quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Quatro dias depois

ERAM CINCO DA MANHÃ. Eu estava lendo uma biografia do explorador Meriwether Lewis (da famosa dupla Lewis & Clark), tentando permanecer acordado, quando a porta se abriu e o Coronel apareceu.
Suas mãos pálidas tremiam, e o almanaque que ele trazia consigo mais parecia uma marionete dançando sem cordas.
— Está com frio? — perguntei.
Ele fez que sim com a cabeça, tirou o tênis e se deitou em minha cama, no beliche de baixo, puxando as cobertas sobre o corpo. Seus dentes batiam como um telégrafo.
— Santo Deus! Você está bem?
— Melhor agora. Mais quente, — ele disse. Uma pequena mão branca de fantasma surgiu debaixo do edredom. — Segura minha mão, por favor?
— Seguro, mas é só isso. Nada de beijos. — Ele riu, fazendo a colcha tremer.
— Onde você estava?
— Fui andando até Montevallo.
— Sessenta e cinco quilômetros?
— Sessenta e oito, — ele me corrigiu. — Bem, sessenta e oito para ir. Sessenta e oito para voltar. Cento e vinte e seis ao todo. Não. Cento e trinta e seis. Isso. Cento e trinta e seis quilômetros e quarenta e cinco horas.
— Mas que diabos tinha em Montevallo? — perguntei.
— Nada de mais. Só andei até não aguentar o frio, depois dei meia-volta.
— Não dormiu?
— Não! Os pesadelos são horríveis. Nos meus sonhos, ela nem mesmo se parece com ela. Nem mesmo consigo me lembrar como ela era.
Larguei sua mão, peguei o anuário e mostrei o retrato dela. Na foto em preto e branco, ela está com sua tradicional camiseta regata cor de laranja e um short jeans cortado que lhe cobre metade das coxas finas, a boca escancarada numa eterna risada, enquanto o braço esquerdo segura Takumi numa gravata. O cabelo lhe cai pelo rosto, escondendo suas bochechas.
— Certo, — o Coronel disse. — Pois é. Eu estava cansado de vê-la aborrecida sem motivo. Ela ficava triste e falava sobre a porcaria do peso opressivo da tragédia ou qualquer coisa assim, mas nunca dizia o que estava errado, nunca dizia o motivo por que estava triste. Acho que a pessoa precisa de um motivo. Minha namorada me deu um fora, por isso estou triste. Fui pego fumando, por isso estou irritado. Minha cabeça está doendo, por isso estou mal-humorado. Ela nunca tinha motivo, Gordo. Eu já estava cansado de todo aquele drama. Então a deixei ir embora. Santo Deus.
Às vezes o mau humor dela também me irritava, mas não naquela noite. Naquela noite, eu a deixei ir embora porque ela mandou. Era simples assim, idiota assim.
A mão do Coronel era tão pequenina. Apertei-a com força, o frio dele passando para o meu corpo e o meu calor passando para o dele.
— Decorei os contingentes populacionais, — ele disse
— Uzbequistão.
— Vinte e quatro milhões, setecentos e cinquenta e cinco mil, quinhentos e dezenove.
— Camarões, — eu disse, tarde demais. Ele estava dormindo, a mão inerte na minha. Coloquei-a debaixo da colcha novamente e subi no beliche de cima. Teria de ser o homem do beliche de cima pelo menos naquela noite. Adormeci ouvindo sua respiração, lenta e cadenciada, sua rebeldia finalmente se desfazendo diante do cansaço invencível.

Nenhum comentário:

Postar um comentário