quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Quarenta e sete dias antes

NA MANHÃ DE QUARTA- FEIRA, acordei de nariz entupido num Alabama inteiramente novo, frio e glacial. Caminhando para o quarto da Alasca naquela manhã, ouvi o som dos meus passos sobre a relva congelada. Não se via muita geada na Florida - e eu fiquei pulando para lá e para cá como se estivesse pisando em plástico bolha. Crunch. Crunch. Crunch.
Alasca estava segurando uma vela verde de cabeça para baixo, deixando a cera pingar num grande vulcão artesanal que me fez lembrar um pouco os vulcões coloridos das feiras de ciência do primário.
— Não se queime, — eu disse, quando a chama avançou em seus dedos.
— Veloz, a noite cai. E o hoje já se esvai, — ela disse sem olhar para cima.
— Calma, já li isso em algum lugar. É o que? — perguntei.
Com uma das mãos, ela pegou um livro e jogou em minha direção. Ele caiu aos pés.
— Um poema, — ela disse. — Edna St. Vincent Millay. Já leu? Não acredito.
— É, eu li a biografia dela! Mas não achei as últimas palavras. Fiquei um pouco chateado. Só lembro que ela transava bastante.
— Eu sei. Ela é minha heroína, — Alasca disse, sem o menor indicio de ironia. Eu ri, mas ela não percebeu. — Não acha estranho você gostar de biografia de grandes autores do que de suas obras?
— Não! — eu disse. — Só porque eram pessoas interessantes não significa que vou querer ouvir suas digressões sobre a noite.
— É sobre a depressão, idiota!
— Juuuura? Uau, então é brilhante, — eu respondi.
Ela suspirou.
— Tudo bem. A neve pode estar caindo sobre o inverno da minha desesperança, mas pelo menos não me faltará sarcasmo. Sente-se logo.
Eu me sentei ao seu lado, com as pernas dobradas, nossos joelhos se tocando. Ela procurou debaixo da cama e puxou em um caixote de plástico com dezenas de velas. Olhou para elas por um tempo, depois me deu uma branca e um isqueiro.
Passamos a manhãs inteira queimando velas – vez ou outra usando o fogo para acender um cigarro depois de termos enfiado uma toalha embaixo da porta. No decorrer de duas horas, conseguimos acrescentar mais 30 cm ao topo do seu vulcão multicolorido.
— Monte St. Helens em ácido, — ela disse.
Ás 12h30, depois de eu ter implorado a Alasca por duas horas que me levasse ao McDonald’s, ela decidiu que estava na hora de almoçarmos. Enquanto caminhávamos para o estacionamento dos alunos, vi um carro estranho. Um carrinho verde. Compacto. Já vi esse carro antes, eu pensei. Onde foi que eu o vi? Então o Coronel abriu a porta e veio correndo em nossa direção.
Em vez de dizer, sei lá, um “oi” ou algo assim, o Coronel começou: — Fui instruído a convidá-los para a ceia de ação de Graças na Mansão Martin.
Alasca sussurrou alguma coisa no meu ouvido, eu ri e disse:
— Fui instruído a aceitar o convite. — Então fomos até a casa do Águia, avisamos que iríamos comer peru à moda do trailer e nos mandamos no carrinho compacto.
O Coronel nos explicou o que estava acontecendo durante a viagem de duas horas para o sul do estado. Eu estava apertado no banco de trás, porque Alasca tinha pedido para ir na frente. Ela costumava dirigir, mas, quando ia de carona, se transformava na rainha do vou na frente. A mãe do Coronel ficou sabendo que estávamos no campus e não quis nos deixar sem família no Dia de Ação de Graças. O Coronel parecia não gostar muito da ideia: — Vou ser obrigado a dormir numa tenda, — ele disse, e eu ri.
Acontece que ele realmente foi obrigado a dormir numa tenda, uma tenda verde e oval com capacidade para quatro pessoas, mas uma tenda. A mãe do Coronel morava num trailer daqueles que vemos acoplado a uma caminhonete grande, só que esse trailer em especial era velho e estava caindo aos pedaços sobre blocos de cimentos e provavelmente se desintegraria se fosse enganchado numa caminhonete. Nem mesmo era grande. Eu mal podia ficar de pé sem bater a cabeça no teto. Agora entendia por que Coronel era baixinho - ele não podia se dar ao luxo de ser mais alto. O lugar, na verdade, era um quarto comprido com uma cama de casal na frente, uma quitinete e uma sala nos fundos com tevê e um banheiro pequeno - tão pequeno que, para tomar banho, você praticamente tinha de se sentar no assento da privada.
— É humilde — disse a mãe do Coronel (“Senhora Martin, não. Dolores!) — Mas vamos comer um peru do tamanho dessa cozinha. — Ela riu. O Coronel nos conduziu para fora do trailer logo depois do tour, e fomos dar uma volta pela vizinhança, uma serie de trailers e casas ambulantes em ruazinhas de terra.
— Bem, agora vocês entendem por que eu odeio gente rica. — E eu realmente entendia. Não conseguimos imaginar como o Coronel tinha crescido num lugar tão apertado. O trailer menor que nosso quarto no campus. Eu não sabia o que dizer para fazê-lo se sentir menos envergonhado.
— Sinto muito se isso deixa vocês constrangidos, — ele disse. — Sei que deve de ser estranho.
— Não para mim, — Alasca disse.
— Bem, você não mora num trailer. — Ele replicou.
— Pobre é pobre.
— Acho que você tem razão, — admitiu o Coronel.
Alasca resolveu ajudar Dolores com a ceia. Disse que era sexista deixar todo o trabalho a cargo das mulheres, mas preferia comer uma boa comida sexista a ver os garotos prepararem uma gororoba qualquer. Então o Coronel e eu ficamos sentados no sofá dobrável da sala, jogando videogame e conversando sobre a escola.
— Terminei o trabalho de religião. Mas quero passá-lo para o seu computador quando eu voltar. Acho que estou pronto para as provas finais, o que é ótimo, porque temos um pê-tro-pê-te-pê-pra-pê-pre-pê-gar.
— Sua mãe não entende a língua do ‘pê’? — Abri um sorriso afetado.
— Se eu falar rápido, não. Cala a boca.
A comida – quiabo frito, espiga de milho cozida no vapor e peru assado, tão macio que escorregava pelo garfo de plástico. Me Fez acreditar que Dolores cozinhava melhor do que a própria Maureen. O quiabo de Culver Creek era menos gordurosos e mais crocante. Dolores também era a mãe mais divertida que eu tinha conhecido. Quando Alasca lhe perguntou qual era a sua profissão, ela sorriu e disse: — Sou engenheira culinária. Ou seja, sou cozinheira na casa do Waffle.
— A melhor Casa do Waffle no Alabama. — O Coronel sorriu, então me dei conta de que ele não tinha vergonha da mãe coisíssima nenhuma. Só estava com medo que fossemos agir como garotos esnobes e arrogantes de colégio interno. Eu tinha achado aquela sua historia de odeio-os-ricos um tanto exagerada até vê-lo com a mãe.
Era o mesmo Coronel, só que num contexto diferente. Aquilo me fez conhecer a família da Alasca também.
Dolores insistiu para que Alasca e eu dividíssemos a cama, e foi dormir no sofá dobrável, enquanto o Coronel passava a noite na tenda. Tive medo de que ele passasse frio, mas, francamente, não estava disposto a abrir mão da minha cama com Alasca. Usamos cobertores separados, e havia sempre, pelo menos, três camadas entre nós, mas as possibilidades me deixaram acordado a noite inteira.

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