quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Quarenta e seis dias depois

EU NÃO QUERIA FALAR COM A LARA, mas, no almoço do dia seguinte, Takumi lançou mão do argumento mais forte para me fazer sentir culpado.
— O que a Alasca ia pensar disso? — ele perguntou, olhando para Lara. Ela estava sentada a três mesas de distância com a colega de quarto, Katie, que estava contando uma história, e sorria toda vez que Katie ria das próprias piadas. Levou uma garfada de milho enlatado a boca e pressionou contra o palato, movendo o maxilar para triturá-lo, a cabeça baixa enquanto comia do garfo - era tão discreta.
— Ela poderia reclamar comigo, — eu disse para o Takumi.
Takumi balançou a cabeça. E, com a boca aberta, cheia de purê de batata, disse:
— Você precisa fazer isso. — Engoliu. — Deixa eu fazer uma pergunta para você, Gordo. Quando você estiver velho e grisalho, com os netinhos sentados no colo, e eles se virarem para você e disserem: “Vovozinho, como foi seu primeiro boquete?”, você vai querer dizer que foi uma garota que você ignorou pelo resto do Ensino médio? Não! — Sorriu. — Você vai querer dizer: ‘Foi com minha querida amiga Lara Buterskaya. Uma garota adorável. Muito mais bonita que a vovó'. — Eu ri. Está bem, eu precisava falar com a Lara.
Depois da aula, fui até o seu quarto e bati na porta. Ela veio atender e ficou me olhando com quem diz: O que foi? O que foi agora? Você já fez todo o estrago que podia fazer, Gordo. Eu olhei através dela, para o quarto no qual só entrara uma vez, onde tinha aprendido que, com beijo ou sem beijo, não conseguia me comunicar com ela - e, antes que o silêncio se tornasse desconfortável demais, falei.
— Desculpa, — eu disse.
— Desculpa pelo quê? — ela perguntou, ainda olhando em minha direção, mas não para mim.
— Por ter ignorado você. Por tudo, — eu disse.
— Ninguém disse que você precisava ser meu namorado. — Ela estava tão bonita, os olhos grandes piscando depressa, as faces suaves e roliças. No entanto, toda aquela redondeza só fazia me lembrar do rosto fino e das bochechas salientes da Alasca. Mas eu podia viver com isso - além do mais, era preciso. — Poderíamos ser só amigos, — ela disse.
— Eu sei. Eu estraguei tudo. Sinto muito.
— Não aceite as desculpas desse babaca! — Katie gritou de dentro do quarto.
— Eu perdoo você, — Lara sorriu e me abraçou, envolvendo firmemente minha cintura. Passei os braços por cima de seus ombros e senti o cheiro de violeta de seus cabelos.
— Mas eu não! — Katie disse, aparecendo no vão da porta. E, embora eu e ela não fossemos muito próximos, ela se sentiu no direito de me dar uma joelhada no saco. Depois sorriu e, enquanto eu me curvava numa mesura forçada, disse: — Agora está perdoado.
Lara e eu saímos para caminhar pelo lago – sem Katie - e conversamos. Conversamos sobre Alasca e sobre o último mês, sobre o fato de ela ter sentido falta tanto da Alasca quanto de mim, enquanto eu só sentia falta da Alasca (e ela estava certa). Contei-lhe toda a verdade que podia, desde as bombinhas até a Delegacia de Polícia de Pelham e as tulipas.
— Eu amava a Alasca, — eu disse, e Lara disse que também a amava, então me expliquei, — Eu sei, mas foi esse o motivo. Eu amava a Alasca, e, depois que ela morreu, não consegui pensar em outra coisa. Parecia desonesto, sabe? Como uma traição.
— Não é um bom motivo, — ela disse.
— Eu sei.
Ela sorriu suavemente.
— Ótimo. Melhor assim. Pelo menos você admite. — Eu sabia que não conseguia apagar esse ressentimento, mas estávamos conversando.



Enquanto a escuridão se derramava pela noite, as rãs coaxavam e uns poucos insetos recém-ressuscitados zumbiam pelo campus, nós quatro - Takumi, Lara, o Coronel e eu - caminhamos sob a luz fria e cinzenta da lua cheia até o buraco de fumo.
— Coronel, por que vocês chamam esse lugar de Buraco do Fumo? — Lara perguntou. — Parece mais um túnel.
— É como um buraco de pesca, — o Coronel disse. — Tipo, se nós pescássemos, pescaríamos aqui. Mas nós fumamos. Sei lá. Acho que foi Alasca que deu esse nome. — O Coronel puxou um cigarro do maço e o jogou na água.
— Mas que diabos? — perguntei.
— Para ela, — ele disse.
Abri um meio sorriso e repeti o gesto, jogando um dos meus cigarros na água. Dei um para o Takumi e outro para a Lara, e eles fizeram o mesmo. Os cigarros balançaram e dançaram no regato por um momento, depois foram levados pela corrente e sumiram de vista.
Eu não era religioso, mas gostava de rituais. Gostava da ideia de poder ligar uma ação a uma lembrança. Na china, o Velho dissera, havia dias reservados para limpar os túmulos, e as pessoas faziam oferendas para os mortos. Imaginei que Alasca iria querer um cigarro, então me pareceu que o Coronel tinha dado inicio lentamente a um excelente ritual.
Ele cuspiu no regato e quebrou o silêncio.
— Engraçado, isso de falar com os fantasmas, — disse. — Não dá para saber se você esta inventando as respostas ou se eles estão mesmo falando com você.
— Acho que devemos fazer uma lista, — Takumi disse, procurando evitar quaisquer conversas mais introspectivas. — Que evidências apontam para o suicídio?
O Coronel puxou o caderno que estava sempre com ele.
— Ela não pisou no freio, — eu disse. O Coronel anotou depressa.
Ela estava bastante chateada com alguma coisa, se bem que ela já estivera chateada outras vezes e nem por isso cometera suicídio. Imaginamos que as flores seriam uma espécie de memorial para ela mesma - como um arranjo fúnebre ou algo assim. Mas isso não nos parecia Alasca. Ela era enigmática, é verdade, mas quem planeja o suicídio pensando em flores, provavelmente, também planeja o modo como vai morrer, e Alasca não tinha como saber que um carro de policia estaria na 1-65 naquele exato momento.
E as evidências que apontavam para um acidente?
— Ela realmente estava muito bêbada, talvez estivesse pensando que não ia bater na viatura, mas não sei como, — Takumi disse.
— Ela pode ter cochilado, — Lara tentou ajudar.
— É, nós pensamos nessa possibilidade, — eu disse. — Mas acho que, se ela tivesse cochilado, não teria seguido uma linha reta.
— Não consigo pensar numa solução que não ponha nossas vidas em risco, — o Coronel disse desanimado. — Mas ela não apresentava sinais de risco de suicídio. Tipo, ela não falava sobre se matar nem se desfazia de seus pertences e esse tipo de coisa.
— Com isso, são duas. Bêbada e sem planos para morrer, — Takumi disse. Aquilo não estava nos levando a lugar nenhum. Apenas uma dança diferente com as mesmas perguntas. Não precisávamos de mais raciocínio. Precisávamos de mais provas.
— Precisamos descobrir aonde ela estava indo, — o Coronel disse.
— As últimas pessoas com quem ela conversou foram eu, você e o Jake, —  eu lhe disse. — E nós não sabemos. Então como vamos descobrir?
Takumi olhou para o coronel e soltou um suspiro.
— Acho que isso não vai nos ajudar em nada, saber para onde ela estava indo. Acho que só tornaria as coisas mais difíceis para todos nós. Tenho um mau pressentimento.
— Certo, mas eu quero saber, — Lara disse, e foi então que eu compreendi o que Takumi quisera dizer naquele dia em que tomamos banho juntos - eu podia tê-lá beijado, mas, de fato, não exercia um monopólio sobre Alasca; o Coronel e eu não éramos os únicos que se importavam com ela, não estávamos sozinhos na busca dos “comos” e dos “por quês” de sua morte.
— Bem, seja como for, — disse o Coronel, — estamos num beco sem saída. Um de vocês terá de pensar numa solução. Porque minhas ferramentas investigativas já se esgotaram.
Ele bateu a ponta do cigarro em cima da água, levantou-se e foi embora. Nós o seguimos. Mesmo na derrota, ele continuava sendo o Coronel.

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