tipo, noventa e quatro porcento do tempo, eu fiquei bastante triste.
— Ficou triste?
— Mais do que eu imaginava. Mas era inevitável, eu sabia. Não tivemos um só momento agradável durante todo o ano. Desde que chegamos aqui, não fizemos outra coisa senão nos agredir. Eu deveria ter sido mais carinhoso com ela. Sei lá. É triste.
— É triste, — repeti.
— Bem, é ridículo sentir falta de uma pessoa com quem você não se dá muito bem. Mas, sei lá, era bom, sabe, ter alguém com quem brigar.
— Brigar, — eu disse, depois, confuso e mal conseguindo dirigir, acrescentei, — é divertido.
— É. Não sei o que vou fazer agora. Eu gostava dela. Sou doido, Gordo. O que eu faço?
— Vocé pode brigar comigo, — eu disse. Pousei o controle, estiquei-me no sofá de espuma e caí no sono. Enquanto adormecia, ouvi o Coronel dizer:
— Não consigo me zangar com você, seu magricela filho da mãe.

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